ABDPPRO#35 - DEVER (OU GARANTIA) DE (NÃO) PROVAR CONTRA SI MESMO?(!) O DILEMA EM TORNO DO ART. 379, CPC.

30/05/2018

Coluna ABDPro 

 

  1. INTRODUÇÃO 

O art. 5º, LXIII, CRFB (“o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”), contempla a garantia de não autoincriminação.

O texto é prenhe daquilo que Frederik Schauer chama de subintegração[1], pois deixa de explicitar hipóteses que certamente estão em seu âmbito de incidência. Apenas para exemplificar: (i) não é garantia apenas do preso – também alcança quem está em liberdade, mas de algum modo implicado em qualquer fase de persecução criminal (detidos, presos processuais (flagrante, temporária e preventiva), investigados ou indiciados (em inquérito policial ou termo circunstanciado), réu lato sensu em ação penal (pública ou privada)); (ii) não é garantia vinculada ao meio procedimental de apuração da conduta criminosa – sempre que se investigue fato com eficácia jurídico-penal, mesmo que indireta e reflexamente, isto é, no bojo de apuração, judicial ou extrajudicial, de fato jurídico-civil (lato sensu = não penal) com reflexos penais. 

Trata-se de regra constitucional, razão por que em nenhuma hipótese se pode cogitar da sua (re)ponderação em concreto[2]. Decididamente, há limites inflexíveis à interpretação e ao poder de decidir[3].

O que importa definir aqui é se tal garantia incide no âmbito civil. Ou seja, verificar se há uma ampla garantia de não provar contra si mesmo, incidente também em relação aos fatos jurídico-civis sem qualquer repercussão criminal, ainda que reflexa ou indireta.

O art. 379, CPC, dá resposta positiva (“Preservado o direito de não produzir prova contra si própria, incumbe à parte: I - comparecer em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado; II - colaborar com o juízo na realização de inspeção judicial que for considerada necessária; III - praticar o ato que lhe for determinado.”). 

Todavia não é o entendimento que tem prevalecido, como se vê dos enunciados (proto)acadêmicos n. 51 do Fórum Permanente de Processualistas Civis e n. 31 do Conselho da Justiça Federal, segundo os quais “a compatibilização do disposto nos arts. 378 e 379 do CPC com o art. 5º, LXIII, da CF/1988, assegura à parte, exclusivamente, o direito de não produzir prova contra si quando houver reflexos no ambiente penal”[4]

Discorda-se profundamente de tal entendimento e pretende-se explicitar os porquês. Deve-se ter claro, porém, que o desacordo não se restringe a este tema, pontualmente. A divergência decorre do modelo de processo adotado, sendo a definição da garantia de não provar contra si mesmo apenas um desdobramento desse pano de fundo paradigmático. Mas não se descerá aos pormenores desse contraste teórico mais amplo, apenas reportando-se a ele no que for imprescindível à justificação do posicionamento aqui assumido. Por fim, um esclarecimento: o lugar de fala deste texto é o garantismo processual, nos termos que vem sendo desenvolvido, principalmente, por Eduardo José da Fonseca Costa, cujas características fundamentais serão expostas na sequência. 

  1. PROCESSO COMO INSTITUIÇÃO DE GARANTIA CONTRAJURISDICIONAL DO CIDADÃO

Processo é Constituição. Só se fala de processo em nível constitucional. Opta-se por não falar em constitucionalização do processo, pois isso pressupõe um processo fora da Constituição – embora não necessariamente contrário a ela, frise-se – e um processo dentro da Constituição. Não é assim. Toda linguagem sobre o processo é constitucional.

Sobre a natureza jurídico-constitucional do processo, explica Eduardo José da Fonseca Costa que “o processo — porque elo dialogal — habita a zona friccional entre a sociedade e o Estado, entre os jurisdicionados e a jurisdição, entre as partes e o juiz. Não se é de estranhar, assim, que o processo seja uma instituição estabelecida pela CF-1988”. Consequentemente, “uma exploração provisória do texto constitucional já identifica a institucionalidade garantística como o “ser” do processo: processo é instituição de garantia, não de poder estatal; “instituição garantística a serviço dos jurisdicionados”, não “instrumento a serviço do Poder jurisdicional (...) presta-se, enfim, a resguardar a liberdade das partes em relação ao Estado-juiz, não a igualdade entre elas”[5]

Daí o processo constituir uma garantia contrajurisdicional do cidadão, para protegê-lo contra excessos e abusos do poder. A CRFB impõe compreender o processo como “direito material público constitucional”, permeado por situações jurídicas ativas de titularidade das partes às quais correspondem situações jurídicas passivas de titularidade do Estado-juiz[6]. Para cada poder do Estado-juiz há uma garantia contrajurisdicional das partes.

Mas atenção: isso não significa um retorno à visão do processo como “coisa das partes”, despida de natureza pública. Isso seria equivocado. A natureza pública do processo é inegável.

Porém, o que é isto – a natureza pública do processo? O processo tem natureza pública por ser instrumento do Estado-juiz (como propõe o publicismo processual)? Evidentemente que não. O Estado não precisa do processo para exercer o seu poder. O Estado precisa do processo para exercer o seu poder legitimamente. É por meio dele que o exercício do poder estatal deixa de ser força bruta para ter foros de civilidade. O processo é a instituição que limita e dá racionalidade ao exercício do poder estatal; é condição de legitimidade do exercício do poder estatal, portanto.

Assim, o processo tem natureza pública “não porque sirva ao Estado-juiz, mas justamente porque o desserve quando age com arbítrio. É público não porque atenda ao interesse público, mas porque instaura uma relação jurídica garantística entre os cidadãos-jurisdicionados e o Estado-jurisdição. Mete-se entre o juiz e as partes para eliminar, neutralizar ou mitigar eventuais erros, excessos e desvios judiciais. Antepara os cidadãos do Estado. Protege-os dele. Impede que se rebaixem a súditos” [7].

Em razão de sua natureza pública, o processo não é coisa das partes, mas ele “também não é «coisa do juiz». É coisa para as partes (na feliz dicção da Professora Maria Elizabeth Fernandez, da Universidade do Minho)”[8]. Assim, o processo não é coisa das partes, não é coisa do juiz nem coisa das partes e do juiz. Ora, ele não é um Centauro – parte homem, parte cavalo. Ou bem ele é uma garantia – e é coisa das partes – ou bem ele é um instrumento – e é coisa do juiz. Não há meio termo possível aqui. Tais junções servem ao mito[9], não à realidade democrática.

De modo que a concepção do processo como instituição de garantia (garantismo processual) é plenamente compatível com a natureza pública do processo. Supor o contrário é pressupor num liame lógico inquebrantável entre a natureza pública do processo e o publicismo processual, o que constitui erro metodológico palmar. 

A natureza pública do processo (plano da ontologia do processo – o que o processo é) deriva do simples fato de ele regrar o modo como o Judiciário (Poder) exerce sua função típica, isto é, quando interage com os jurisdicionados. Tem natureza pública porque disciplina o exercício de função pública. Nada mais, nada menos. O publicismo processual, por outro lado, é uma concepção teórica (plano da epistemologia do processo – como o processo deve ser compreendido) que visa explicar o fenômeno processual a partir da ideia nuclear de que ele deve realizar os interesses das partes, mas também (e principalmente) fins públicos, os quais podem ser apresentados por formulações mais ou menos sofisticadas como, v.g., a atuação da vontade concreta da lei e a pacificação dos conflitos com justiça (conforme o instrumentalismo uspiano) ou a prestação de tutela aos direitos mediante reconstrução da ordem jurídica sob duplo discurso (conforme o cooperativismo). 

Mas há outras formas de produzir conhecimento sobre o processo. O garantismo processual, v.g., reconhece a natureza pública do processo (o que o processo é), mas nega a epistemologia publicista (como o processo deve ser compreendido). Afinal, se o ser público do processo (o que o processo é) deriva do fato de ele regrar as relações entre o Estado-juiz e as partes, o ser publicista ou garantista das teorias de processo (como o processo deve ser compreendido) é resultado de uma decisão da comunidade teórica. 

E esse é o ponto: a comunidade teórica é livre para tomar tal decisão? Basta firmar, arbitrariamente, suas premissas e desenvolver um modelo a partir daí? Como aferir a correção ou incorreção desse ou daquele modelo teórico do processo? Não há liberdade e o caminho para testar a sua correção é submetê-los ao arranjo institucional de cada comunidade política (Constituição, leis etc.), que é variável no tempo e no espaço. Em outras palavras, os modelos teóricos devem ser constrangidos pela tradição, pela faticidade e pela historicidade (Gadamer). 

Nesse sentido, as normas postas pelas autoridades dos regimes da Alemanha nazista, da Itália fascista e da União Soviética comunista, v.g, consagravam, no plano da ontologia, a natureza pública do processo e permitiam, no plano da epistemologia, sustentar o publicismo processual[10]. Mas regimes democráticos marcados pelo constitucionalismo e sua vocação para a contenção do Poder, como o do Brasil pós-88 (?), posto consagrem, no plano da ontologia, a natureza pública do processo, não parecem permitir, no plano da epistemologia, a manutenção do publicismo processual. Vale dizer, Bülow, Klein e o caldo publicista a partir deles consolidado entre a segunda metade do séc. XIX e a primeira metade do séc. XX não são o fim da história; ela segue – e o teórico também deve seguir. Neste texto se crê que o publicismo não resiste ao texto constitucional e ao arranjo de Estado nele prescrito, mantendo-se entre nós apenas como ideologia (perceba-se isso ou não)[11]. Claro que todo discurso teórico tem um pano de fundo ideológico – este aqui não é exceção, caro leitor. O problema não é esse. O problema é não cotejar o discurso teórico e sua ideologia de base à normatividade constitucional e apurar se são compatíveis. É nesse ponto que se considera o publicismo processual insustentável entre nós[12]

A demonstração de como o publicismo processual e o garantismo processual definem as funções do processo e da jurisdição deixa o ponto ainda mais claro. 

No campo do publicismo processual, processo e jurisdição têm a mesma finalidade. Pelos instrumentalistas, é o que afirma o consagrado José Roberto dos Santos Bedaque: “processo e jurisdição têm o mesmo objetivo, o que é perfeitamente natural, visto que o primeiro constitui meio de atuação da segunda. Sendo o processo instrumento da jurisdição, deve ser entendido em função desta, ou seja, como instrumento de garantia do ordenamento jurídico, da autoridade do Estado”[13]. Pelos cooperativistas, veja-se a lição dos célebres Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero: “[no Estado Constitucional] o processo civil passou a responder não só pela necessidade de resolver casos concretos mediante a prolação de uma decisão justa para as partes, mas também pela promoção da unidade do direito mediante a formação de precedentes. Daí que a jurisdição no processo civil do Estado Constitucional tem por função da tutela aos direitos mediante a prolação de decisão justa para o caso concreto e a formação de precedente na formação da unidade do direito para a sociedade em geral”[14]

Embora não sejam explícitos como os instrumentalistas, essa passagem cooperativista também oferece identidade teleológica entre processo e jurisdição. É a interpretação possível tanto pelo conjunto da obra[15], como pelo próprio trecho transcrito, afinal, bem pensadas as coisas, o processo não resolve casos nem promove unidade ao direito mediante a formação de precedentes; a jurisdição é que resolve casos e forma precedentes através do processo[16]. De resto, “resolver casos” (pretenso fim do processo) nada mais é que “dar tutela aos direitos” (fim da jurisdição), e responder pela “promoção da unidade do direito mediante a formação de precedentes” (pretenso fim do processo) é ter “por função (...) a formação de precedente” (fim da jurisdição). Portanto, também para a cooperação se nota a absorção do processo pela jurisdição, fazendo daquele instrumento desta, mantendo esse modelo teórico aferrado ao núcleo duro do publicismo processual de cariz bulowiano e kleiniano (portanto, à noção de que o eixo central da epistemologia processual é a jurisdição, não o processo[17]).

