ABDPro #40 - NOTAS PARA UMA GARANTÍSTICA

04/07/2018

 Coluna ABDPro

I

O dado invariável da historicidade constitucional é a limitação jurídica do poder. Ela é a «essência» o fenômeno constitucional. Desse modo se deu na Magna Charta Libertatum de 1215. Desse modo ainda se dá nas constituições hodiernas. Decerto a constrição normativa do poder não é mais a única função de um texto constitucional. Entretanto, é «a» função-mor, que desde sempre persistiu. Daí dizer-se que a constituição habita as franjas de fricção entre o jurídico e o político. A jusante dela, vem a reboque todo o mais do sistema jurídico; a montante, acopla-se todo o sistema político. Por isso, o pré-constitucional é o «ainda-não-jurídico político»; o pós-constitucional é o «já-jurídico infraconstitucional». Essa particular topologia da constitucionalidade - própria às atipicidades fronteiriças - lança-a entre uma «politicidade juridicizada» e uma «juridicidade politicizada».

Isso determina, por exemplo: i) a especificidade metodológica da hermenêutica constitucional (não raro, confundida com um niilismo metodológico, que no STF tem degenerado a marcha do texto à norma num vale-tudo voluntarista, imune a controle objetivo-racional); ii) a lógica suprajudiciária das cortes constitucionais (hoje degradada pelo STF numa lógica parajurislativa mediante a qual usurpa funções do Poder Legislativo); iii) a formação intelectual do constitucionalista (outrora uma co-analítica teórica jurídico-política, hoje uma «pragmática-de-palanque», que provê o STF de «Ministros-Deputados», com agendas políticas, projetos para a Nação e votos prolixos análogos a exposições de motivos).

No plano horizontal, a limitação do poder se faz fracionando-o. Afinal, dividir é controlar. De ordinário, o poder do Estado é trissegmentado nos subpoderes legislativojudiciário e executivo: o primeiro ostentando a primazia da função jurislativa; o segundo, da função jurisdicional; o terceiro, da função administrativa (obs.: fala-se aqui em primazia, não em monopólio). Note-se que a soma das três funções varre in toto o horizonte da atividade jurídica do Estado: jurislação = criação do direito; jurisdição = aplicação do direito por terceiro imparcial; administração = aplicação do direito por terceiro parcial ou pela própria parte. Contudo, à limitação do poder não basta triparti-lo. A tripartição é necessária, porém insuficiente. Pois um subpoder tende a subjugar o outro [abuso horizontal de poder].

Daí o necessário intercontrole trilateral: legislativo, judiciário e executivo controlando-se reciprocamente sob um modelo de «freios e contrapesos» [check and balances]: i) o legislativo controlando o judiciário [ex.: investigação do judiciário por comissão parlamentar de inquérito]; ii) o legislativo controlando o executivo [ex.: julgamento anual das contas presidenciais]; iii) o judiciário controlando o legislativo [ex.: controle de constitucionalidade das leis]; iv) o judiciário controlando o executivo [ex.: controle judicial dos atos administrativos]; v) o executivo controlando o legislativo [ex.: veto presidencial a projeto de lei de iniciativa do legislativo]; vi) o executivo controlando o judiciário [ex.: veto presidencial a projeto de lei de iniciativa do judiciário].

Já no plano vertical, a limitação do poder se faz outorgando-se garantias aos cidadãos. Afinal de contas, na relação Estado-cidadão, o exercício do poder pode dar-se de maneira excessiva, desviada ou arbitrária [abuso vertical de poder]. Quem é titular de poder sempre tende a dele abusar. Eis uma lei infalível da microfísica social. Nesse sentido, GARANTIA é toda e qualquer situação jurídica ativa, simples ou complexa, atribuída aos cidadãos por norma constitucional, cujo exercício tende a prevenir ou eliminar os efeitos nocivos do abuso de poder cometido pelo Estado, ou por quem lhe faça as vezes. Logo, a garantia faz contrastável o poder. Refreia-o. Republicaniza-o, em conclusão. Não por outra razão, o princípio republicano prescreve que «a cada poder deve corresponder uma garantia, que o limite». Onde há poder-do-Estado [+], ali deve haver o respectivo «contrapoder»-do-cidadão [-]. Logo, o duo poder-garantia é a pedra fundamental sobre a qual se edifica uma República. Sem ela, o indivíduo reduz-se a um mero titular passivo de estados de sujeição. É «cidadão sem cidadania», «pseudocidadão», «cidadão sob reserva», «modo privativo de cidadão». Ou seja, com garantias, o indivíduo eleva-se a cidadãosem, rebaixa-se a súdito [lat.: subditus = sub-, «abaixo», + ditus, «colocado, reduzido a» = «submisso» = «subjugado» = «pessoa que deve obediência cega a uma autoridade soberana»].

