ABDPRO #93 - Um debate com adeptos do garantismo processual

10/07/2019

Coluna ABDPRO

— 1 —

Introdução

A vertente garantista do processo tem conquistado bastante relevo no cenário dogmático brasileiro. Por obra hercúlea de Glauco Gumerato Ramos, talvez iniciada em 2008 ou em 2007, o garantismo processual logrou os contornos da blástula de um movimento que se tornaria mais forte uma década mais tarde. Aparentemente, tomando-se seu currículo lattes como base, a produção mais antiga seria o texto intitulado “Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate” [MPMG jurídico, v. 18, p. 8-15, 2009]. Numa admirável conferência contra a produção oficiosa de provas, Diego Crevelin de Sousa chegou a homenageá-lo justamente com este lembrete [cf. palestra “Poderes do juiz, ônus da prova e Garantismo Processual”, em versão audiovisual, aqui].

Neste primeiro texto, Glauco avisa que o debate já era conhecido em países como Espanha, Itália e Portugal. Além disso, afirma-se que “ao que tudo indica a queda da Bastilha a representar” tal debate “foi a coletânea na qual JUAN MONTERO AROCA reuniu vários textos sobre o tema, escrito por processualistas de vários países da Iberoamérica e também da Itália: Proceso civil e ideología – Un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos, Valencia: Tirant Lo Blanch, 2006”. Daí em diante, Glauco Gumerato Ramos explica os detalhes factuais que antecederam o fomento da ideia, passando pelo texto Nel centeario del Regolamento di Klein (Il processo civile tra libertà e autoritá), de Franco Cipriani [1995]; pela tradução para o espanhol, a desejo de Cipriani, do livro I principi politici del nuovo proceso civile spagnolo, por obra de Juan Montero Aroca [2002]; e, finalmente, pela organização, também por Aroca, da já mencionada obra Proceso civil e ideología – Un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos [2006] [RAMOS, Glauco Gumerato.  Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate. Disponível aqui]. Em suma, Glauco Gumerato Ramos afirma que o Código de Processo Civil austro-húngaro de 1897 foi a opera magna legislativa do Ministro da Justiça Franz Klein, sendo “o marco fundante da estratégia consistente num dirigismo processual que dá ao juiz (= jurisdição) a ‘mão de ferro’ necessária para a condução da marcha do processo” [RAMOS, Glauco Gumerato.  Garantismo processual em debate. Disponível aqui].

Não cabe, neste texto, adentrar nas minúcias desse desenrolar de fatos. É melhor compendiar, de antemão, as impressões que tive ao ler textos de garantistas, como alguns publicados na Coluna da ABDPRO [Empório do Direito] e, sobretudo, textos publicados na Coluna Garantismo Processual [igualmente sediada no website Empório do Direito].

Basicamente, pode-se afirmar que, além de Glauco Gumerato Ramos, lideram o garantismo processual, no Brasil, escritores como Eduardo José da Fonseca Costa, Lúcio Delfino, Diego Crevelin de Sousa, Antônio J. Carvalho Filho, Igor Raatz, Natascha Silva Anchieta, Mateus Costa Pereira e outros nomes que, desde já, lamento não recordar.

 

— 2 —

Balizas centrais do garantismo processual

Em suma, as balizas centrais do garantismo processual são as seguintes:

1.ª] o habitat natural do “processo” seria a Constituição da República Federativa do Brasil, mais precisamente a cláusula do “devido processo legal” – vide, para exemplificar [sem exclusão de outras produções], palavras de Eduardo José da Fonseca Costa aqui, aqui e aqui; lições de Diego Crevelin de Sousa aqui e aqui; Lúcio Delfino num texto inteligente e divertidíssimo aqui; Mateus Costa Pereira em sua obra A Teoria Geral do Processo e seu Tripé Fundamental, que pode ser obtida aqui etc.;

2.ª] há necessidade de rígida e irrestrita divisão metodológica entre o processo, o procedimento e a jurisdição, de maneira que “processo” é “coisa da Constituição” e “procedimento” é “matéria de lei infraconstitucional” [procedi com esforço teórico, em coautoria, com o dileto amigo Diego Crevelin de Sousa aqui]. Assim, o CPC seria impropriamente chamado “Código de Processo Civil”, quando o correto seria “Código de Procedimento Civil” [o mesmo sucedendo com o CPP: o certo seria “Código de Procedimento Penal, não “Código de Processo Penal”]. Poder-se-ia falar, nesta esteira, em “ciência processual”, em “ciência procedimental” e até mesmo em “ciência jurisdicional”, cada qual com uma episteme que lhe é própria [ver nossa contribuição, “Ciência processual e ciência jurisdicional”, aqui – com nítida influência de Eduardo José da Fonseca Costa, quem primeiramente chamou-me atenção para tais diferenciações];

3.ª] o processo, em si, é garantia – mantra repetido por Eduardo José da Fonseca Costa [ver, só para ilustrar, esses textos aqui e aqui], tendo ela matiz contrajurisdicional.

Esses três pontos se entrecruzam e formam o coração do garantismo processual.

É de bom alvitre frisar – até para o agrado dos garantistas processuais – que não se pode confundir tal movimento com teses de Luigi Ferrajoli. São coisas diferentes. Bem diferentes. Para compreender, mais rapidamente, a diferença entre um e outro, recomenda-se o podcast “Falando de Processo”, organizado pelo estimado amigo Antônio J. Carvalho Filho, notadamente o episódio n.º 26, intitulado “O que é o Garantismo Processual?”, o qual pode ser acessado aqui.

Todos os três pontos supra elencados estão sempre interseccionados. Com base neles e em outros aspectos filosóficos e dogmáticos, os autores do garantismo processual têm avançado com reflexões interessantes.

 

— 3 —

O mérito dos garantistas [processuais]

De minha pequeneza, posso reconhecer a grande repercussão que a tese surtiu em minha mentalidade. Neste sentido, são inegáveis méritos de autores garantistas:

a] a preocupação sincera com a imparcialidade do juiz [por todos, confira-se a magnífica tese de doutoramento de Eduardo José da Fonseca Costa, Levando a Imparcialidade a Sério, versão comercial aqui];

b] a arrebatadora depuração valorativa da instituição processual [ou procedimental, que seja] dos interesses do Estado, reconhecendo-o como “coisa das partes”, não como “ferramenta da jurisdição” [ver, só para exemplificar, texto de Lúcio Delfino aqui e de Antônio J. Carvalho Filho aqui]; e

c] o avassalador contrapeso que se fez ao “cooperativismo processual” [vide o magnífico texto Caráter Mítico da Cooperação Processual de Diego Crevelin de Sousa aqui].