No campo do garantismo processual, por outro lado, a questão é tratada de modo radicalmente diverso. Eduardo José da Fonseca Costa, um de seus grandes próceres no Brasil, afirma que a função da jurisdição é aplicar imparcialmente o direito e que a função do processo é garantir que essa aplicação se dê sem desvios e excessos[18]. Tal formulação possui o mérito de efetivamente traçar (e não apenas forjar semanticamente, como faz a construção cooperativista) as diferentes funções do processo e da jurisdição, rompendo radicalmente com o núcleo duro do publicismo processual[19]-[20].

Tudo isso demonstra o “equívoco de José Carlos Barbosa Moreira, quando chama o garantismo processual de «neoprivatismo» (v. O neoprivatismo no processo civil. RePro, v. 30, n. 122, p. 9-21, abr. 2005). O termo obscurece, porquanto indevidamente associa o garantismo ao ordo iudiciorum privatorum romano e, em consequência, a algo ruínico e démodé; por exclusão, associa o instrumentalismo processual – apelidado de «publicismo» – a la dernière mode à Paris, à coqueluche do momento. Tudo como se o mundo «evoluísse» do privado ao público. Como se o Estado fosse a causa finalis da história. É o próprio HEGEL proclamando que «Der Staat ist göttlicher Wille als gegenwärtiger, sich zur wirklichen Gestalt und Organisation einer Welt entfaltender Geist» (Grundlinien der Philosophie des Rechts. § 270) (tradução livre: «O Estado é a vontade divina como espírito presente ou atual que se desenvolve na formação e organização de um mundo»)”[21]

Portanto, constitui erro metodológico estabelecer um elo necessário entre a natureza pública do processo (ontologia processual) e o publicismo processual ou o garantismo processual (epistemologia processual). A relação entre eles é apenas contingencial, estabelecida nos termos da institucionalidade vigente em cada comunidade política. No caso da CRFB, em particular, considera-se que o processo é tratado como instituição de garantia contrajurisdicional, justificando a adoção do garantismo processual. 

Esse modo de compreender o arranjo constitucional brasileiro implica consequências paradigmáticas tanto no plano teórico quanto no normativo, senão vejamos. 

  1. DIREITO PROCESSUAL E DIREITO PROCEDIMENTAL: DIMENSÕES TEÓRICAS E NORMATIVAS DA DISTINÇÃO. A EFICÁCIA TRANSPROCEDIMENTAL DAS GARANTIAS PROCESSUAIS. 

Começando pela dimensão teórica, é impositivo concluir que a ciência do processo tem por objeto de estudo o programa normativo[22] constitucional.

Consequentemente, não se deve falar em Teoria Geral do Processo. Isso pressupõe a existência de um gênero processual (“geral” – programa normativo constitucional) do qual derivam espécies processuais (“específico” – programa normativo infraconstitucional civil, penal etc.), o que não ocorre. Se o processo é o conjunto de garantias contrajurisdicionais que a Constituição assegura às partes – cujo respeito os tira da posição de súditos e os torna cidadãos –, não há essa relação processo-gênero e processo-espécie, quer sob o aspecto conteudístico (civil, penal etc.), quer sob o aspecto de status normativo (constitucional e infraconstitucional). Daí se falar em Teoria Unitária do Processo em vez de Teoria Geral do Processo, diferença que, posta nesses termos, passa longe de ser meramente semântica[23]

O que se convencionou chamar de processo civil, processo penal, processo do trabalho etc., cujo objeto de estudo é o programa normativo infraconstitucional (CPC, CPP, CLT etc.), constitui, em verdade, procedimento (civil, penal, trabalhista etc.). O processo é apenas constitucional, já o procedimento pode ter tantos adjetivos quantos sejam os tipos de litígios cuja estrutura de resolução se preste a disciplinar (civil, penal, trabalhista etc.).

Assim, a Constituição institui o processo e também pode instituir procedimentos, mas a lei infraconstitucional institui apenas procedimentos, nunca processo. 

De modo que há disciplinas diversas, posto relacionadas: a processualística, cujo objeto de estudo é o programa normativo constitucional; e a procedimentalística, cujo objeto de estudo é o programa normativo infraconstitucional. A primeira interfere nesta, mas não se debruça diretamente sobre o seu objeto de estudo; a segunda desenvolve-se em atenção à primeira, é por ela influenciada e condicionada, mas não se debruça diretamente sobre o seu objeto de estudo. Mas atenção: as duas são relevantes, apenas seus objetos de estudo direto são diferentes.

Ademais, como o programa normativo infraconstitucional possui especificidades próprias em cada área (civil, penal, trabalhista etc.), resta inviabilizada uma Teoria Unitária do Procedimento. Não há unidade no âmbito da infraconstitucionalidade, apenas semelhanças episódicas, logo, não-abstraíveis a um conjunto comum. Assim, devem ser divisadas apenas teorias procedimentais específicas (civil, penal, trabalhista etc.), as quais possuem como elemento comum a Constituição[24], no plano normativo, e a Teoria Unitária Do Processo, no plano teórico. 

Dessa depuração dos planos normativo (constitucional e infraconstitucional) e teórico (processualística e procedimentalística) decorrem as sobrecitadas consequências paradigmáticas. 

No plano normativo da constitucionalidade, em tese, o constituinte derivado pode modificar a constituição, o que inclui a inserção, supressão e modificação de qualquer dos seus preceitos. Não é assim no constitucionalismo brasileiro, que veda a elaboração de emendas constitucionais tendentes a abolir suas cláusulas pétreas, dentre as quais se incluem as garantias processuais (art. 60, § 4º, IV, CRFB). Assim, ao constituinte derivado é defeso elaborar emendas de supressão ou modificação (leia-se: redefinição) do núcleo garantístico essencialmente contrajurisdicional. Em tempo: garantias são situações jurídicas ativas de titularidade das partes que atuam como controles (o que pode fazer) e limites (como pode fazer) à atuação do Estado-juiz. Assim, será inconstitucional qualquer emenda tendente a reformular garantia constitucional de tal modo a atribuir sua titularidade ao Estado-juiz, ainda que em conjunto com as partes (daí o equívoco de afirmar-se que o juiz é sujeito ativo do contraditório, simétrico no debate[25]). 

No plano normativo da infraconstitucionalidade, por consequência, é defeso ao legislador ordinário instituir preceitos normativos procedimentais redefinidores de preceitos normativos processuais. Seria admitir que a lei infraconstitucional alterasse o sentido da Constituição, o que é esdrúxulo. Porque legisla sobre procedimentos – condição em que está vinculado e limitado à (con)textualidade constitucional –, não pode o legislador ordinário dar a uma garantia processual conteúdo que repute “adequado” a esta ou daquela espécie de procedimento, muito menos atribuir ao Estado-juiz a titularidade de garantia processual, algo que, como visto acima, bem o constituinte derivado poderia fazer[26]

No plano teórico, é vedado ao processualista e ao procedimentalista o patrocínio de (re)leituras das garantias constitucionais que lhes suprimam o sobrecitado núcleo garantístico essencial, ainda que sob o pretexto de promover adaptações às especificidades deste ou daquele procedimento (o contraditório, v.g., não pode ser titularizado também pelo juiz, nem ter conteúdo diverso entre os procedimentos civil, penal ou trabalhista). Quando a procedimentalística sustenta tais “adaptações”, ocorre uma espécie de procedimentalização do processual, além de um transbordamento interprocedimental que resulta em colonizações deletérias e deturpadoras das especificidades de cada um desses campos (invariavelmente do procedimento civil sobre o procedimento penal, nunca o contrário e sequer em via dupla[27]). Com um só movimento, se faz ruína da força normativa da Constituição e das especificidades procedimentais infraconstitucionais.

Decorre de tudo isso a conclusão de que as garantias processuais (plano constitucional) incidem em todos os procedimentos (plano infraconstitucional), indiscriminadamente[28]. A isso se chama eficácia transprocedimental das garantias processuais

Ninguém negará a incidência, v.g., das garantias do acesso à justiça, do contraditório e da ampla defesa em todos os procedimentos. Sem as garantias processuais nenhum procedimento é devido. Trata-se de corolário da unidade garantística exercida pela Constituição. “Nem mesmo a chamada “presunção de inocência” se cinge – como se sói sustentar – ao procedimento penal”[29]-[30], como reconhece a Corte Interamericana de Direitos Humanos[31].

Por essa razão, não deve surpreender a afirmação de que até mesmo as garantias aparentemente específicas do procedimento penal incidem nos demais procedimentos, inclusive aquela do art. 5º, LIII, CRFB, que passa a ser compreendida como ampla garantia de não provar contra si mesmo. 

  1. A GARANTIA DE NÃO PROVAR CONTRA SI MESMO NO PROCEDIMENTO CIVIL. COERÊNCIA E DA INTEGRIDADE. CONTRADIÇÕES DO PUBLICISMO E CAMINHO PARA HARMONIZAÇÃO.

4.1. Eficácia transprocedimental da garantia de não provar contra si mesmo 

O que foi desenvolvido até aqui pavimenta o caminho para sustentar o equívoco dos enunciados 31 do CJF e 51 do FPPC. 

A eficácia transprocedimental do art. 5º, LIII, CRFB, impõe reconhecer a existência da ampla garantia de não provar contra si mesmo, que incide em relação a qualquer fato jurídico-civil e a todos os procedimentos civis lato sensu[32].

Posta a questão nesses termos, conclui-se que o art. 379, CPC, sequer instituiu novidade normativa no direito brasileiro, apenas explicitou textualmente conteúdo latente do art. 5º, LIII, CRFB, o que torna ainda mais infundado o entendimento vertido nos enunciados (proto)acadêmicos acima referidos[33]

Mas é possível ir além. 

4.2. Publicismo processual: justiça, verdade e... contradições 

A decidibilidade dos conflitos é o problema central da teoria do direito, a ponto de já se haver dito que a função social da dogmática jurídica é fornecer critérios para que tal atividade se dê de modo racional e previsível[34].

Para tanto é imprescindível haver coerência, compreendida como a aceitação de todas as consequências decorrentes das premissas assumidas, salvo, é claro, se o elo lógico for rompido por previsão do direito positivo (o direito é fenômeno artificial de imputação, não natural de causalidade[35]).

A incoerência evidencia soluções ad hoc, comprometedoras da previsibilidade e da racionalidade dos critérios decisórios (teóricos e práticos). Soluções incoerentes revelam que suas premissas são falsas (=incorretas) – caso em que devem ser abandonadas –, ou que são empregadas conforme a conveniência do utente (=discricionárias) – caso em que devem ser desprestigiadas.

Toda a doutrina contrária à ampla garantia de não provar contra si mesmo é filiada ao publicismo processual, seja qual for a tonalidade assumida (instrumentalista ou cooperativista). Mas quando se submete seu chão linguístico ao crivo da coerência (e integridade) constata-se profunda contradição entre seus próprios fundamentos.

Vejamos.