E assim se procede à estruturação republicana: a) o poder não pertence ao Estado, não é coisa estatal, dele, mas res publica para ele; b) a garantia não pertence aos cidadãos, não é coisa privada, deles, mas res publica para eles; c) porque res publica para os cidadãos, a garantia é inexpropriável pelo Estado e, portanto, não se pode enfraquecer ou converter em instrumento, ferramenta ou método a serviço do poder. Exemplo crasso é o concurso público, que serve ao cidadão-administrado para garantir uma seleção de ingresso na carreira pública sem apadrinhamentos, não ao Estado-administrador como instrumento para que proveja seus cargos, empregos e funções; em tese, a Administração não precisaria do concurso para exercer seu poder de seleção: abandonada a seu capricho, poderia fazer de seus servidores um clube de afilhados. Outro exemplo é o processo, o «devido processo legal», que serve ao cidadão-jurisdicionado para garantir uma prestação jurisdicional sem justiceirismos, não ao juiz como instrumento para a aplicação do direito material às causas que lhe são levadas a conhecimento; em tese, o Estado não precisaria do processo para exercer a função jurisdicional: abandonado a seu capricho, poderia favorecer amigos e desfavorecer inimigos.

II

Em tempos de new efficientist authoritarism (paternalismo estatal soft, pan-principiologismos, ativismo judicial, discricionariedade judicial, instrumentalismo processual, pseudo-Iluminismo judiciário, punitivismo, cooperativismo forçado, captura do direito pela trinca política-moral-economia, espionagem governamental sistêmica etc.), é oportuno e conveniente destacar-se do direito constitucional um «novo» sub-ramo dogmático: a GARANTÍSTICAi.e., a constitucionalística especializada nas garantias dos cidadãos. Afinal, destacamento e especialização geram aprofundamento. Embora componha o núcleo duro do constitucionalismo liberal, a Garantística ainda não adquiriu - em pleno século XXI - a desejável musculatura epistemológica. 1) Ainda é necessário que os pontos de compreensão das garantias constitucionais se fixem melhor mediante organizações, explicações, conceituações, definições, classificações, divisões, distinções e sistematizações mais rígidas [Analítica Garantista]. 2) É preciso, outrossim, que se investiguem a (des)necessidade e, eventualmente, as bases metodológicas de um órganon interpretativo específico - que não se dissolva na «teoria geral da interpretação» - para dispositivos constitucionais sobre garantias [Hermenêutica Garantista]. 3) Por fim, é inadiável o desenvolvimento e a catalogação de fórmulas acionais práticas, bem sucedidas empiricamente, para o uso estratégico das garantias contra o arbítrio estatal [Pragmática Garantista] (sobre os modelos analítico, hermenêutico é pragmático, v. nosso: Uma arqueologia das ciências dogmáticas do processo. RBDPro n. 61, jan./mar. 2008, p. 11-42).