 

— 4 —

Minhas provocações

Naturalmente, o tempo e a reflexão também imporiam desavenças. Neste texto específico, ouso apresentar certo temperamento, provocando os autores garantistas aqui citados para o debate. Esses questionamentos já foram, em parte, colocados num grupo privado da Associação Brasileira de Direito Processual, no aplicativo Telegram. Quero trazê-los à tona novamente.

Meus pontos de discórdia, em suma, são três:

1.º] a assim chamada “presunção de inocência civil” [“ou pressuposição de inocência civil]”;

2.º] o racionalismo extremado do garantismo processual e as portas fechadas para a discricionariedade judicial; e

3.º] o problema da separação extremada de “processo” e “procedimento” e o divórcio axiológico do direito material.

 

— 5 —

O problema da tese de presunção inocência civil

Em 2017, Eduardo José da Fonseca Costa publicou interessante texto na Revista Brasileira de Direito Processual [RBDPro], intitulado “Presunção de inocência civil: algumas reflexões no contexto brasileiro”. Ele afirma que o inciso LVII do art. 5.º da Constituição da República abarca a garantia da “presunção de inocência civil” [ou “pressuposição de inocência civil”, como prefere]. Para ele, o dispositivo “sofre de uma privação excessiva”. Defender tese contrária significaria “captura pelo procedimentalismo penal e rejeição pelo procedimentalismo civil”. Defende, portanto, que tal dispositivo agasalharia, sim, a presunção de inocência civil ou extrapenal [COSTA, Eduardo José da Fonseca.  Presunção de inocência civil: algumas reflexões no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, n. 25, n. 100, out./dez. 2017, p. 131].

Mais adiante, Eduardo José da Fonseca Costa arrola, em caráter exemplificativo, alguns julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos que agasalhariam a tese. Ele diz:

Aliás, a jurisprudência da Corte Inter-Americana de Direitos Humanos (CIDH) vislumbra uma dimensão civil ou extrapenal na “presunção de inocência” (cf., por exemplo: Corte IDH, Opinión Consultiva OC-11/90, supra nota 2, párr. 28; Caso de la “Panel Blanca” – Paniagua Morales y otros vs. Guatemala, Sentencia de 8 de marzo de 1998, Serie C No. 37, párr. 149; Caso del Tribunal Constitucional vs. Perú, Sentencia de 31 de enero de 2001, Serie C No. 71, párr. 70; Caso Baena Ricardo y otros vs. Panamá, Sentencia de 2 de febrero de 2001, Serie C No. 72, párr. 125; Caso Ivcher Bronstein vs. Perú, Sentencia de 6 de febrero de 2001, Serie C No. 74, párr. 103; Caso Yatama vs. Nicaragua, supra nota 8, párr. 149. 14; Corte IDH, Caso del Tribunal Constitucional vs. Perú, supra nota 13, párr. 71) [COSTA, Eduardo José da Fonseca.  Presunção de inocência civil: algumas reflexões no contexto brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, n. 25, n. 100, out./dez. 2017, p. 132].

No entanto, uma análise mais detida da jurisprudência aí citada pode colocar em xeque o posicionamento [s. m. j.]. No mínimo, pode enfraquecê-lo drasticamente.

Façamos um arrolamento breve e analítico dos casos mencionados.

[i] Opinión Consultiva OC-11/90, párr. 28

De antemão, é necessário frisar que a Opinión Consultiva não constitui jurisprudência em moldes, digamos assim, “clássicos”. Entre nós, algo parecido ocorre no âmbito eleitoral: segundo o art. 23, inciso XII, do Código Eleitoral, compete privativamente ao TSE “responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição, federal ou órgão nacional de partido político”. Há quem fale em “jurisdição consultiva”, mas, bem vistas as coisas, a atividade consultiva não é propriamente jurisdicional [assim, cf. LAGES, Cintia Garabini; LIMA, Renata Mantovani. A legitimidade da atuação do Tribunal Superior Eleitoral no exercício das funções consultiva e normativa. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica (RIHJ), Belo Horizonte, n. 19, jul./dez. 2015]. Já decidiu o STF que a consulta é “ato normativo em tese, sem efeitos concretos, por se tratar de orientação sem força executiva com referência a situação jurídica de qualquer pessoa em particular” [STF, RMS n.º 21.185/DF. Rel. Min. Moreira Alves. Julgado em 14 de dezembro de 1990]. Tanto é que “não cabe mandado de segurança contra pronunciamento de Tribunal em sede de consulta” [TSE, AgRg em MS n.º 3.710/DF. Rel. Min. Carlos Eduardo Caputo Bastos. Julgado em 20 de maio de 2008]. Note-se que o TSE só conhecerá a consulta se se observarem, cumulativamente, três requisitos: [i] pertinência temática (o tema deve ser de matéria eleitoral); [ii] formulação em tese [abstração]; e [iii] legitimidade do consulente: “1. É assente na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral que ‘não compete ao TSE responder a consulta fundada em caso concreto, ainda que verse sobre matéria eleitoral’ (Cta n.º 1.419, rel. Min Cezar Peluso). 2. Consulta não conhecida” [TSE, Ac. n.º 22.699, de 12 de fevereiro de 2008].

Segundo o párr. 28 da Opinión Consultiva OC-11/90, “En materias que conciernen con la determinación de [los] derechos y obligaciones de orden civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carácter el artículo 8 no especifica garantías mínimas, como lo hace en el numeral 2 al referirse a materias penales. Sin embargo, el concepto de debidas garantías se aplica también a esos órdenes y, por ende, en ese tipo de materias el individuo tiene derecho también al debido proceso que se aplica en materia penal. Cabe señalar aquí que las circunstancias de un procedimiento particular, su significación, su carácter y su contexto en un sistema legal particular, son factores que fundamentan la determinación de si la representación legal es o no necesaria para el debido proceso”.