Para os publicistas, dada “a realidade político-institucional” prevista na CRFB, que dispõe ser objetivo fundamental do Estado construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), reduzir desigualdades sociais (art. 3º, III) e promover o bem de todos (art. 3º, IV), o processo civil “não pode deixar de ter os mesmos escopos sociais e políticos perseguidos pela Constituição. (...) A ordem constitucional se acha comprometida com a promoção da justiça, e não se garante justiça, sem que o juiz (representante do Estado no processo) se empenhe em apurar a verdade dos fatos em todos dos quais se estabeleceu o litígio. Se a Constituição exige dele solução justa, é claro que lhe impõe o dever de preparar, adequadamente, para conhecer a verdade e com base nela chegar à justa composição do conflito”, evidenciando que “além do interesse da parte, em jogo na lide, há o interesse estatal, em que a lide seja composta de forma justa e segundo as regras do direito[36]

Fundindo a natureza pública do processo ao publicismo processual[37], defendem os publicistas a existência de um processo justo, que exige decisões conforme à verdade correspondente[38] e impõe a acentuação dos poderes judiciais de apuração da verdade, afinal “”[39]

Assim, o juiz deve ter (e exercer) poderes instrutórios oficiosos, pois “quando do aforamento da ação, a parte dispõe do seu interesse material (ainda hipotético) e, por conseqüência, do poder de pedir a tutela jurisdicional. Já dentro do processo, as iniciativas, especialmente de conteúdo probatório, são escolhidas à vista da técnica própria do instrumento processual, conforme pareçam mais adequadas para atingir a finalidade desejada”, ou seja, decidir conforme a verdade, algo que, para alguns, torna desimportante a natureza disponível ou indisponível do direito discutido, não se podendo mais “aceitar o Juiz inerte, de braços cruzados, e que encarava o processo como coisa das partes. E aí está o art. 130 do CPC [de 1973, correspondente ao art. 370, CPC/15] para comprovar a proposição”[40]

Nessa ordem de ideias, a ampla garantia de não provar contra si mesmo frustraria o desiderato constitucional maior de um processo justo orientado à prolação de decisões conforme a verdade correspondente, donde se tira, inclusive, fundamento para outorgar amplos poderes instrutórios oficiosos ao juiz[41]

Sucede que o art. 379, CPC, enquanto ampla garantia de não provar contra si mesmo, nada mais é espécie do gênero regra de restrição probatória.

Tais regras possuem o seguinte conteúdo: (i) instituem a garantia de a parte não ser obrigada a produzir prova capaz de prejudicá-la e (ii) proíbem o juiz de (ii.1) interpretar contra a parte os comportamentos praticados com base nas regras de dispensa e (ii.2) decidir com base em provas produzidas ao arrepio das regras de dispensa.

Ademais, são muito comuns, previstas tanto na Constituição (v.g., a proibição de provas obtidas por meios ilícitos – art. 5º, LVI) como nas leis infraconstitucionais (v.g. a dispensa de depoimento sobre fatos torpes – art. 388, I, CPC).

Eis o ponto: se a busca da verdade correspondente é corolário do processo justo e fundamenta a rejeição da interpretação do art. 379, CPC, como consagrador de uma ampla garantia de não provar contra si mesmo, seria de se esperar que, por coerência, também fossem contrários a todas as demais regras de restrição probatória. 

Mas não é o que ocorre – e precisamente esta é a contradição: por que o mesmo óbice não é levantado em relação às demais regras de restrição probatória (v.g. arts. 344, 375, 386 e 388, CPC)? O que justificaria essa contradição? 

Ora, a assunção das premissas publicistas impõe, como expressão de coerência, que sejam rechaçadas todas as regras infraconstitucionais de dispensa de prova (pelo menos daquelas sem claro amparo em regra constitucional correspondente). Ocorre que os publicistas não só não resistem como, ao contrário, reconhecem expressamente a validade das demais regras de restrição probatória[42]

Mais do que reconhecer sua validade os publicistas louvam tais regras, pois elas também atuam como técnica de aceleração procedimental. Não é impressionante a facilidade com que o aparentemente inquebrantável axiologismo justificador da busca da verdade cede ao utilitarismo subjacente à pretensão de julgamentos expeditos?

Uma possível explicação para esse curioso estado de coisas seja o entendimento segundo o qual a condução material do processo não constitui autêntico dever, mas mera faculdade do juiz[43]. Mas se for assim, tem-se um paradoxo insolúvel: dada a relação entre liberdade-faculdade e obrigação-dever, qual seria o sentido de, com uma mão, erguer todo o edifício publicista, que, em última análise, quer substituir o império da liberdade privada das partes pelos deveres dirigentes do Estado-juiz (evitando que a sorte do litígio dependa apenas da atuação das partes, que podem não atuar a contento por desinteresse, inaptidão técnica ou debilidade social), para, com a outra mão, deixar o atendimento desse augusto escopo ao alvitre de cada juiz? Ao invés de substituir a liberdade das partes pelos deveres do juiz, se está substituindo a liberdade das partes pela liberdade do juiz? É evidente a inconsistência da tese de que os deveres de condução material constituem mera faculdade do juiz, razão por que é razoável concluir que ela não vinga quantitativamente sequer entre os próprios publicistas. 

É preciso definir: ou (i) a normatividade da CRFB impõe a adesão ao publicismo processual e, por coerência, não é tolerada nenhuma restrição probatória (salvo aquelas previstas na CRFB e na lei infraconstitucional baseada na CRFB – quiçá em seu bloco de constitucionalidade); ou (ii) a normatividade da CRFB não impõe a adesão ao publicismo processual e, por coerência, é tolerada toda restrição probatória (mesmo aquelas não previstas na CRFB – quiçá em seu bloco de constitucionalidade). A coerência impõe que se acate a solução (i) ou (ii). Tertium non datur

Como a adesão à solução (ii) seria claramente contrária aos postulados da epistemologia publicista e não se vê seus adeptos serem fiéis à solução (ii), embora a coerência assim deles exija, perde toda sua força o argumento de que o art. 379, NCPC, não contempla a ampla garantia de não provar contra si mesmo, o que fica restrito aos fatos jurídico-penais. A posição ora examinada é infiel aos próprios postulados epistemológicos, revela-se ad hoc e deve ser repelida.

4.3. Regras de restrição probatória enquanto microgarantias da parte 

No marco epistemológico do garantismo processual não há dificuldade para reconhecer a validade das regras de dispensa de prova, desde que reduzidas ao status de microgarantias instituídas em prol da parte. Explica-se. 

Em uma democracia participativa (art. 1º, parágrafo único, CRFB) o contraditório tem conteúdo de garantia de influência. Por seu turno, a prova é o elemento, por excelência, de influência do julgador acerca das questões fático-jurídicas. Logo, o fundamento constitucional da prova é a garantia do contraditório.

O art. 5º, LV, CRFB, prescreve que o contraditório é assegurado aos litigantes. Significa que o contraditório é uma relação jurídica entre os litigantes e os julgadores, sendo os primeiros titulares das situações jurídicas ativas e os últimos titulares das situações jurídicas passivas decorrentes da referida garantia. Em suma, o contraditório é direito das partes e dever dos juízes[44].

Reduzindo essas considerações aos modais deônticos da proibição, da obrigação e da permissão das normas jurídicas, tem-se que (i) as situações jurídicas ativas decorrentes do contraditório se expressam pelo modal deôntico da permissão e que (ii) as situações jurídicas passivas decorrentes do contraditório se expressam pelos modais deônticos da proibição e da obrigação. 

Nem poderia ser diferente, pois se (i) se expressasse, para as partes, pelos modais deônticos da proibição e/ou da obrigação haveria a conversão de situação jurídica ativa em situação jurídica passiva, do mesmo modo que se (ii) se expressasse, para os juízes, pelo modal deôntico da permissão haveria conversão de situação jurídica passiva em situação jurídica ativa, em completo desalinho com a regra do art. 5º, LV, CRFB.

Em outras palavras, será inconstitucional toda norma que redimensionar, para as partes, as situações jurídicas decorrentes do contraditório à posição passiva (=de dever) e, para os juízes, as situações jurídicas do contraditório à posição ativa (=de direito). Afinal, o art. 5º, LV, CRFB, prescreve que o contraditório é direito das partes e dever do juiz. 

Se a prova (e suas situações jurídicas) decorre(m) do contraditório, então, em última instância, as regras de restrição probatória são regras de restrição do contraditório. Logo, para serem constitucionalmente válidas devem ser veiculadas sob o modal deôntico de permissão, nunca de proibição e/ou proibição.

Em outras palavras, tais regras serão: (i) válidas, se interpretadas no sentido de que a parte tem à parte é permitido não provar contra si sem que dessa conduta se possa atribuir consequências prejudiciais a ela (=é permitido não provar contra si); (ii) inválidas, se interpretadas no sentido de que (ii.1) a parte é obrigada a provar contra si mesma e que dessa conduta se pode atribuir consequências prejudiciais a ela (=é obrigado provar contra si), e de que (ii.2) a parte é proibida de provar contra si mesma e que dessa conduta não se pode atribuir consequências prejudiciais a ela (=é proibido provar contra si). 

Veja-se que tudo se resolve com respeito à liberdade de autoconformação da parte: enquanto a solução (i) respeita o direito fundamental de liberdade, as soluções (ii.1) e (ii.2) a violam o direito fundamental de liberdade. 

Nessa ordem de ideias, é importante observar que as regras de restrição probatória apenas permitem que a parte não prove contra si e proíbem o julgador de atribuir a essa opção qualquer consequência negativa. No entanto, jamais proíbem a parte de, informada e conscientemente, provar contra si – mais do que isso, nesse caso, obrigam o juiz a imputar as consequências negativas racionalmente devidas no caso concreto. 

Tome-se o exemplo do art. 388, I, CPC: a parte não pode ser obrigada a provar contra si fatos criminosos ou torpes a ela imputados, mas pode, sopesando o custo-benefício de assim proceder, produzir tais provas e arcar com os efeitos jurídicos e/ou morais daí decorrentes. 

Em síntese, para a parte o modal deôntico das regras de restrição probatória é (=só pode ser) de permissão (de não provar contra si e não ser prejudicada por isso), não de obrigação (de provar contra si e ser prejudicada por isso) nem de proibição (de provar contra si mesma e não poder ser prejudicada por isso). 

Analiticamente, assim deve ser decomposto o conteúdo das regras de restrição probatória: (i) em relação à parte, (i.1) é permitido não provar contra si e (i.2) é permitido provar contra si, cabe à parte optar por (i.1) ou (i.2); (ii) em relação ao juiz, (ii.1) em (i.1) é proibido (a) de interpretar a omissão contra a parte e (b) de decidir com base em provas produzidas ao arrepio das regras de restrição, e (ii.2) em (i.2) é obrigado a atribuir à prova que a parte informada e voluntariamente produziu contra si o peso que racional e coerentemente for compatível com todo o conjunto probatório, ainda que prejudicial a ela.

É nesse sentido que se interpreta o art. 379, CPC, como uma regra que, à semelhança de tantas outras, instituiu hipótese de restrição probatória. Sua diferença em relação às demais é ser uma norma geral de restrição probatória, status que de modo algum suprime sua conformidade constitucional. É regra válida e deve ser respeitada.

É nesse sentido que se diz que as regras de restrição probatória são microgarantias instituídas em prol da parte. São garantias de liberdade – aliás, garantia é liberdade. 

4.4. Outras regras de restrição probatória, o silêncio dos publicistas e o agravamento da contradição: o problema da hierarquização ad hoc dos direitos e garantias fundamentais e o amesquinhamento da garantia do devido processo legal  

Bem vistas as coisas, o art. 386, CPC (“não incide confissão ficta quanto a parte se recusar a depor por justo motivo”) já contem uma cláusula geral de restrição probatória e não encontra maior resistência entre os procedimentalistas civis ligados ao publicismo.

Mas caberia indagar-lhes: justo motivo, salvo aqueles já indicados na própria CRFB, poderiam neutralizar o propalado escopo social da jurisdição (=pacificar com justiça = decidir conforme a verdade correspondente)?  Por que tal dispositivo não é alvo de persistente objeção por parte de tais teóricos? 