Sob o ponto de vista analítico, as garantias constitucionais se podem submeter a várias classificações. Certamente a principal delas tem como critério a função estatal enfrentável pela garantia. Nesse caso, fala-se em: (a) GARANTIAS CONTRA-ADMINISTRATIVAS (ex.: concurso público; licitação; legalidade; impessoalidade; publicidade; eficiência; ação popular; mandado de segurança; habeas data; justa e prévia indenização nas desapropriações); (b) GARANTIAS CONTRALEGISLATIVAS (ex.: «limitações constitucionais ao poder de tributar»; «limitações constitucionais ao poder de punir»; ação direta de inconstitucionalidade; ação direta de inconstitucionalidade por omissão; ação declaratória de constitucionalidade; arguição de descumprimento de preceito fundamental; controle difuso de constitucionalidade; mandado de injunção); (c) GARANTIAS CONTRAJURISDICIONAIS (ex.: reclamação ao Conselho Nacional de Justiça, reclamação às ouvidorias de justiça; devido processo legal ou processo-garantia; contraditório; ampla defesa; juiz natural; duplo grau de jurisdição; advocacia).

Frise-se que algumas dessas garantias são oponíveis - a um só tempo - a mais de uma função estatal (ex.: habeas corpus, reclamação constitucional; legalidade; mandado de segurança; publicidade). Todavia, em razão da chamada «eficácia horizontal dos direitos fundamentais» [Die horizontale Wirkung von Grundrechten], há quem defenda a oponibilidade de garantias constitucionais não só a abusos estatais (as GARANTIAS CONTRA-ESTATAIS), como também a abusos privados. Numa relação entre particulares, por exemplo, o titular de um poder pode exercê-lo, de modo excessivo, desviado ou arbitrário, em detrimento do titular da correlata sujeição; assim, poder-se-ia eventualmente pensar num quartum genus: (d) as GARANTIAS CONTRAPRIVADAS (ex.: devido processo legal; ampla defesa; contraditório).

Sob o ponto de vista hermenêutico, ante a natureza contrapotestativa da garantia, é possível extraírem-se, por exemplo, as seguintes «diretrizes interpretativas»:

1) Titular de poder não pode interferir em garantia correlata [princípio da intangibilidade da garantia] - pois ele pode despotenciar a garantia in causa sua, razão por que não é possível, v. g.: à comissão de licitação inverter etapas de um certame estabelecidas em lei; à comissão organizadora suprimir fases de um concurso público estabelecidas em lei; ao poder expropriante definir unilateralmente critérios de cálculo da «justa indenização»; ao juiz flexibilizar ex officio o procedimento legal; ao tribunal enrijecer defensivamente requisitos de admissibilidade recursal; ao legislador limitar as espécies legislativas suscetíveis de controle de constitucionalidade; ao legislador definir - ainda que por critérios objetivos - quando os próprios tributos por ele instituídos tem ou não caráter de confisco;

2) Texto sobre garantia se interpreta para fortalecer a garantia, não o poder correlato [princípio da maximização da garantia] - por isso, não se pode invocar, p. ex.: a garantia da proporcionalidade para aumentar os poderes do Estado ao invés de lhe coibir os excessos; a garantia do devido processo legal - sob a roupagem prostituída do «processo justo» - para imputar aos juízes poderes não expressos nas leis procedimentais; a garantia da eficiência administrativa para inchar o Estado mediante a criação de agências reguladoras não expressas na Constituição; a garantia acusatória [nullum iudicium sine accusatione] para conferir ao órgão acusador poderes investigatórios não expressos na Constituição nem na lei procedimental penal;

3) Texto sobre garantia se interpreta ampliativamente e, por correlação, texto sobre poder se interpreta restritivamente [princípio da expansão da garantia] - a fim de que se supere eventual penúria do texto constitucional e não haja poder sem contraste, reserva-se às garantias o maior âmbito de aplicação possível e aos poderes o menor; logo, é antirrepublicana, e.g., a chamada «teoria dos poderes implícitos» [inherent powers ou implied powers], que se justifica, quando muito, nas constituições sintéticas (como a Constituição Americana de 1787), não nas analíticas (como a Constituição Brasileira de 1988); mais republicano é uma teoria das garantias implícitas (ex.: garantias implícitas da proporcionalidade, da razoabilidade, da motivação dos atos administrativos, da presunção de inocência civil ou extrapenal, do duplo grau de jurisdição, do promotor natural, da imparcialidade judicial), que instala o «reino do subentendido» ex parte populi, não ex parte principis.