Não se trata de “jurisprudência de caso”. Trata-se de uma nota lançada num contexto mais geral e muito diverso. Os questionamentos envolveram o art. 46, itens n.º 1 e n.º 2, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos [em suma: requisitos de admissão de alguma causa pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos] [para leitura da mencionada Opinión Consultiva, clique aqui].

[ii] Caso de la “Panel Blanca” – Paniagua Morales y otros vs. Guatemala, Sentencia de 8 de marzo de 1998, Serie C No. 37, párr. 149

No párr. 149 deste Caso, foi citado justamente o trecho retromencionado da Opinión Consultiva OC-11/90 [o párr. 28]. A pauta, ali, envolvia o Estado da Guatemala, que teria violado a CADH “como resultado de losactos de secuestro, detención arbitraria, trato inhumano, tortura y asesinato cometidos por agentes del Estado de Guatemala contra once víctimas durante 1987 y 1988 (caso conocido como el caso de la panel blanca debido al uso de un vehículo de ese tipo como parte del modus operandi)” [para leitura do julgado, clique aqui]. A querela, aí, era eminentemente penal.

[iii] Caso del Tribunal Constitucional vs. Perú, Sentencia de 31 de enero de 2001, Serie C No. 71, párr. 70

O párr. 70 deste Caso citou o Caso Paniagua Morales y otros vs. Guatemala [que, por sua vez, citava a Opinión Consultiva OC-11/90], ficando  assim redigido: “Ya la Corte ha dejado establecido que a pesar de que el citado artículo no especifica garantías mínimas en materias que conciernen a la determinación de los derechos y obligaciones de orden civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carácter, el elenco de garantías mínimas establecido en el numeral 2 del mismo precepto se aplica también a esos órdenes y, por ende, en ese tipo de materias el individuo tiene también el derecho, en general, al debido proceso que se aplica en materia pena” [íntegra do julgado aqui]. Mais uma vez, trata-se de colocação am passam e despregada de assuntos relacionados à execução civil. A causa, aí, envolvia a reintegração e a indenização salarial de vítimas de suposta destituição indevida de suas funções.

[iv] Caso Baena Ricardo y otros vs. Panamá, Sentencia de 2 de febrero de 2001, Serie C No. 72, párr. 125

O párr. 125 deste Caso ficou assim redigido: “La Corte observa que el elenco de garantías mínimas establecido en el numeral 2 del artículo 8 de la Convención se aplica a los órdenes mencionados en el numeral 1 del mismo artículo, o sea, la determinación de derechos y obligaciones de orden “civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carácter”. Esto revela el amplio alcance del debido proceso; el individuo tiene el derecho al debido proceso entendido en los términos del artículo 8.1 y 8.2, tanto en materia penal como en todos estos otros órdenes” [ler, aqui, a decisão na íntegra]. O julgado envolvia 270 empregados públicos que, em tese, foram arbitrariamente destituídos de seus cargos, no Estado do Panamá. Não se fala, diretamente, em “presunção de inocência civil” no âmbito da execução da quantia certa.

[v] Caso Ivcher Bronstein vs. Perú, Sentencia de 6 de febrero de 2001, Serie C No. 74, párr. 103

Novamente, temos decisão citando aquela Opinión Consultiva OC-11/90. O párr. 103 deste Caso diz: “La Corte ha establecido que, a pesar de que el citado artículo no especifica garantías mínimas en materias que conciernen a la determinación de los derechos y obligaciones de orden civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carácter, las garantías mínimas establecidas en el numeral 2 del mismo precepto se aplican también a esos órdenes y, por ende, en éstos el individuo tiene derecho al debido proceso en los términos reconocidos para la materia penal, en cuanto sea aplicable al procedimiento respectivo” [íntegra aqui]. A matéria fática de fundo era a discussão sobre perda da nacionalidade imposta ao Sr. Ivcher Bronstein – se foi lícita, ou não, a perda da sua nacionalidade peruana. Só isso. A discussão, aí, envolve a relação que o cidadão tem com o Estado. A parte “cível” ou “extrapenal” foi esta, tão-somente. Não se discutiu eficácia executiva de um título extrajudicial.

[vi] Caso Yatama vs. Nicaragua, supra nota 8, párr. 149. 14

No penúltimo Caso citado por Eduardo José da Fonseca Costa, o Estado da Nicarágua se envolveu numa discussão com um partido chamado Yapti Tasba Masraka Nanih Asla Takanka [“Yatama”]. A discussão envolvia eleições municipais. O párr. 149, na versão em língua portuguesa do julgado [clique aqui] invoca, novamente, o Caso Ivcher Bronstei [vide supra] e aquela Opinión Consultiva OC-11/90. Não se pode afirmar que o julgado realmente ancora uma “jurisprudência” afirmando uma “presunção de inocência civil”.

[vii] Caso del Tribunal Constitucional vs. Perú, supra nota 13, párr. 71

No último Caso mencionado por Eduardo José da Fonseca Costa consta, no párr. 71, que “De conformidad con la separación de los poderes públicos que existe en el Estado de Derecho, si bien la función jurisdiccional compete eminentemente al Poder Judicial, otros órganos o autoridades públicas pueden ejercer funciones del mismo tipo. Es decir, que cuando la Convención se refiere al derecho de toda persona a ser oída por un juez o tribunal competente para la determinación de sus derechos, esta expresión se refiere a cualquier autoridad pública, sea administrativa, legislativa o judicial, que a través de sus resoluciones determine derechos y obligaciones de las personas. Por la razón mencionada, esta Corte considera que cualquier órgano del Estado que ejerza funciones de carácter materialmente jurisdiccional, tiene la obligación de adoptar resoluciones apegadas a las garantias” [leitura de toda a decisão aqui]. Há, in casu, outra discussão sobre suposta destituição inadequada de servidores civis.

Nenhum julgado abrange execução civil. E não se pode falar que a CADH forjou uma jurisprudência sinalizando suposta “presunção de inocência civil”.

Não só.