No marco da epistemologia do garantismo processual não se vê qualquer inconveniente para reconhecer que um justo motivo para a parte se recusar a depor é exatamente não provar contra si mesma, tanto por força do art. 5º, LIII, CRFB, quanto do art. 379, CPC. Ainda pende uma resposta consistente dos publicistas. 

Ademais, os publicistas também não apresentam resistência ao art. 388, I, CPC (o litigante não é obrigado a depor sobre fatos criminosos e torpes). Reconheça-se que são corretos os fundamentos que comumente lançam para tanto: em relação aos (i) fatos criminosos, reconhecem que tal garantia está prevista na CRFB; no que diz respeito aos (ii) fatos torpes, aqueles vergonhosos, desonestos ou impudicos, relativos à vida pretérita do depoente[45], reconhecem que é restrição instituída para proteger o direito fundamental à intimidade[46], ou seja, para livrar o depoente de repisar episódios vexaminosos e que talvez já sequer correspondam com seu atual modo de vida e personalidade (em diálogo com o direito ao esquecimento). 

Eis o ponto em que se revela uma profunda contradição – talvez um paradoxo – no mapa argumentativo dos publicistas: estabelece-se uma hierarquização ad hoc dos direitos e garantias fundamentais. 

De largada, se autores ligados ao publicismo entendem que o processo, em si, é um direito fundamental[47], seria coerente defenderem que regras de dispensa de prova também se legitimam com base no próprio direito fundamental ao processo (e não só nos direitos fundamentais à honra, à moral, à imagem etc.). Afinal, se todos os direitos e garantias fundamentais previstos na CRFB condensam o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CRFB) – e não parece haver divergência quanto a isso –, então a privacidade (art. 5º, X, CRFB) e as garantias do devido processo legal (art. 5º, LIV, CRFB), como a de não provar contra si mesmo (art. 5º, LIII, CRFB), são igualmente dignas de igual proteção (aliás, no marco teórico aqui adotado as garantias processuais possuem substancialidade[48]). 

Ora, considerando que, no extremo, é a tutela dos direitos e garantias fundamentais que justifica a instituição de regras de restrição probatória, então – tomando o art. 388, I, CPC, como pano de fundo – do mesmo modo que é lícito dispensar o depoimento sobre fato torpe ainda que juridicamente relevante (aquele que, provado, prejudicaria a parte juridicamente) para proteger o direito fundamental à intimidade, também deve ser considerado lícito, sob pena de profunda contradição, a dispensa do depoimento sobre fato não torpe e juridicamente relevante (aquele que, provado, não causa desonra à parte e a prejudica juridicamente) para proteger a garantia de não provar contra si.

A explicação para essa contradição decorre de outra contradição, mais profunda, qual seja, afirmar, de um lado, que o processo, em si, é um direito fundamental, mas, de outro lado, continuar a pensar o processo pelas lentes do publicismo processual, que não considera o processo, em si, uma garantia processual.

É precisamente essa visão instrumentalizada do processo que explica o porquê de ele ser tão facilmente posto abaixo dos demais direitos e garantias fundamentais. 

Eis a solução publicista: se o processo é o instrumento por meio do qual a jurisdição soluciona conflitos com justiça, ou seja, conforme a verdade – como querem os instrumentalistas –, ou se o processo serve à outorga de tutela adequada, efetiva e tempestiva aos direitos, mediante duplo discurso, no bojo de um processo justo, que deve conduzir a decisões conforme a verdade correspondente – como querem os cooperativistas –, e o art. 379, CPC, não tem ligação direta com algum direito ou garantia fundamental sem conteúdo processual, então ele não deve ser considerado uma regra válida de restrição probatória. 

Como tal formulação deixa muito clara, aí o processo não chega nem perto de ser pensado, ele mesmo, o processo, como direito fundamental. Isso é dito, mas não vertido. É o que explica o porquê de as garantias processuais serem compreendidas como um “contra alguém”, mas o próprio processo não ser pensado do mesmo modo. Há garantias processuais, mas o processo, ele próprio, não o é.

Fica claro que as radicais consequências decorrentes da natureza de direito (ou melhor, de garantia) fundamental do processo não serão alcançadas enquanto a epistemologia do processo (ou do procedimento?) seguir colonizada pelos axiomas do publicismo processual. Persistirá a tradição inautêntica que impede o desvelamento da natureza de instituição de garantia do processo, única compatível com a CRFB. 

O que desemboca em problemas gravíssimos: risco à autonomia do direito e ao equilíbrio entre os poderes. Afinal, sem a consolidação de alguma teoria da decisão – veja que não se está aqui exigindo o acatamento de uma teoria específica, embora se tenha a convicção de que a melhor é aquela construída na linha da Crítica Hermenêutica do Direito (Lenio Streck) –, os julgadores são municiados juízos de reponderação que tornam o Judiciário uma espécie de terceiro turno permanente do processo constituinte.

Exatamente por isso não surpreende a manifesta contradição à base do maior subproduto dessa combinação desastrosa (ausência de teoria da decisão + tolerância com juízos de reponderação): a instituição de provimentos vinculantes com a intenção de gerar a segurança, isonomia e racionalidade a um ambiente de insegurança, desigualdade e irracionalidade forjado exatamente na esteira da ausência de uma teoria da decisão somada à tolerância com juízos incessantes de reponderação... 

Retomando o ponto, nada justifica a primazia, em abstrato, do direito fundamental à intimidade, à honra e à imagem em detrimento das garantias processuais. Desse modo, se o direito de não provar contra si mesmo pode tutelar aqueles primeiros direitos fundamentais, seu objeto de tutela podem ser igualmente as garantias processuais.

4.5. Bens jurídico-civis, bens jurídico-penais, suas respectivas sanções e a busca por coerência: um ponto intocado pelos publicistas, mas que merece atenção

Uma reflexão sobre a tutela que o sistema dispensa aos bens jurídico-penais e jurídico-civis pode abrir mais uma clareira de compreensão capaz de reforçar o reconhecimento da ampla garantia de não provar contra si mesmo. 

Em princípio e em tese, provar ilícito penal contra si é assumir a prática de ato contrário aos bens jurídicos mais sensíveis da ordem jurídica e sujeitar-se às sanções mais graves do sistema (restrição de liberdade). Por outro lado – e ainda em princípio e em tese –, provar ilícito civil contra si é assumir a prática de ato contrário aos bens jurídicos menos sensíveis da ordem jurídica e sujeitar-se às sanções menos graves do sistema (desapossamento, transformação ou expropriação).

Mesmo assim, o art. 5º, LIII, CRFB, blindou o sujeito de se autoincriminar. Com isso, o sistema aceita deixar de aplicar sanções mais graves (em regra, restrição de liberdade) a quem lesa os bens jurídicos mais sensíveis que lhe cabe tutelar (os bens jurídico-penais). 

Sendo assim, por que não se reconheceria a mesma garantia de não provar contra si mesmo quando se tratar de lesão a bem jurídico menos sensível (os bens jurídico-civis) e sujeito às sanções mais brandas do sistema (desapossamento, transformação e desapossamento)? 

Visto por esse aspecto, estender a garantia de não provar contra si aos fatos jurídico-civis é profundamente compatível com a garantia de não autoincriminação. 

Verdade que há bens jurídico-civis mais relevantes que alguns bens jurídico-penais. Assim, seria coerente, ao menos em termos lógicos, afastar a garantia de não autoincriminação nos casos de bens jurídico-penais menos relevantes que alguns bens jurídico-civis, e atrair a incidência de tal garantia em relação aos bens jurídico-civis mais relevantes que certos bens jurídico-penais. 

Todavia, essa solução está fora de cogitação no plano jurídico-positivo, pois o constituinte originário não fez qualquer ressalva nesse sentido, vale dizer, todos os fatos jurídico-penais, sejam eles mais ou menos sensíveis que bens jurídico-civis, estão sujeitos à incidência da garantia de não autoincriminação. 

Mas ainda resta uma questão: não seria coerente sustentar que a garantia de não provar contra si também incidisse pelo menos em relação àqueles fatos jurídico-civis mais relevantes que certos bens jurídico-penais? Fica a questão para reflexão. 

4.6. A garantia de não provar contra si mesmo aniquila o direito à prova? 

A última consideração a se fazer é verificar se a leitura ora defendida da garantia de não provar contra si mesmo aniquila o direito à prova, pelo menos vista pelo lado da parte contrária, aquela a quem aproveitaria exigir-se que uma prova provasse contra si. 

A resposta é negativa e a razão é singela: em razão da decomposição analítica do art. 5º, LV, CRFB, conclui-se que uma parte (P1) não tem o direito de que a outra parte (P2) prove contra si (P2) para beneficiar-lhe (P1). 

É certo que tal solução pode tornar mais difícil o labor de quem titulariza o ônus da prova, a ponto de conduzir a decisões contrárias à verdade como correspondência. Mas isso de nenhum modo é um problema. Primeiro, porque até hoje é malogrado todo empreendido destinado a assegurar que a decisão tomada corresponde aos fatos tal como ocorridos no plano fenomênico, mormente, mas não só, nas ciências humanas (verdade por correspondência)[49]. Segundo, porque a única verdade produzível no processo é aquela hermenêutica, compreendida como aquela obtida por meio do respeito irrestrito às regras jurídicas, inclusive aquelas de restrição probatória, assim é hermeneuticamente verdadeira a decisão que resulta da cognição possível em razão da incidência da ampla garantia de não provar contra si[50].  

Somando as presentes considerações àquelas explicitadas no item 4.3 conclui-se pela improcedência do argumento de que a tese ora defendida aniquila o direito à prova, afinal o que se sugere aniquilado sequer existe, e não se pode aniquilar o que não é

4.7. Último suspiro: o legislador ordinário pode instituir a ampla garantia de não provar contra si 

Mesmo que se entendesse que a CRFB consagra apenas a garantia de não autoincriminação, isso não impediria a instituição da ampla garantia de não provar contra si pelo legislador ordinário. Não há qualquer inconstitucionalidade nisso.

Ao contrário, é-lhe franqueado ampliar o âmbito de proteção das garantias do cidadão contra os excessos e abusos do Poder[51]. E é corriqueiro que o faça, instituindo direitos que não estão direta ou expressamente previstos na Constituição (como o de não cumprir pena antes do trânsito em julgado da decisão penal condenatória, ex vi do art. 283, CPP). 

Desse modo, excluída a eficácia transprocedimental do art. 5º, LIII, CRFB, e os demais argumentos ora desenvolvidos, nada impede a interpretação do art. 379, CPC, como instituidor da ampla garantia de não provar contra si mesmo. 

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Quando se indaga sobre o fundamento normativo da ampla garantia de não provar contra si mesmo, a resposta é simples: o art. 5º, LIII, CRFB, em face de sua eficácia transprocedimental, e o art. 379, CPC, que o explicita no âmbito dos fatos jurídico-civis. Entender o contrário é procedimentalizar assunto que é da ordem do constitucional, rebaixamento inconcebível.

Situada a questão apenas no nível infraconstitucional, é sem sentido pretender interpretar o art. 379, CPC, “de acordo”, v.g., com os arts. 378, 388, 400, parágrafo único, CPC. Ora, estes é que devem ser interpretados de acordo com o art. 379, CPC, que é regra geral de restrição probatória. Qualquer proposta de “harmoniza-lo” com o conjunto do CPC para retirar-lhe essa eficácia de microgarantia individual de restrição probatória é sabotagem que o deixa oco de normatividade. É reduzi-lo a um busto de animal empalhado fixado na parede de um recinto dedicado à contemplação das caças abatidas, um simulacro de vida resultado de certo sadismo e gosto estético duvidoso... 