Sob o ponto de vista pragmático, importa a compreensão empírica dos comportamentos em juízo, tal como orientados pelo garantismo. Isso permite que se demarquem as zonas comportamentais sub-permeáveis ou im-permeáveis à garanticidade do processo e, consequentemente, que se orientem ações estratégicas garanticizantes. Ou seja, permite elaborar-se uma orientação metódica para a implantação prática garantista. Exemplo interessante dessa contribuição tem sido dado por um novo ramo científico chamado Behavioral Law & Economics (uma fusão entre direito, economia comportamental e psicologia cognitiva). Tem ele ajudado a radiografar «quebras inconscientes de imparcialidade» - previsíveissistêmicas e, portanto, evitáveis - por enviesamento cognitivo dos juízes. Vieses cognitivos [cognitive biases] são atalhos mentais que, simplificando o processo decisório, eliminam informações relevantes e, por conseguinte, produzem não raro decisões sub-ótimas.

No âmbito processual, dois exemplos importantes são a «heurística de confirmação» [confirmation bias] (ex.: o juiz da liminar tende a confirmá-la na sentença) e a «heurística de representatividade» [representativeness bias] (ex.: o juiz da prova oral tende a valorá-la inadequadamente impressionado por gestos, atitudes, perturbações e surpresas dos atores em audiência) (sobre os vieses cognitivos no direito processual, v. nosso: Levando a imparcialidade à sério... Salvador: Juspodivm, 2018). Assim sendo, propõe-se uma «especialização funcional dos juízes» [divided decision-making strategy]: uns destinados só a instruir [judges functioned solely as case managers], outros só a julgar [judges functioned solely as adjudicators] (GUTHRIE, RACHLINSKI & WISTRICH. Inside the judicial mind. Behavioral Law and Economics. v. III. Coord. Jeffrey J. Rachlinski. Edward Edgar: Northampton, MA, 2009, p. 51. No mesmo sentido: GALLO, Jaime Afonso. Las decisiones em condiciones de incertidumbre y el derecho penal. InDret – Revista para el análisis del derecho. n. 4, 2011, p. 21). GLAUCO GUMERATO RAMOS fala em «procedimento judicial funcionalmente escalonado»: «um juiz para a urgência, um para a instrução e um para a sentença, que deve atuar na respectiva etapa de competência» (Sistema de enjuizamento escalonado... RBDPro n. 71, jul./set. 2010, p. 65).

III

Uma ciência-das-garantias teria hoje enorme valia. Algumas delas, como a proporcionalidade e a eficiência, foram capturadas pelo Estado (tendo em vista a míngua de uma Garantística, que as fizesse melhor compreendidas e, em consequência, imunes à captura). De contra-estatal se degradaram em pró-estatal. De garantia em instrumento. De escudo em arma. No entanto, talvez a mais impiedosa desnaturação se haja infligido ao processo (o «devido processo legal»). De contra-jurisdicional se descaiu num pró-jurisdicional. De garantia dos jurisdicionados num instrumento da jurisdição. De servente das partes num servente do juiz. De proteção do cidadão em utensílio do poder. Por isso, só uma Garantística bem desenvolvida poderá devolver o processo ao seu chão original. A marcha devolutiva há de ser do sistema-constitucional ao sub-sistema-de-garantias, do sub-sistema-de-garantias ao sub-sub-sistema-processual. Em outras palavras: da constitucionalística à garantística (que é constitucionalística especializada), da garantística à processualística (que é garantística especializada). O garantista será o constitucionalista das garantias; o processualista, o garantista do processo (irredutível ao procedimentalista, que se cinge a estudar a multiplicidade infraconstitucional dos procedimentos civil, penal, trabalhista, eleitoral etc., que dão corporeidade à unidade constitucional do processo). Logo, o garantista não é apenas um processualista, mas «o» experto omniabrangente das garantias contralegislativascontra-administrativas e contrajurisdicionais. Enfim, é um «interjurista», forjado entre um constitucionalismo especializado e um processualismo expandido.

 

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