Há um texto de Eduardo José da Fonseca Costa em coautoria com Mateus Costa Pereira no qual tais autores salientam que “o garantismo processual atravessa o fenômeno processual como um todo (civil, penal, administrativo, eleitoral etc.), postulando o irrestrito acatamento da Constituição” [ler tal escrito aqui]. É dizer: o próprio garantismo processual pressupõe acatamento irrestrito da Constituição da República, i. e., de seu texto. Vamos ao texto: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (inciso LVII do art. 5.º). Não há espaço para se cogitar, no texto, de “presunção de inocência civil”. O dispositivo garante a presunção de inocência no âmbito penal. Nada mais, nada menos.

 

— 6 —

O racionalismo extremado do garantismo processual e um retorno ao divórcio do processo e do direito material

Para não incorrer numa crítica injusta, é preciso salientar que não se imputa, neste texto, a tese de acordo com a qual o garantismo processual defenderia o “juiz boca da lei”. Esse tipo de crítica foi rebatido duramente no podcast “Falando de Processo” [org. Antônio J. Carvalho Filho], episódio n.º 26 [“O que é o Garantismo Processual?”, aqui].

Dois pontos, porém, merecem esclarecimentos de garantistas.

Em recente discussão, defendi que o juiz tem certa margem de discricionariedade para fixar sanções penais. Utilizei o exemplo do direito penal para fazer paralelo com a execução civil: o direito penal abrange a liberdade [o mais]; a execução civil se resume, basicamente, ao patrimônio [o menos]. A comparação não é infeliz. Se o processo em si é garantia, terão de aceitá-la: é processo, afinal de contas. Ficam, assim, analiticamente presos.

O garantismo propõe o irrestrito apego ao texto constitucional. Essa é sua nota fundamental. Durante o fluxo procedimental, o juiz deverá se ater, sempre, à Constituição da República. E terá de se pautar pela legalidade [princípio da legalidade].

O ponto de atrito de ideias surge justamente aqui.

Ainda que o juiz atue dentro de margens legais definidas ex ante, é impossível negar que, dentro dessas balizas, há um atuar humano. O juiz não é um software: é um ser humano. E nisto chegamos a uma conclusão fatal: há um ato de escolha.

Não se nega que o ato de “escolha” tem de observar parâmetros. Mesmo assim, é impossível deixar de considerar que o juiz não tem o poder sobrenatural de, simplesmente, externar-se totalmente do fato analisado nos autos. Impossível.

Seria isso inconstitucional? Pela proposta garantística, a resposta deve ser afirmativa. Afinal, todo ato processual teria de ser oxigenado pela legalidade. Ainda que se afaste a pecha do “juiz boca da lei” [o que sugere um positivismo exegético, e entrar neste mérito talvez triplicaria o tamanho deste texto], o fato é que a dureza concreta da Lebenswelt [“mundo da vida”] jamais poderá ser descrita em tipos legais completamente cerrados. Se assim fosse, para o garantismo processual, seria inconstitucional a fixação da pena-base conforme circunstâncias judiciais do art. 59 do CP; seria inconstitucional que o juízo da causa, vislumbrando um caso de crime tentado, fixasse [usemos o verbo inevitável e fatal: “escolhesse”] minorante mais ou menos próxima de 2/3 [apreciando o iter criminis – art. 14, II, parágrafo único, do Código Penal]; seria inconstitucional que o juiz da causa, analisando os autos e a atuação das partes, arbitrasse honorários advocatícios entre 10 e 20%; seria inconstitucional a fixação de reparação por danos morais segundo arbitramento; seria inconstitucional a redução equitativa da cláusula penal [art. 413 do Código Civil]; seria inconstitucional que o juiz entendesse que o depoimento de um informante é mais valioso que o depoimento de uma testemunha [houve louvável discussão sobre o tema – ver aqui] e assim por diante. Kelsen negaria, veementemente, qualquer proposta teórica afirmando que não há, aí, ato de escolha. Esforcem-se como quiserem: é escolha. Pautada por critérios? Sim. Mas é conduta humana.

Repita-se: ato de escolha. Juiz é ser humano e ponto final. Há muito tempo os penalistas de estirpe finalista [escola de Welzel] propuseram, justamente, uma epistemologia de cunho objetivista, fundada no ser já prenhe de conteúdo valorativo [= axiologia inerente ao ser]. O juiz, pessoa que é, está fatalmente preso pelas estruturas lógico-objetivas ou lógico-concretas [imanentes à realidade] do objeto cognoscível. Tais estruturas são destacadas pela lógica concreta, que se orienta diretamente para a realidade, objeto do conhecimento. As estruturas lógico-objetivas pertencem ao mundo da ontologia, da realidade, embora contenham em si uma dimensão de sentido, com a qual condicionam toda valoração que sobre elas possa recair [sugere-se, aqui, a leitura da obra do penalista paranaense Luiz Regis Prado]. Nenhuma teoria jurídica é capaz de destruir isso. O direito é limitado pela realidade, não o contrário.

Ao garantista que discordar, proponho um desafio: entregue autos de idêntica causa para vinte juízes imparciais e neutros, para que eles confeccionem sentença sobre reparação de danos morais. Se não conversarem entre si, teremos um amontoado de sentenças diferentes. Umas mais parecidas, outras menos parecidas. Mas diferentes. O sistema se contenta com essas sutilezas – para alguém extremamente oxigenado de racionalismo, há necessidade urgente de tarifação legal e ex ante do assunto. Para isso se encaminha, s. m. j., o garantismo processual.

Como afirmei, o sistema se contenta com isso. Alguém muito racionalista simplesmente detestará essa conclusão: procurará justificar que o juiz estaria limitado por um sistema legal e sacrossanto, imune de valores, matemático e fechado sempre com uma [e só uma] “resposta certa”. Lamento reconhecer que isso é algo que simplesmente transborda os limites humanos. E tudo bem: a austeridade da legalidade é sopesada com doses de discricionariedade [ainda que se afirme que o sopeso é autorizado pelo direito positivo]. O sistema se contenta com isso, dando certa abertura para que a “estátua dos autos” seja moldada conforme a margem legal. Sobre a questão, Ovídio Araújo Baptista da Silva chegou a frisar que não seria dificultosa a tarefa de “descobrir as raízes ideológicas que presidem o sistema processual, mantendo seus compromissos com o Racionalismo”, e daí emana “a suposição de que a lei jurídica seja uma proposição análoga às verdades matemáticas” [SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Processo e Ideologia – O Paradigma Racionalista. 4.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 16].