Ficariam sem eficácia dispositivos como o art. 400, parágrafo único, CPC? Sim, se interpretados como exigências de que a parte prove contra si e que o desatendimento dessas ordens será valorada em seu prejuízo. Porém, tal direito inexiste (cf. itens 4.3. e 4.6, supra), o art. 5º, LV, CRFB impede tal cogitação. Portanto, a tese da violação de tais dispositivos parte de uma premissa falsa (descritivamente falando, e inválida, prescritivamente falando). É, pois, uma falsa questão.

Isso não torna os dispositivos inúteis, porém, apenas retira-lhes tais pseudoeficácias. Para deixar expresso: nada impede que a parte seja intimada para produzir prova contra si, pois ela pode, livremente, aceitar fazê-lo. Simplesmente ela não tem o ônus nem o dever de fazê-lo, ou seja, do desatendimento de tal comando não se pode tirar qualquer consequência negativa a ela. 

As dificuldades probatórias daí decorrentes são consequências das escolhas do constituinte, especificamente aquelas referentes à pressuposição de inocência e da garantia de não provar contra si. E ainda que escolhas constituintes imantadas por cláusulas pétreas possam gerar decepção, descumpri-las nunca é uma opção legítima (contra a lei infraconstitucional formal e materialmente constitucional, idem). 

Desnecessário dizer que com isso não se está legitimando a mentira. Tampouco vai aqui qualquer estímulo a falsear informações e provas (conduta comissiva punível, v.g., como litigância de má-fé). Agora, omitir (conduta omissiva) não é o mesmo que mentir e o que a ordem jurídica repreende – sem qualquer irritação constitucional, frise-se – é a mentira, apenas. 

E aí chegamos ao ponto culminante: falta com a verdade quem, omitindo, deixa de provar fato contra si? Sim, sem dúvida. Isso é moralmente reprovável? Possivelmente sim. Mas há aí violação a alguma regra jurídica com assento constitucional? Não, decididamente não. 

Assim a questão recebe sua resposta juridicamente impositiva, por mais moralmente deplorável e politicamente incorreta que possa soar. Lidemos com isso, é (um d)o(s) preço(s) da democracia constitucional[52].

Notas e Referências

[1] Cf. Danilo Marcondes e Noel Struchiner. Textos Básicos de Filosofia do Direito. De Platão a Frederick Schauer. Zahar. 2015, p. 150 e ss.

[2] A propósito, conferir com proveito: Bruno Torrano. O Ministro Barroso e a Execução Provisória da Pena Criminal (Parte 2 – Ativismo judicial como “reponderação”). In http://emporiododireito.com.br/o-ministro-barroso-e-a-execucao-provisoria-da-pena-criminal-parte-2-ativismo-judicial-como-reponderacao-por-bruno-torrano/

[3] O argumento da ponderação faz sentido para os adeptos das teorias discursivas, mas não é essa a linha aqui adotada. Tal referência foi feita apenas para criar uma amarra argumentativa àqueles aqueles que as seguem.

[4] Para uma consistente crítica aos verbetes elaborados em encontros de juristas, conferir: Marcelo Pichioli da Silveira. Poder Semiótico de Enunciados Doutrinários é Preocupante. http://emporiododireito.com.br/leitura/poder-semiotico-de-enunciados-doutrinarios-e-preocupante-por-marcelo-pichioli-da-silveira-1508254587. Conferir, também, o texto de Lenio Luiz Streck e Gilberto Morbach. Enunciados Assertóricos no Direito Brasileiro: a busca por respostas antes das perguntas a partir da literatura e da Crítica Hermenêutica do Direito. Revista Brasileira de Direito Processual. 101. Fórum. 2018, p. 213-228.

[5] O processo como instituição de garantia. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 16/10/2016. Disponível em: www.conjur.com.br.

[6] A CRFB repele a concepção do processo como (mero) instrumento (à disposição) da jurisdição (=Poder), simples espaço onde o Estado exerce o seu império. Daí ser correta a dura crítica de Eduardo José da Fonseca Costa às correntes publicistas: “Entrementes, muitas as correntes dogmáticas desencaminhadas, que inconfessadamente desenraízam o processo da Constituição e o envolvem em sobrecargas inconvenientes, esfumaçando-lhe seu “ser constitucional” e, portanto, sua institucionalidade garantística (a pior delas no país é a “instrumentalidade do processo”, fundada num princípio epocal mântrico sem qualquer consistência positivo-constitucional, que reduz o processo a mero “artefato para boas intenções” e que tem servido como fonte de compreensão e racionalidade de qualquer manifestação no universo processual). Nesse sentido, toda processualística deve ser uma “revelação-destruição”: explicitando hermeneuticamente o processo como estrutura de garantia das partes, demole criticamente a dissimulação do processo como mero “utensílio do juiz”. Isso mostra que, em última análise, a disputa entre o ativismo (que é uma teoria utensiliar) e o garantismo (que é uma teoria não-utensiliar) é disputa — parafraseando Heidegger — entre velamento [Verborgenheit] e desvelamento [Unverborgenheit], entre ocultação [Verdecktheit] e desocultação [Unverdecktheit] (sobre o debate entre garantismo e ativismo: Ramos, Glauco Gumerato. Ativismo e garantismo no processo civil. Ativismo judicial e garantismo processual. Coord. Fredie Didier Jr. et al. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 273-86). Em termos mais oblíquos: a dimensão historial das doutrinas ativistas é um exercício renitente de esquecimento do “ser constitucional” do processo. Importante destacar que esse esquecimento não é propriamente distração, mas indiferença, que por desdém dá a institucionalidade garantística do processo como impensado e que se abandona nesse impensamento (o que explica, por exemplo, por que os ativistas não citam os garantistas e não dialogam criticamente com seus argumentos, caindo na tentação a-científica da pregação apologética). Daí por que há certa tensão entre o constitucional (que engloba e quer determinar) e o processual (que se isola e quer independentizar-se ou apoiar-se em exterioridades não jurídicas). O constitucional avançando para hetero-fundar o processual; o processual recuando para autofundar-se ou fundar-se em extrajuridicidades não constitucionais (geralmente ideologias, interesses, alienações, repressões, teologias, versões de mundo, que intrusivamente ocupam a suprema posição fundante que deveria caber à Constituição). Aliás, é cada vez mais rara uma ciência processual concentrada recursivamente em si mesma. Em regra, projetos políticos não positivados se transmudam em “fontes de compensação” [Ersatzquellen] pelo menosprezo à Constituição. Não sem razão os três principais tipos de ativismo se ligam a três grandes credos estatistas: 1) o fascismo processual (do juiz-linha-dura); 2) o socialismo processual (do juiz-Robin-Hood); 3) o social-liberalismo processual (do juiz-gerente ou managerial judge) (para um aprofundamento dessa tipologia, meu Los criterios de la legitimación jurisdiccional según los activismos socialista, fascista y gerencial. RBDPro 82/205-16). Todavia, o aludido menosprezo é velado: por meio de uma “acrobacia retórica”, o ativista desempenha “contorcionismos argumentativo-circenses”, geralmente repletos de piruetas pamprincipiológicas, para desfocar a inconstitucionalidade palmar de suas intenções. Não se é de estranhar que hoje, no Brasil, a melhor crítica anti-ativista provém da ala crítico-hermenêutica dos constitucionalistas (Lênio Streck, Maurício Ramires, Francisco Motta, Georges Abboud, etc.), os quais dispõem do aporte metodológico adequado para identificar e delatar essas imposturas”. O processo como instituição de garantia. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 16/10/2016. Disponível em: www.conjur.com.br.

[7] Eduardo José da Fonseca Costa. Breves Considerações sobre o Devido Processo Legal. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-15-breves-meditacoes-sobre-o-devido-processo-legal)

[8] Eduardo José da Fonseca Costa. Breves Considerações sobre o Devido Processo Legal. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-15-breves-meditacoes-sobre-o-devido-processo-legal

[9] A propósito, conferir: Diego Crevelin de Sousa. O Caráter Mítico da Cooperação Processual. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-10-o-carater-mitico-da-cooperacao-processual-por-diego-crevelin-de-sousa

[10] A propósito, conferir o excelente texto de Marcelo Pichiolli da Silveira sobre os princípios do processo civil soviético: http://emporiododireito.com.br/leitura/principios-de-processo-civil-da-u-r-s-s-e-das-republicas-federadas-de-v-terebilov-v-k-poutchinski-e-v-tadevosian-por-marcelo-pichioli-da-silveira.

[11] Sobre as relações entre processo e ideologia, conferir: Ovídio A. Batista da Silva. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Forense. 2006; Juan Montero Aroca. Proceso Civil e Ideología: un prefacio, una sentencia, dos cartas y quince ensayos. Juan Montero Aroca (coord.). Valencia: Tirant lo Blanch, 2006. A propósito, vale mencionar a tese de doutorado de Mateus Costa Pereira, em vias de ser defendida perante a Universidade Católica de Pernambuco – em trabalho que, decerto, será um marco da epistemologia processual garantista no Brasil. Com percepção bastante aguçada e original, Mateus Costa Pereira se dá conta de que as relações entre processo e ideologia podem ser cogitadas em planos distintos, a saber, o da ideologia em sentido amplo (cujo enfoque é identificar o modelo de pensamento subjacente à produção do conhecimento) e o da ideologia em sentido estrito (cujo enfoque é identificar o compromisso de uma teoria com o Poder). Nosso autor notou que cada uma daquelas aquelas obras se dedicou a um plano distinto das relações entre processo e ideologia, mas sem jamais se aperceber do enfoque de análise da outra. Ovídio A. Batista da Silva investigou a ideologia em sentido amplo, especificamente os problemas decorrentes da influência do racionalismo sobre a teoria do direito, em geral, e sobre a teoria do processo, em particular. Como bem resume Mateus, “nessa obra são condensadas as principais críticas ao ideal sistemático e ao pensamento matematizante que marcou a ciência moderna; com sua vocação ao abstrato e a-histórico (rumo a um paraíso de conceitos...), em vista da recusa das contingências, pois o elemento empírico contrastava à necessidade (científica) de teorias gerais, essas alimentadas pela universalidade do conhecimento; com a marcante presença da objetividade em repulsa à interpretação etc.”. Mas não se dedicou à ideologia em sentido estrito. Bem ao contrário, por hipostasiar o problema da influência racionalista sobre o pensamento jurídico, atribuindo-lhe “a pretensão de controle da judicatura, associada à desconfiança nos magistrados (...) preconizava o reconhecimento da «discricionariedade» como o caminho a ser trilhado”. Assim, embora nos tenha legado a importante missão de se rebelar contra a nefasta influência do racionalismo para a formação do conhecimento jurídico, nosso autor caiu na tentação de depositar todas as fichas no juiz, deixando de notar a dimensão da ideologia em sentido estrito. E é precisamente neste ponto que ganha importância o labor de Juan Montero Aroca. De acordo com Mateus, algumas características marcantes do pensamento do autor espanhol são “o cuidado com a historicidade no trato dos temas processuais, com singular domínio da doutrina italiana, mormente dos representantes da Escola Sistemática; e a contextualização da ideologia em sentido estrito”, esmiuçando sua influência sobre legislações e institutos processuais. Assume como premissa metodológica “a ideia de que uma lei constitui expressão ideológica da sociedade em que é elaborada, sendo a mesma professada pelos responsáveis pelo poder”, que, por ser resultado do escrutínio de inúmeras legislações, possui o status de máxima da experiência que deve ter a sua improcedência comprovada por quem dela discorda. Assim, para evitar a apropriação do processo pelo Estado (ideologia em sentido estrito), empenhou-se na “defesa irrestrita da liberdade dos sujeitos parciais no procedimento judicial, em contraposição ao protagonismo judicial que outorga «faculdades materiais» aos magistrados”, enaltecendo “o papel de «garante» dos magistrados, o que densifica ou «amarra» com a imparcialidade e a terceiridade (incompatibilidade de funções)”. Ovídio A. Batista da Silva e Juan Montero Aroca prestaram, cada um a seu modo, imensa contribuição à compreensão das relações entre processo ideologia, sendo certo que suas visões não são antagônicas, mas complementares. O caso não é de fiar-se no pensamento de apenas um deles, senão de imbricar seus trabalhos e avançar a partir das clareiras abertas por esses gigantes. Até porque, como afirma Mateus Costa Pereira, “o apego a qualquer dessas visões ilumina parcialmente os problemas da conformação ou modelo de processo civil, relegando outras questões sensíveis ao obscurantismo paradigmático”. No caso do publicismo brasileiro, cuja notícia deu origem a esta nota, em que pese haja uma espécie de combo dos planos da ideologia em sentido amplo e em sentido estrito, ressalta a ênfase desse último ante persistência de considerar o processo como instrumento do Estado-juiz. Mas atenção: se está atribuindo conteúdo ideológico ao publicismo processual, mas não se está afirmando que os autores ora referidos veiculam conteúdo essencialmente ideológico de modo deliberado. Sua intenção não é o que está em questão aqui, mesmo porque a reprodução da ideologia pode ocorrer inadvertidamente. Como afirma Lenio Streck, “o jurista, inserido no habitus dogmaticus, não se dá conta das contradições do sistema jurídico. As contradições do Direito e da dogmática jurídica que o envolvem não aparecem aos olhos do jurista, uma vez que há um processo de autopersuasão do seu próprio discurso. Esse processo de justificação não prescinde, para sua elucidação, do entendimento acerca do funcionamento da ideologia. Isso porque a eficácia da ideologia ou do senso comum produzido pela ideologia depende exatamente do fato dela não ser percebida. O que propicia essa “não percepção” é a inserção do intérprete no interior de um determinado imaginário. Por isso é possível afirmar que quem está na ideologia não pode dizer que nela está. Há uma alienação que o impede desse “dar-se” conta. O discurso ideológico como tal não é a realidade para o indivíduo submetido/assujeitado à ideologia”. (Lenio Luiz Streck. Dicionário de Hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Letramento/Casa do Direito. 2017, p. 41).