É por isso que falo, aqui, em “racionalismo extremado” no garantismo processual. Dou-lhes um exemplo: mais uma vez, invoco a tese de “pressuposição” ou “presunção” de inocência civil, tal qual descrita por Eduardo José da Fonseca Costa. Nas edições do projeto Falando de Processo, da ABDPRO, mais precisamente na versão de n.º 71, ele explicou que a tese não impede a constitucionalidade da eficácia dos títulos executivos. Até aí, tudo bem. A minha divergência vem com a “segunda parte” da ideia: para F. Costa, a carga condenatória do ato mergulhado na eficácia executiva seria suposta, da maneira que o juiz estaria autorizado a invadir o patrimônio do devedor até o instante da penhora de bens do executado. Assim, não seria possível a alienação de bens por adjudicação, nem por venda judicial em hasta/leilão. Seria necessário aguardar o que ele define como “transição de estado”, de maneira que a sanção expropriatória só possa ser efetivamente infligida ao executado quando da condenação definitiva, lograda com a coisa julgada [COSTA, Eduardo José da Fonseca. Presunção de Inocência Civil – Parte 2. Projeto “Falando de Processo”, da ABDPRO – disponível aqui].

A preocupação do referido jurista tem sentido analítico muito caro ao garantismo processual. Não se trata de vaidade científica. Trata-se de um esforço intelectual que visa manter intacta a divisão entre processo e procedimento. Sim: se se afirma que é necessário aguardar a coisa julgada para execução da pena criminal, seria igualmente imprescindível aguardar a coisa julgada para a execução definitiva da quantia certa [ou obrigação de fazer, de não fazer etc. etc.]. Afinal, se o processo em si é a garantia, a escala axiológica do direito material é totalmente blindada da instituição processualística. Neste sentido, há digna honestidade intelectual na sua tese: tenta-se mantê-la amarrada internamente, sem ceder espaço para contradições.

E nisso vejo um problema ainda não superado pelo garantismo. Este é o seu problema mais sério. Se o processo em si é garantia, então o processo em si teria de se isolar das inumeráveis peculiaridades do direito material [que, muitas vezes, se impregna ao procedimento].

No referido conteúdo audiovisual, Eduardo José da Fonseca Costa sugere que o correto seria o devedor lograr o acautelamento de seu “suposto” direito de crédito no bojo da execução. E nossa doutrina não teria desenvolvido material suficiente para pensarmos em tutela cautelar dentro dos interesses do exequente. Seria urgente, segundo diz, a necessidade de cancelar o enunciado n.º 228 da súmula da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal: “não é provisória a execução na pendência de recurso extraordinário, ou de agravo destinado a fazê-lo admitir”.

No entanto, a própria legalidade [Lei n.º 13.105/2015] milita contra a tese. O sistema se contenta com a execução “definitiva” antes do esgotamento da tutela recursal inerente ao Recurso Extraordinário e ao Recurso Especial. O § 5.º do art. 1.029 do CPC/2015 diz: “o pedido de concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário ou a recurso especial poderá ser formulado por requerimento dirigido: I – ao tribunal superior respectivo, no período compreendido entre a publicação da decisão de admissão do recurso e sua distribuição, ficando o relator designado para seu exame prevento para julgá-lo; II - ao relator, se já distribuído o recurso; III – ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, no período compreendido entre a interposição do recurso e a publicação da decisão de admissão do recurso, assim como no caso de o recurso ter sido sobrestado, nos termos do art. 1.037”.

A suspensão da executividade, quando da interposição de RE ou REsp, dependerá de decisão judicial. O sistema se contenta com isso: depois que a causa passou pelo juízo de primeiro grau e por um colegiado [após apelação], parece crível e lógico acentuar sua força executiva. E vale repisar: a Constituição da República agasalha a presunção de inocência penal. Não há, no texto republicano de maior importância, presunção de inocência extrapenal.

E é completamente razoável crer que um fato decidido nas instâncias originárias mereça, desde já, prática de atos executivos. Isso fica ainda mais acentuado nos títulos cambiais: por tradição histórica, eles logram cargas executivas previamente impostas pela lei porque o direito material, com o tempo, mostrou a necessidade disso.

Alguém poderá dizer, em tom pejorativo, que minha tese é “eficienticista”. Que seja. Esta é a opção legislativa consagrada após regular votação no Parlamento. Gostem ou não, o Congresso Nacional quis assim.

Ainda que o processo seja “instituição de garantia”, o fato é que ele depende de coerção estatal. Daí se depreende um grande investimento do erário no Poder Judiciário. O processo não deixa de ser serviço público, na maioria das vezes pago por taxas judiciárias. O sistema dos juizados especiais, inicialmente gratuito, não escapa da lógica: há algo que sustenta sua existência. Gostemos ou não, está na lei que é direito das partes obter em prazo razoável a solução integral do mérito [CPC/2015, art. 4.º]. E o juiz deve observar, dentre outros pontos, a eficiência [CPC/2015, art. 8.º]. Entre um “eficientificismo jurisdicional” consagrado em lei e uma suposta presunção de inocência civil [inexistente na Constituição da República], fico com o primeiro. E o faço com o aviso primeiro do garantismo processual: apego à lei.

É crível supor que o credor pode lidar com riscos. Ele tem o risco de sofrer responsabilização civil objetiva o caso de reversão em RE ou REsp. Mas a probabilidade é baixíssima, principalmente no caso de títulos cambiários, onde a discussão abstrata da Lei Federal é menos acentuada. E tudo bem que seja assim!

Note-se que o garantismo processual afirma que o processo tem de ser “coisa das partes”. O credor, parte que é, tem, na lei, um caminho a seguir: ou aceita o risco, levanta o dinheiro que lhe é devido; ou, vislumbrando as possibilidades de um RE ou de um REsp do devedor lograrem êxito, toma medidas acautelatórias.

Exigir irrestrita presunção de inocência civil, aguardando-se sempre a água benta da coisa julgada parece exigência além do bom senso.

Como já afirmei em discussões antecedentes, “quando o juiz pega os autos de execução, pensa: ‘aqui tem um credor querendo satisfazer uma dívida’”. Logo, deve atuar com a prática de atos processuais hábeis para satisfazer o crédito, sem prejuízo das garantias do devedor. A coerção estatal-judicial da executividade e da mandamentalidade já foi provocada com a inicial e/ou com o requerimento de cumprimento de sentença. O amigo Antônio J. Carvalho Filho sugere haver, em meu pensamento, um “moralismo executivo”. Ouso discordar: a teoria quinaria de F. C. Pontes de Miranda seria inconstitucional também? A previsão legal de que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei” (art. 789 do CPC/2015) é inconstitucional? Pensar que devedor deve pagar credor arrepia a Constituição da República?

É por isso que o garantismo processual jamais admitirá a constitucionalidade da tutela de evidência [s.m.j.]. Afinal, sendo “pura” a cláusula constitucional do devido processo legal, ela se imporá em toda e qualquer situação não urgente. Mais uma vez, um sério problema analítico e prático. O garantista processual não aceita a tutela de evidência no âmbito civil porque, em sua mentalidade, ela também seria impossível no âmbito penal. No entanto, há uma verdade inconveniente aqui: não se admite tutela de evidência penal porque o direito material impede. O direito material penal não admite execução antecipada de pena. O direito material civil é “disponível”: como tal, pode sim sofrer flexibilização para atender situações concretas que, acompanhadas de outros requisitos mínimos, merecem tratamento processual mais célere [abstraindo-se, aqui, da qualidade de nosso material legislativo – ainda é possível remodelar o art. 311 do CPC/2015 para torná-lo melhor]. A rigor, o que torna a tutela “evidente” ou “urgente” é o direito material: o direito positivo dirá quando a tutela antecipada é ou não possível.  Como o garantismo processual explicaria a tutela de evidência no mandado de segurança? Ela também é inconstitucional? Como o garantismo processual explicaria uma tutela possessória [antes de ano e dia]? Sobre o último questionamento, aliás, adiro ao entendimento defendido por Alexandre Senra [Falando de Processo, versão n.º 99 – aqui].

O garantismo tem diante de si um questionamento muito difícil de ser contornado: ao puxar para ele próprio o mantra da “garantia em si”, ganha vida própria e praticamente sacrifica o direito material, igualmente protegido pela cláusula geral da legalidade [Constituição da República, art. 5.º, caput] e pela legislação infraconstitucional. Curiosamente, Mateus Costa Pereira traz um tipo de acusação muito parecida contra a teoria de Oskar von Büllow [1868]: “ao emancipar o direito processual do direito material, tanto quanto promovendo suposto divórcio com o procedimento, Büllow mergulharia o processo no Estado-jurisdição” [PEREIRA, Mateus Costa. Processualidade, jurisdicionalidade e procedimentalidade [I]: algumas reflexões sobre as origens da ciência processual e do paradigma instrumentalista. Disponível aqui]. De fato, é na célebre polêmica Bernhard Windscheid e Theodor Muther que reside um dos germes da independência epistêmica do direito processual. Foi a partir daí que, na Alemanha, encontramos “um desenvolvimento extraordinário, uma efervescência doutrinária estupenda no campo do direito processual”, surgindo, logo depois disso, a primeira Revista de Direito Processual alemã, fundada pelo próprio Oskar von Büllow [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 218].

Büllow valeu-se das premissas de Muther e propôs a tese da relação jurídica processual de direito público [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 218]. Segue a konkrete rechtsschutzanspruch de Wach, “mas, em vez de sentença favorável, alude a sentença justa: a ação é o direito a uma sentença justa” [REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de Direito Processual Civil – volume I. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1954, p. 156]. No entanto, o próprio garantismo processual não nega a publicidade do direito processual: trata-se, justamente, de “uma das propostas desta acepção publicista-garantista do processo, que continua sendo ramo do direito público, porém com vocação para a garantia das partes” [CARVALHO FILHO, Antônio J. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. Disponível aqui]. O que seria a vocação para a garantia das partes? Em alguma medida, justamente, aquilo que a lei e o direito positivo assegura para o direito material. Uma obrigação de fazer, p. ex., não se desnatura com o protocolo da petição inicial. Não se justifica um “zerar axiológico” irrestrito a partir da relação processual. O processo está, de algum modo, “mergulhado na jurisdição”, porque o próprio Estado proibiu a autotutela. Neste sentido, o mesmo extremo criticado pelo garantismo acaba por atingi-lo fatalmente: se “o processo em si é garantia”, então há um completo isolamento normativo de outros ramos jurídicos e da própria legalidade, tão cara ao próprio garantismo [é o que suponho]. Ao lado da tese do “moralismo executivo” [do amigo Antônio J. Carvalho Filho], parece haver um “moralismo garantístico”. Um direito isolado, que ignora as cargas executivas e mandamentais que, afinal, estão aí para solucionar crises jurídicas.

O garantismo processual parece ver a evolução epistêmica de Büllow com certa preocupação... Mas também não se contentaria com as teorias imanentistas/civilistas da ação, famosas, justamente, por encruzilhar, já no método, o direito material ao direito de ação. A ação carregaria o direito material: para a teoria civilística, “a ação é o próprio direito subjetivo; ou é elemento, atributo, qualidade, espectro, momento, consequência ou garantia do direito subjetivo” [REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de Direito Processual Civil – volume I. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1954, p. 155-156. Para uma diferenciação entre direito subjetivo, pretensão e ação de direito material – diferenciação absolutamente fundamental para compreender-se a discussão feita daqui em diante, cf. SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 59-76]. O imanentismo preponderou até a metade do século XIX, “quando o processo civil era estudado junto com o direito civil e, frequentemente, nos mesmos livros, pode-se dizer que havia o primado do direito civil, que absorvia em si o direito processual”, tanto que, “em linguagem poética, sustentou-se que a ação é o mesmo direito subjetivo que, violado, se arma para a guerra” [BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 37-38]. Segundo Araken de Assis, citando Charles Demolombe, “fez-se célebre a expressiva imagem segundo a qual ação ‘é o direito em estado de guerra, em vez do estado de paz’”, havendo variante dessa posição, p. ex., em Giovanni Pateri, onde a ação seria “direito diferente, mas acessório do direito que por intermédio do processo o autor deduzia a em juízo” [ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro – parte geral: fundamentos e distribuição de conflitos. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 634]. Como dizia Gabriel José Rodrigues de Rezende Filho, ação “é o direito ameaçado ou violado ‘em atitude de defesa’” [REZENDE FILHO, Gabriel José Rodrigues de. Curso de Direito Processual Civil – volume I. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1954, p. 154].