[12] O conteúdo ideológico do publicismo processual é magistralmente sintetizado por Igor Raatz: Autonomia Privada e Processo Civil. Jus Podivm. 2017, p. 82-86. Sobre a incompatibilidade do publicismo processual e o Estado Democrático de Direito e como essa relação se mantém pela absorção das lições de Bulow no pensamento de alguns dos mais influentes processualistas, leia-se: LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidde do Processo em Crise. Mandamentos. 2008.

[13] Poderes Instrutórios do Juiz. 7ª Ed. RT. 2013, p. 70. A afirmação transcrita é precedida das seguintes premissas: ““Se a jurisdição é a atividade estatal destinada à atuação da lei; se a ação é o poder de estimular essa atividade e fazer com que ela atinja seu objetivo; se a defesa é pressuposto da legitimidade do provimento e imprescindível à correta imposição da norma ao caso concreto, o processo, palco em que essas três atividades se desenvolvem, deve ser considerado o meio através do qual se visa a um provimento justo,ou seja, que represente a correta formulação e imposição da regra concreta. O processo é, portanto, o método adotado pelo Estado, para formular e atuar a norma jurídica, nos casos em que os destinatários desta não possam ou não queiram fazê-lo. A atuação do direito substancial é o escopo do processo”. (cit, p. 69).

[14] Novo Curso de Direito Processual Civil. 2ª ed. V. 1. RT. 2016, p. 15-151.

[15] Conferir, amplamente: Luiz Guilherme Marinoni. Sérgio Cruz Arenhart. Daniel Mitidiero. Novo Curso de Direito Processual Civil. 2ª ed. V. 1. RT. 2016.

[16] Por favor, sem mal entendidos: a democracia participativa (art. 1º, parágrafo único, CRFB) vincula a legitimidade dos atos de poder à efetiva participação dos destinatários nos seus processos de formação, de modo que outorga leitura forte à garantia do devido processo legal e seus corolários. Portanto, o processo, globalmente considerado, só é legítimo quando os destinatários participam amplamente do seu desenvolvimento e resultado. Assim, a decisão judicial não pode ser fruto da valoração subjetiva do julgador, quer nos aspectos primordialmente jurídicos, quer nos aspectos primordialmente fáticos.  O juiz não é livre para valorar o direito e nem os fatos/provas (sempre insistindo na impossibilidade de cindir fato e direito). Questões jurídicas devem ser resolvidas juridicamente, isto é, mediante razões públicas e intersubjetivas, sem o que não se pode falar em ambiente republicano. Agora, é o juiz quem decide. O faz vinculado ao labor das partes, devendo prestar contas a elas e amparar a atribuição de sentido ao material fático-jurídico a partir de razões públicas. Mas é ele, o juiz, quem decide. As partes podem ser compreendidas como coautoras do provimento, no sentido de que todo o seu trabalho deve repercutir, ter ressonância na decisão. Isso é inegável. Quem decide, porém, é o juiz; com todos os vínculos e limites referidos, mas é ele, o juiz, quem decide. Da mesma forma os precedentes: eles surgem do julgamento de casos, logo são intrinsecamente dependentes dos casos. Não há precedente sem caso. Porém, o que vinculará será a ratio decidendi do precedente. E não importa discutir aqui se a ratio decidendi é definida pelo órgão que profere a decisão, pelos julgadores que, no futuro, aplicam aquele precedente ou se em articulação de ambos. O fato é que a decisão é proferida por um órgão jurisdicional e será interpretado por um órgão jurisdicional. As partes participam da formação da decisão – participação que, como dito, é pressuposto de legitimidade da decisão – bem como do seu processo de aplicação, distinção e superação. Mas alguém dirá, por fim, qual decisão será formada e como e em que medida essa decisão se aplica a casos futuros. E quem o faz – faça bem ou faça mal, respeitando a garantia do devido processo legal e a autonomia do direito – é o órgão jurisdicional. Portanto, ao dizer que os casos são julgados através do processo e que precedentes se formam através do processo não significa nenhum menoscabo à imprescindível participação efetiva das partes e à autonomia do direito nessa quadra da história. Significa apenas que desse todo da formação e da aplicação de decisões também o juiz faz parte, e mais, que quem elabora as decisões e as aplica, ainda que com todos os limites e vínculos já referidos, é ele, o juiz. Afinal, a dialética processual envolve juiz e partes. Partes postulam, juízes julgam. Partes protagonizam o debate – o que não significa que nele o juiz não tenha importância; juízes protagonizam a decisão – o que não significa que nele as partes não tenham importância, como se se estivesse, com isso, a dizer que o processo é instrumento da jurisdição, que a efetiva participação dos envolvidos não fosse fator de legitimidade e que o juiz pudesse decidir de acordo com seu autossenso de justiça. Decididamente, não é disso que se trata aqui.

[17] Reforçando o elo entre instrumentalismo e cooperação, José Roberto dos Santos Bedaque afirma textualmente que: “a ideia, hoje sustentada por boa parcela da doutrina, a respeito da importância da cooperação entre os sujeitos do processo, está presente na visão instrumentalista”. (Instrumentalismo e Garantismo: visões opostas do fenômeno processual? in Garantismo Processual – Garantias Constitucionais Aplicadas ao Processo. Gazeta Jurídica. 2016, p. 6). Mais amplamente, Rafael Stefanini Auilo desenvolve dissertação considerando o instrumentalismo o fundamento do processo civil cooperativo: O Modelo Cooperativo de Processo Civil no Novo CPC. Jus Podivm. 2017, especialmente o Capítulo II.

[18] “Perquirir pelo “ser constitucional” do processo é revelar — tal qual uma clareira — a institucionalidade garantística que a Constituição lhe estabelece e que nele vem sendo encoberta pela obscura doutrina instrumentalista. É aclarar que o legislador deve estruturar o processo como instituição de garantia, não como instrumento de poder. É elucidar, enfim, que a) a função da jurisdição é aplicar imparcialmente o direito e que b) a função do processo é garantir que essa aplicação não se faça com desvios e excessos”. O Processo como Instituição de Garantia. https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia

[19] “[h]á um gravíssimo vezo no domínio do direito processual notabilizado por uma espécie de miscelânea retórico-argumentativa cada vez mais comum hodiernamente. É que a construção teórica e legislativa segue sendo forjada segundo miradas cujo compromisso capital está sobretudo no apoderamento judicial, em desprezo à gênese que caracteriza mais de perto a instituição que é o processo. O estrago causado por esse tipo de postura tem se pronunciado dia a dia na praxe forense e ajuda a desvelar por qual razão o Direito é cotidianamente depredado por arbitrariedades de toda sorte. Não que seja uma obviedade facilmente percebível, pois desponta tão-somente a partir de um doloroso empenho de des-vivicação da própria experiência de mundo na qual todos estamos mergulhados. Por aqui há tempos o paroquialismo doutrinário fez soberano o ensino do direito processual encimado em bases publicistas (ou hiperpublicistas), cujas elaborações teórico-conceituais privilegiam exatamente uma compreensão que prima a jurisdição pela superioridade. A diluição do processual pelo jurisdicional é um fenômeno deveras real, uma promiscuidade oriunda de pré-juízos que se enraizaram na tradição jurídica pela labuta impactante e serial da dogmática durante longo trajeto histórico, a ponto de fazer com que antevejamos o processo por uma via de pensamento profundamente aferrada à perspectiva da atividade jurisdicional e dos seus (denominados) escopos sociais, políticos e jurídicos. Grosso modo, ecoa de ponta a ponta no País o mantra: o processo é de somenos importância, ancilar e subserviente, mero instrumento a serviço da jurisdição. Já é hora, pois, de desvelar e destruir algumas compreensões alcançadas no interior da tradição e que foram se sedimentando até constituírem o comportamento assumido de modo geral pelos profissionais do direito na atualidade. Algo como tomar "pílula vermelha", expandir a percepção a fim de enriquecer horizontes em socorro ao conhecimento do processo tal como ele é. Não por deleite teórico, vaidades ou coisas do gênero, mas porque só assim se dará o giro paradigmático, passo absolutamente necessário para salvaguardar teoria e prática processuais da baixa constitucionalidade na qual se encontram atoladas.” (DELFINO, Lúcio. Como construir uma interpretação garantista do processo jurisdicional? Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 258, n. 98, 2017, p. 206).

[20] “Obtusamente, contudo, o ativismo judicial dissolve o processo (que é garantia) na jurisdição (que é poder), como se o processo fosse a própria jurisdição-funcionalmente-manifestada. Fá-lo perder a própria autonomia ôntica, dando o direito processual lugar a um disforme “direito jurisdicional”. Daí dizer a intelligentsia ativista que o papel precípuo do processo é a realização do direito material. Sem razão, entretanto. Lembre-se: na “jurislação”, o direito é criado; na jurisdição, o direito é aplicado por terceiro imparcial; na administração, o direito é aplicado pela própria parte ou por terceiro não imparcial. Com isso se vê que, na realidade, o que está a serviço da realização do direito material é a jurisdição, não o processo: ao processo cabe “apenas” cuidar para que essa realização não deslize em abusividades. Decididamente, o exercício da jurisdição radica no processo e não o contrário”. O Processo como Instituição de Garantia. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 16/10/2016. Disponível em: www.conjur.com.br.