Fala-se que a concepção civilista “nasceu de fontes romanas”, baseando-se “na célebre frase de CELSO: Actio nihil aliud est quam est quam jus persequendi in judictio quod sibi debentur [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 210. A tradução deste trecho em latim, segundo Galeno Lacerda, seria “a ação nada mais é do que o direito de buscar, de perseguir em juízo aquilo que é devido”. No mesmo sentido, cf. SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil – 1.º volume. 12.ª ed. São Paulo: 1985, p. 150]. E é da definição de Celso que “os partidários deste entendimento trataram da ação de direito material, ao invés de estabelecerem a verdadeira natureza e função da ‘ação’ processual” [SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 76. Ovídio acrescenta: “com efeito, a definição que CELSO dava à actio romana nunca poderia servir aos juristas modernos para a definição da ‘ação’ processual”]. Essa definição de Celso (Celsus) consta do Digesto, conforme Alexander M. Burrill [BURRIL, Alexander M. A New Law Dictionary and Glossary, part. I. Nova Jersey: The Lawbook Exchange, 1998, p. 21].

A concepção imanentista “inspirou-se [...] [nesta] conhecida passagem do Digesto – nihil aliud este actio quam ius quod sibi debeatur in iudicio persequendi”, sendo a ação vista como “o próprio direito subjetivo material, posto em movimento pelo seu titular, ao afirmá-lo em juízo como violado pelo réu” [ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro – parte geral: fundamentos e distribuição de conflitos. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 634]. Citando passagem do Programa do curso de processo civil de João Monteiro – um verdadeiro teórico imanentista –, Araken de Assis explica que a teoria civilista da ação a enxerga como uma reação assegurada pelo direito contra uma “ação contrária de terceiro”, mais precisamente uma “busca pelo equilíbrio”, que foi “quebrado pela violação do direito subjetivo” [ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro – parte geral: fundamentos e distribuição de conflitos. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 634].

Na alta Idade Média, um glosador teria acrescentado a tal definição o trecho “aut quod suum est”, mais precisamente a figura de Hotomanus, e o acréscimo foi feito “para abranger, segundo ele, direitos reais”, pois “entendia que no verbo deberi (debetur) compreendiam-se apenas os direitos obrigacionais e não os direitos reais: ‘ou aquilo que é seu, que é próprio’” [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 210-211]. G. Lacerda ainda aponta que, posteriormente, o acréscimo de Hotomanus foi criticado, “porque ficou provado, com ULPIANO, que, já no direito de JUSTINIANO, o verbo deberi (na voz passiva) abrangia não apenas os direitos pessoais, mas também os direitos reais” [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 211].

De qualquer maneira, o conceito civilista confunde a ação com o próprio direito subjetivo material. Evidentemente, “só teria ação efetivamente o titular do direito subjetivo material” [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 211].

Fiz esse pequeno compêndio da tese imanentista para alertar que a independência epistêmica do direito processual, que parece tão cara ao garantismo processual, tem sim origem em Büllow, em Wach e em outros. Se hoje um garantista como Antônio J. Carvalho Filho pode expressar que “o juiz interpreta o direito objetivo de acordo com o contraste dos autos” [CARVALHO FILHO, Antônio J. Pequeno manual prático para o debate instrumentalistas (e afins) vs garantistas processuais. Disponível aqui], é porque os dogmatas que tanto criticam propuseram avanços inegáveis.

O pensamento imanentista [teoria civilista da ação] não conseguia responder, analítica e suficientemente:

a] o problema da improcedência – “ficava sem explicação”, disse Celso Agrícola Barbi, “todo caso de ação julgada improcedente, porque a conclusão final seria a de que o autor não tinha direito subjetivo e, portanto, não tinha direito de ação”; citando Hervé Croze e Christian Morel, Araken de Assis salienta que “a simples possibilidade da emissão da sentença de improcedência já demonstra a autonomia da ação em relação ao direito subjetivo alegado e descrito pelo autor na petição inicial” [ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro – parte geral: fundamentos e distribuição de conflitos. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 634];

b] a questão da ação declaratória negativa, “porque ela se funda precisamente na inexistência de um direito subjetivo material” [BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil (volume I, tomo I). Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 38];

c] que o imanentismo não abrange a ação penal [chama-se, justamente, teoria civilista] [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 212];

d] não diferencia muito bem a carência de ação da demanda improcedente [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 213];

e] não explica o problema da “ação esgotada” [ “aquela que cumpre seus objetivos, a ação é julgada procedente, mas, afinal, o devedor não possui bens para pagar e, portanto, a ação permanece esgotada e o direito em aberto” – LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 213];

f] o problema da sentença injusta, onde “não há correspondência entre o direito pré-processual e o direito declarado no processo” [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 214];

g] a questão da prescrição, pois há direitos prescritos [rectius: pretensões prescritas] que não gozam mais de tutela jurisdicional [embora continuem com status de direitos subjetivos] [LACERDA, Galeno. Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 214];

h] a teoria civilista não é capaz de explicar a tutela inibitória etc.

Um resumo de tudo isso é bem exposto por Ovídio Araújo Baptista da Silva: “ora, definindo a denominada ‘teoria civilista’, a ‘ação’ processual como o direito de perseguir em juízo o que nos é devido pelo obrigado, confundiu e misturou as duas realidades, ou seja, o exercício da pretensão de tutela jurídica estatal e a ação de direito material, que é o agir do titular do direito para obtenção ‘do que lhe é devido’; e, ao assim proceder, não teve como explicar os casos em que ao gente houvesse promovido um processo, sem ter direito, ou seja, ficou impossibilitada de explicar o fenômeno da ação improcedente, pois evidentemente em tal caso a ‘ação’ processual não teria sido o direito de perseguir em juízo ‘o que nos é devido’... pelo obrigado” [SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso de Processo Civil – volume 1. 2.ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 77].