[21] Breves Meditações sobre o Devido Processo Legal. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-15-breves-meditacoes-sobre-o-devido-processo-legal

[22] Para homenagear a célebre expressão de Friedrich Müller. Teoria Estruturante do Direito. Tomo I. RT. 2006, especialmente o capítulo XIII (p. 244-268).

[23] Escreve Eduardo José da Fonseca Costa: “Para livrarem a sua circunscrição das intrusões procedimentais civis, os procedimentalistas penais têm declarado guerra à chamada Teoria Geral do Procedimento (impropriamente chamada, pelos seus próprios defensores, de «Teoria Geral do Processo»). Trata-se de um ousado exercício intelectual de procedimentalistas civis, capitaneado pelo Professor CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, que jamais cativou os procedimentalistas penais. Aliás, impressiona a pouquidade de procedimentalistas penais dedicados à «TGP». O objetivo dela é desvelar por generalização indutiva as categorias dogmáticas comuns aos âmbitos procedimentais civil e penal. Todavia, a tarefa é ontologicamente irrealizável, pois não existe entre os procedimentos civil e penal uma «região comum interjacente», da qual se possam extrair as aludidas categorias. Um ou outro conceito, secundário e periférico, pode coincidir. Na verdade, existe apenas uma instância fundante sobrejacente, que é a Constituição. Daí por que só se pode falar numa Teoria Unitária do Processo (de cariz constitucional), não numa «teoria generalizante do procedimento» (limitada ao plano infraconstitucional). Só uma TUP pode cunhar os conceitos primários, centrais e unificantes – porque dogmático-constitucionais – dos procedimentos civil e penal. Não por outro motivo, ante a inexequibilidade da empreitada, a «TGP» só fez reduzir, como não poderia ser diferente, o procedimento penal ao procedimento civil (talvez mais «divertido» seria ver o procedimento civil reduzido ao procedimento penal). Com isso, o «penal» se desfez em «civil» e o «civil» se arvorou em «geral»”. (in Um Reclamo aos Processualistas Civis, um Alerta aos Processualistas Penais. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-20-um-reclamo-aos-processualistas-civis-um-alerta-aos-processualistas-penais.)

[24] É como diz Eduardo José da Fonseca Costa: “a instância originária-originante do fenômeno é a Constituição (que é a morada do processo), não a lei (que é a morada do procedimento)”. “Daí duas dogmáticas distintas e complementares definirem a interjuridicidade garantista: a i) ciência do processo, também conhecida como “processualística”, que estuda no plano constitucional a ossatura garantista do procedimento; e a ii) ciência do procedimento, também conhecida como “procedimentalística”, que estuda no plano infraconstitucional as musculaturas que envolvem o esqueleto garantístico-procedimental. Embora atadas por uma relação de dependência estrutural, não se confundem. Não se pode reduzir uma a outra. Tampouco se pode ascender a uma síntese que as supere”. Eduardo José da Fonseca Costa. Presunção de Inocência Civil: Algumas Reflexões para o Direito Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Civil – RBDPro. 100. Fórum. 2017, p. 131. Conferir, também, a nota de rodapé n. 18.

[25] Mais amplamente, conferir: Diego Crevelin de Sousa. O Caráter Mítico da Cooperação Processual. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-10-o-carater-mitico-da-cooperacao-processual-por-diego-crevelin-de-sousa, especialmente o item 3.1.

[26] Exatamente por isso Lúcio Delfino demonstrou como o art. 6º, CPC, lido no sentido de redimensionar a garantia constitucional do contraditório para considerar o juiz seu sujeito ativo, arrosta, dentre outros, o art. 5º, LV, CRFB (Cooperação processual: Inconstitucionalidades e excessos argumentativos – Trafegando na contramão da doutrina. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. n. 93. Fórum. 2016, p. 149-168). Eis o que revela, também, o equívoco de supor que o CPC/15 redefiniu o dever de fundamentação das decisões judiciais. A dimensão forte da fundamentação das decisões (que se liga inquebrantavelmente à noção forte do contraditório) decorre do modelo de Estado Democrático de Direito, que consagra o povo como titular do poder e assegura a sua participação na formação dos provimentos que os afetarão, inclusive diretamente (art. 1º, parágrafo único, CRFB) (Sobre a relação entre processo constitucional e Estado Democrático de Direito, consultar: Georges Abboud. Processo Constitucional Brasileiro. 2ª ed. RT. 2018; Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 3ª ed. Del Rey, 2015). É a democracia participativa constitucionalmente consagrada que define o conteúdo do contraditório e da fundamentação das decisões. Os dispositivos do CPC/15 que minudenciam o conteúdo de tais garantias não inovaram normativamente na ordem jurídica brasileira, inserindo, quando muito, novidades apenas textuais (nem por isso deixam de ser importantes, pois necessárias para tentar fazer vingar a normatividade constitucional que, via de regra, não penetrava na praxis jurídica nacional). Portanto, participação efetiva, influência, proibição de decisão surpresa, entretecimento do contraditório e da fundamentação etc., não têm origem no CPC/15, não foram por ele criadas; são, isso sim, explicitações do conteúdo garantístico da Lei Maior. Daí ter sido rotundamente infundado o pedido de veto dos art. 489, § 1º, CPC, formulado pela AMB, Ajufe e Anamatra. (A propósito, mais amplamente, conferir: Diego Crevelin de Sousa. Lúcio Delfino. Convite a um Processualismo Constitucional Democrático. in http://emporiododireito.com.br/backup/convite-a-um-processualismo-constitucional-democratico/).

[27] Demonstrando como redefinições de garantias constitucionais pelos procedimentalistas impactam no procedimento penal, consultar: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Um Reclamo aos Processualistas Civis, Um Alerta aos Processualistas Penais. Revista Eletrônica Empório do direito. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-20-um-reclamo-aos-processualistas-civis-um-alerta-aos-processualistas-penais.

[28] Afinal, se “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art. 5º, LIV, CRFB), então “o hífen do binômio jurisdição-jurisdicionado deve ser um processo regulado em lei. Enfim, é obrigatório que a zona friccional entre o Estado-juiz e as partes seja ocupada por um processo desenvolvido sub lege. O processo legalmente estruturado é a inafastável interface comunicativa entre a jurisdição e os jurisdicionados. Nesse sentido, o “devido processo legal” (due process of law) é o próprio processo como garantia em si. É a garantia de que – ao menor sinal de uma petição inicial, uma denúncia ou uma queixa – o juiz não responda simpliciter et de plano e, portanto, não entregue a prestação jurisdicional inaudita altera parte.” Consequentemente, no léxico jurídico-constitucional, “devido processo legal” = processo-garantia. O processo-garantia, como mecanismo primacial e primordial de controle da função jurisdicional, é o que se chama na dicção constitucional de “devido processo legal”. Portanto, discorrer sobre o “devido processo legal” implica interrogar pela sua elevada natureza constitucionalmente determinada, por aquilo que a Constituição diz que ele é, pela garanticidade constitucional do processo. Logo, quando se fala em “devido processo legal”, não se está nominando um dos princípios axiais do processo, mas “o” processo em si. Não se trata propriamente de um “megaprincípio”, um “superprincípio” ou um “denso amálgama principiológico”. Não é um símbolo-força do qual se pulverizam subprincípios ou corolários os mais diversos, como o contraditório, a ampla defesa, a publicidade, a motivação, o juiz natural e a duração razoável do processo (movimento centrífugo). Na realidade, está-se diante de um âmbito institucional sobre o qual incidem os referidos princípios constitucionais (movimento centrípeto). Assim como a Constituição institui a função jurisdicional e estabelece os seus princípios organizativos (plano dos poderes), da mesma forma ela institui o processo jurisdicional e lhe estabelece os princípios formativos (plano das garantias). Por isso, é mais correto falar-se em devido processo legal e seus princípios, não em “princípio do devido processo legal e seus subprincípios”. Porque são do processo, nenhum desses princípios se circunscreve a um determinado âmbito procedimental. Não há aí princípio restrito ao procedimento penal, ao procedimento civil, ao procedimento arbitral, ao procedimento eleitoral ou ao procedimento trabalhista. São princípios processuais, não procedimentais. Nada impede que a lei institua princípios civil-procedimentais, penal-procedimentais, laboral-procedimentais etc. Todavia, se é princípio ejetado pela Constituição, então há de ser princípio processual.” (Eduardo José da Fonseca Costa. Presunção de Inocência Civil: Algumas Reflexões para o Direito Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Civil – RBDPro. 100. Fórum. 2017, p. 129-130).

[29] “Entendimento contrário configuraria captura pelo procedimentalismo penal e rejeição pelo procedimentalismo civil. De acordo com a CF-1988, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). As expressões “culpado” e “sentença penal condenatória”, tomadas ipsis litteris, podem sugerir o procedimento penal como o exclusivo âmbito de incidência do princípio. Entretanto, o dispositivo sofre de uma privação expressiva. Culpado é a situação do acusado que tem contra si uma sentença penal condenatória transitada em julgado. O problema é encontrar uma palavra que exprima a situação do demandado que tem contra si uma sentença civil de procedência transitada em julgado. Poder-se-ia dizer, por exemplo, que “ninguém será considerado devedor até o trânsito em julgado de sentença condenatória obrigacional”. Todavia, o civil ou extrapenal transcende os limites do obrigacional. Daí também se poder dizer que “ninguém será considerado esbulhador ou turbador até o trânsito em julgado de sentença e reintegração possessória”. Ou então que “ninguém será considerado desonesto até o trânsito em julgado de sentença condenatória de improbidade administrativa”. A limitação das palavras se mostra ainda mais evidente quando se tem de exprimir a situação do demandado que tem contra si uma sentença de procedência com força declarativa ou constitutiva transitada em julgado. Isso mostra que o art. 5º, LVII, da CF-1988 é opaco. Ainda assim, trata-se de intransparência vencível. Afinal, a sua penúria palávrica não obsta que também se entreveja um conceito de “presunção de inocência civil ou extrapenal”. (Eduardo José da Fonseca Costa. Presunção de Inocência Civil: Algumas Reflexões para o Direito Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Civil – RBDPro. 100. Fórum. 2017, p. 131-132).

[30] Defende Federico Gastón Thea, professor da Faculdad de Derecho da Universidad de Buenos Aires (UBA): “La presunción de inocencia, al igual que todo el elenco de garantías procesales previsto en los incisos 2° a 5° del artículo 8 de la Convención - que analizaremos a continuación- , está dirigida expresa y principalmente a los procesos penales. No obstante, la interpretación amplia sobre el ámbito material de aplicación del debido proceso legal que surge de la jurisprudencia de la Corte IDH, nos ha llevado a concluir que todas estas garantías procesales, en cuanto sean compatibles, son exigibles no sólo en los procesos penales, sino también en todo tipo de proceso en que esté en discusión la determinación de los derechos y obligaciones de las personas, ya sean de orden civil, laboral, fiscal o de cualquier otro carácter”in: Las garantías del debido proceso en la toma de decisiones públicas. http://www.saij.gob.ar/doctrina/dacf090047-thea-las_garantias_debido_proceso.htm.

[31] Esse é o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos: Corte IDH, Opinión Consultiva OC-11/90, supra nota 2, párr. 28; Caso de la “Panel Blanca” – Paniagua Morales y otros vs. Guatemala, Sentencia de 8 de marzo de 1998, Serie C No. 37, párr. 149; Caso del Tribunal Constitucional vs. Perú, Sentencia de 31 de enero de 2001, Serie C No. 71, párr. 70; Caso Baena Ricardo y otros vs. Panamá, Sentencia de 2 de febrero de 2001, Serie C No. 72, párr. 125; Caso Ivcher Bronstein vs. Perú, Sentencia de 6 de febrero de 2001, Serie C No. 74, párr. 103; Caso Yatama vs. Nicaragua, supra nota 8, párr. 149. 14; Corte IDH, Caso del Tribunal Constitucional vs. Perú, supra nota 13, párr. 71. (Eduardo José da Fonseca Costa. Algumas Reflexões para o Direito Brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Civil – RBDPro. 100. Fórum. 2017, p. 132).

[32] É o entendimento de Araken de Assis: “O direito fundamental da dignidade da pessoa humana alterou substancialmente semelhante ponto de vista. E, outra vez, a influência norte-americana revela-se expressiva, porque o privilege against self-incrimination, cuja base (no processo penal) remonta ao caso Miranda versus Arizona, de 1966, aplica-se a quaisquer procedimentos civis. A redação do art. 5.º, LXIII, da CF/1988 sugere que o âmbito de incidência do direito fundamental restringe-se ao processo penal, mas o Pacto de São José (art. 8.º, § 2.º, g), que obriga o Brasil, não realiza essa distinção. Por esse motivo, o art. 347, I, do CPC de 1973 adiantou-se à sua época, resgatando a regra proibitiva, que tende a se universalizar ao processo, em geral, e contemplou o dever de sigilo, equiparando-o ao direito de permanecer calado. Esses privilégios acabaram ampliados pelo art. 229 do CC, hoje revogado pelo CPC. E o art. 388, caput, acolheu-o no processo civil. O direito de permanecer em silêncio é parte relevante do conjunto de direitos fundamentais processuais que tutelam as partes contra o arbítrio do Estado. Em que pese subordinar-se à apreciação do juiz a adequação do motivo alegado às hipóteses, não há dúvida de que se trata direito da parte, que a exime de quaisquer consequências desfavoráveis, bastando a simples alegação”. (Processo Civil Brasileiro. V.III. RT, 2015, p. 535). 

[33] Para uma consistente crítica aos enunciados elaborados em encontros de juristas, conferir: Marcelo Pichioli da Silveira. Poder Semiótico de Enunciados Doutrinários é Preocupante. http://emporiododireito.com.br/leitura/poder-semiotico-de-enunciados-doutrinarios-e-preocupante-por-marcelo-pichioli-da-silveira-1508254587

[34] Conferir, amplamente: FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. 2ª Ed. Atlas. 2015.

[35] Hans Kelsen. Teoria Pura do Direito. Martins Fontes. 2012, p. 86 e ss.

[36] Curso de Direito Processual Civil. V.1. 57ª Ed. Forense. 2016, p. 889.

[37] É clara a imbricação feita entre o caráter público do processo e o publicismo processual, como se vê com maior amplitude em: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Do Formalismo no Processo Civil. Proposta de um Formalismo-Valorativo. 3ª Ed. Saraiva. 2009, p. 53-66.

[38] Michele Taruffo. Uma Simples Verdade. O Juiz e a Construção dos Fatos. Marcial Pons. 2016. Para uma crítica consistente a tal entendimento, conferir: Salah H. Khaled Jr. A Busca da Verdade no Processo Penal. Para Além da Ambição Inquisitorial. Atlas. 2013, especialmente p. 480-495.

[39] Humberto Theodoro Jr. Curso de Direito Processual Civil. V.1. 57ª Ed. Forense. 2016, p. 883-884.

[40] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Juiz e o Princípio do Contraditório. Revista de Processo – RePro. Vol. 71, Jul/1993. Versão eletrônica.

[41] Por todos, conferir: Vitor de Paula Ramos. Ônus e Deveres Probatórios das Partes no Novo CPC Brasileiro. Coleção Novo CPC Doutrina Selecionada. V.3 Processo de Conhecimento – Provas. Orgs. Lucas Buril de Macêdo. Ravi Peixoto. Fredie Didier Jr. Jus Podivm. 2015, especialmente p. 204-207.

[42] Fiando-se no interesse público para justificar o incremento dos poderes probatórios do juiz, mas aceitando tais limitações, por todos: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. V.1. 57ª Ed. Forense. 2016, p. 883-884.

[43] Como ocorreu a Daniel Amorim Assumpção Neves: "Entendo que o art. 370, caput do novo CPC, perdeu uma excelente oportunidade de desmistificar a ideia corrente de que a atividade oficiosa na instrução probatória é um poder do juiz. Poderia ter o dispositivo esclarecido que a produção da prova de ofício não é um dever do juiz, mas sim uma faculdade, não sendo nula a sentença que aplica o ônus da prova mesmo quando o juiz poderia ter produzido a prova de ofício. Seria uma ótima forma de reconhecer que os chamados "poderes instrutórios" do juiz, na realidade, são faculdades instrutórias". (Manual de Direito Processual Civil. 10ª ed. Jus Podivm. 2018, p. 743).

[44] Lúcio Delfino e Fernando Rossi. Juiz Contraditor? In Processo Civil nas Tradições Brasileira e Iberoamericana. Conceito, 2014, p.279-292. 

[45] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção. 3ª Ed. RT, 2015, p. 486.

[46] Vitor de Paula Ramos. Ônus e Deveres Probatórios das Partes no Novo CPC Brasileiro. Coleção Novo CPC Doutrina Selecionada. V.3 Processo de Conhecimento – Provas. Orgs. Lucas Buril de Macêdo. Ravi Peixoto. Fredie Didier Jr. Jus Podivm. 2015, p. 206.

[47] Por todos: Luiz Guilherme Marinoni. Sérgio Cruz Arenhart. Daniel Mitidiero. Novo Curso de Processo Civil. 2ª ed. V.1. RT. 2016, p. 487 e ss.

[48] “Exige-se, assim, que o garantista seja - parafraseando ERNILDO STEIN - um «poliperito». Para que se redescubra o processo como uma garantia individual, vários passos interdisciplinarizantes devem ser dados pelo jurista: a) em se tratando de um procedimentalista penal tradicional, p. ex., deve ele sair do seu nicho confortável e, para capturar o processo como uma unidade de garantia, inteirar-se de outras modalidades procedimentais (civil de jurisdição contenciosa, civil de jurisdição voluntária, arbitral, eleitoral, trabalhista, administrativo, senatorial de impeachment etc.); b) tem de ampliar a sua ocupação funcional e fecundar-se da constitucionalística em geral e da constitucionalística do «devido processo legal» em particular; c) precisa de uma sólida formação polivalente nos campos jusfilosófico e justeorético, sem a qual essa pluralidade de conhecimentos pode liquefazer-se num discurso superficial. Só assim estará em condições de recompor a linha de evidência que se perdeu na história e entender que as diversas modalidades procedimentais («processo» penal, «processo» civil, «processo» do trabalho, «processo» eleitoral etc.) nada mais devem ser do que materializações ou densificações particularizantes da mesma matriz. Noutras palavras, estará em condições de compreender que todas essas modalidades devem compartilhar de uma mesma «substância», de uma única «alma». Enfim, identificará entre elas a necessidade de uma «consubstancialidade garantístico-constitucional» (obs.: na realidade, não se trata de uma «sub-estância» [substantia], mas de uma sobre-estância [superstantia], pois a Constituição não é um «fundamento-sob», um «abaixo-de», uma «subjacente», mas um fundamento-sobre, umacima-de, uma sobrejacente; nesse sentido, seria mais correta a expressão «con-sobre-stancialidade garantístico-constitucional»).” COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência Processual, Ciência Procedimental e Ciência Jurisdicional. Revista eletrônica Empório do Direito. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-8-ciencia-processual-ciencia-procedimental-e-ciencia-jurisdicional-por-eduardo-jose-da-fonseca-costa

[49] A questão é magistralmente tratada por Lenio Luiz Streck em: Processo Judicial como Espelho da Realidade? Notas Hermenêuticas à Teoria da Verdade em Michele Taruffo. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 37, n. 74, p. 115-136, dez. 2016. ISSN 2177-7055. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2016v37n74p115>. Acesso em: 03 jun. 2018. doi:https://doi.org/10.5007/2177-7055.2016v37n74p115.

[50] A propósito, conferir: “claramente não é possível falar em uma verdade no processo, salvo se estiver falando de uma verdade hermenêutica, que nada mais é do que o reconhecimento de que uma narrativa foi considerada válida tendo as regras processuais e os standards probatórios como sua condição de possibilidade. Não se olvide que o Direito é um fenômeno imputacional e não causal. Daí o acerto de Eduardo José da Fonseca Costa em afirmar que a ambivalência estrutural a que está condenado o direito probatório institucionaliza (i) o alcance da verdade; (ii) o não alcance da verdade e, consequentemente, (iii) a aceitação da não verdade” (Lenio Luiz Streck. Igor Raatz. William Galle Dietrich. Sobre um Possível Diálogo entre a Crítica Hermenêutica e a Teoria dos Standards Probatórios: Notas Sobre Valoração Probatória em Tempos de Intersubjetividade. https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/10981). No mesmo sentido, conferir também: Eduardo José da Fonseca Costa. Direito deve avançar sempre em meio à relação entre prova e verdade: <http://www.conjur.com.br/2016-dez-20/direito-avancar-sempre-meio-relacao-entre-prova-verdade>. Eduardo José da Fonseca Costa: Finitude compreensiva do juiz é um dos desafios do Direito Processual: <http://www.conjur.com.br/2017-jan-28/eduardo-costa-finitude-compreensiva-juiz-desafio-direito-processual>

[51] A diferença entre essa proposta e aquela que se atribui ao art. 6º, CPC, de redimensionar o contraditório para tornar o juiz seu sujeito ativo, está em que o inciso LV do art. 5º da CRFB prescreve ser o contraditório assegurado aos litigantes, apenas. É o contraditório garantia de liberdade das partes que contrasta o Poder jurisdicional, daí por que outorgar o contraditório ao juiz é tornar o seu poder incontrastável. O direito de não provar contra si mesmo é garantia da parte. Admitindo que a CRFB o limita aos fatos jurídico-penais, nada impediria o legislador de estendê-lo aos fatos jurídico-civis, pois estaria ampliando garantia contrajurisdicional do cidadão.

[52] O que pode ser reconduzido à necessidade de reconhecer a devida dignidade à legislação, como fala Jeremy Waldron: “Cada um de nós, mesmo nas nossas relações mais íntimas e certamente na nossa política, deve enfrentar o fato de que a nossa consciência não é a única à voltas com os tópicos da justiça e de que devemos compartilhar o mundo com outros que podem discordar de nós ou cujo pensamento pode ter seguido diferentes caminhos mesmo em típicos tão importantes como este”. E mais adiante, arremata: “não posso pensar responsavelmente sobre instituições se o meu pensamento é dominado completamente por minhas convicções e política, devo estar disposto, pelo menos em parte, a considerar as minhas convicções sobre justiça – por mais verdadeiras e importantes que eu as considere – meramente um conjunto de convicções entre outras na sociedade e enfrentar de maneira relativamente neutra a questão do que nós, como sociedade, devemos fazer a respeito do fato de que pessoas como eu discordam com outras na sociedade a respeito de questões sobre as quais precisamos de uma opinião comum. Essa é a lógica da legislação. Não é uma lógica com a qual seja fácil viver, pois ela acarreta que, por boa parte do tempo, estamos envolvidos – ou, pelo menos, teremos nosso nome associado a isso – no compartilhamento e na implementação de uma opinião sobre a justiça que não é a nossa. Ainda assim, fico feliz em concluir que foi no reconhecimento dessa perspectiva, e não – como em Rawls – na negação dela, que John Locke estava preparado para dizer a respeito da legislatura: ‘Este é o espírito que dá forma, vida e unidade à comunidade: é por esse meio que os vários membros [da sociedade] têm a influência, a solidariedade e a ligação mútuas”. (A Dignidade da Legislação. Martins Fontes. 2003, p. 95 e 110-111).

 

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