Voltemos àquela crítica de Mateus Costa Pereira: a teoria de Oskar von Büllow, “ao emancipar o direito processual do direito material”, mergulhou o processo no Estado-jurisdição” [PEREIRA, Mateus Costa. Processualidade, jurisdicionalidade e procedimentalidade [I]: algumas reflexões sobre as origens da ciência processual e do paradigma instrumentalista. Disponível aqui]. Como o garantismo processual responde os pontos arrolados entre as letras “a” a “h”, supra? Não devem, nada, ao desenvolvimento epistêmico do processo logrado justamente por Büllow e Wach? Não poderiam, jamais, assumirem-se como imanentistas [afinal, o processo em si é garantia...]; mas não conseguem assumir a inevitável iteração entre processualidade e jurisdicionalidade. Isolam o processo de todo o resto. Já dizia o velho F. C. Pontes de Miranda: “para bem se ver quanto são inconfundíveis os direitos subjetivos, as pretensões e as ações, basta que se pense no seguinte: a) é possível permanecer intacta a legislação quanto ao direito subjetivo e mudar quanto às pretensões, ou permanecer inalterado quanto àquele e a essas, e mudar quanto às ações; b) haver prazos para a ação, sem que com a extinção dela se extinga a pretensão ou o direito subjetivo; c) existirem direitos subjetivos e até pretensões sem ação, como os créditos de jogo e certas situações, transitórias, de tempo de guerra ou de golpes de Estado. No entanto, a doutrina do século passado e começo deste emaranhou-se em conceitos a priori, que lhe impediam alcançar a necessária clareza, em assunto preliminar de tanta magnitude. Em 1817, Pocet (Traité des Actions) e, posteriormente, F. C. von Savigny, G. F. Puchta, Gustav Pescatore e a maioria dos juristas dos povos latinos entenderam que a ação é poder inerente ao direito e, pois, elemento mesmo do direito subjetivo. Identificar-se-ia com ele, ou, pelo menos, com a sua fase correspondente à violação. No fundo, o resíduo dos séculos despóticos, que tentara prevalecer contra a decantação dos elementos de vontade violenta, psicanaliticamente insertos na legislação e na doutrina” [PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil – tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 121-122].

O garantismo afiança seu fundamento na estrita legalidade. Pois bem: e quando a legalidade se dirige para a satisfação de um crédito? Dirão, talvez, que o juiz preocupado com essa legalidade inconveniente seria “defensor da moral”, simplesmente por reprovar “a conduta do réu que deixa de pagar as suas dívidas injustamente” [cf. RAATZ, Igor. O juiz defensor da moral, o juiz defensor da verdade e o juiz defensor da lei: instrumentalismo, cooperativismo e garantismo processual. Disponível aqui]. Na prática, o garantismo processual se mostra um verdadeiro “direito processual pró-devedor”, por reprovar a conduta do exequente que deixa de receber seu crédito por um ilícito da parte contrária.

Segundo Antônio J. Carvalho Filho, “o garantismo se baseia no princípio hierárquico fundacional do sistema jurídico do estado, no qual a constituição se coloca em posição de superioridade com relação às leis”. Neste sentido, “o juiz republicano”, que é “aquele que que adota as premissas garantistas processuais”, “não lê a Constituição em tiras” [CARVALHO FILHO, Antônio J. Pequeno manual prático para o debate instrumentalistas (e afins) vs garantistas processuais. Disponível aqui]. É com consternação que vislumbro o garantismo processual preocupado apenas com tiras da Constituição da República: tudo, absolutamente tudo, giraria em torno da cláusula geral do devido processo legal [art. 5.º, inciso LIV]. Por outro lado, gostemos ou não, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” [art. 5.º, inciso XXXV]. Impõe-se a legalidade para pautar o fenômeno da processualidade, mas este fenômeno, de algum modo, não pode impedir que o Poder Judiciário simplesmente menoscabe lesões jurídicas ou ameaça a direitos. A sentença de mérito, notadamente depois do trânsito em julgado, dignifica uma crise jurídica e projeta um plano coercitivo para satisfação de um direito então reconhecido. É uma lógica “autoritária”? Não importa. Está na Constituição da República. Assim como está no plano da legalidade que a jurisdição poderá “determinar as medidas necessárias ao cumprimento da ordem de entrega de documentos e dados” [art. 773 do CPC/2015]; “determinar a inclusão do nome do executado em cadastros de inadimplentes” [§ 3.º do art. 782 do CPC/2015]; impor que o devedor responda “com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei” [art. 789 do CPC/2015]; reconhecer alguns atos como fraudatórios [art. 792 do CPC/2015]; e, claro, impor adjudicação, alienação e até a apropriação de frutos/rendimentos de empresa ou de estabelecimentos e de outros bens [art. 825 do CPC/2015]. A lógica do sistema executivo é bastante clara. Não há “moralismo”. Há legalidade. E, com a legalidade, há um mínimo de dignidade civilizacional. Ao lado de tanto idealismo – numa pureza quase kantiana –, o Judiciário é recheado de centenas de milhares de processos, com gastos astronômicos em tal máquina estatal. Essa é a dura realidade brasileira.

Tenho sérias dúvidas, atualmente, da divisão irrestrita entre processo e procedimento, a despeito de ter empreendido esforço teórico de quase um ano de reflexões. E, reitero: o garantismo não traz respostas satisfatórias para a execução civil e para as mandamentalidades legais. Também ignora, em demasia, um aspecto que me parece lógico-objetivo: o processo tem uma “quididade” prática: na velha máxima carneluttiana, tem o objetivo de resolver a lide [ainda que haja um ou outro caso sem lide]. Ainda que se afirme o contrário, a legalidade ancora tudo isso [CPC, arts. 4.º e 8.º]. Algum conteúdo normativo a eficiência deve ter. O erário sustenta tudo isso; a magistratura nos custa muito caro; o Estado chamou para si praticamente todo o fenômeno jurisdicional; e há aspectos macroeconômicos a serem considerados. Mas aí são pontos diversos para trabalharmos em outra ocasião.

 

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura