Coluna ABDPRO
Cresce entre nós o chamado garantismo processual. Em síntese, eis o que propõe essa epistemologia: tratar o processo, em si, como instituição de garantia[1]. Processo não é (ontologia) nem tem por fim (teleologia) ser ferramenta ou instrumento da jurisdição. É instituição garantística contrajurisdicional de liberdade das partes[2]. A garantia é o processo. Portanto, é inócuo falar em “garantias de processo”, pois o que há é a “garantia do processo” em si considerado. Parafraseando G. K. Chesterton (“Santo Tomás não reconciliou Cristo com Aristóteles; reconciliou Aristóteles com Cristo”[3]), dizemos que o garantismo não reconcilia a Constituição da República com o Processo; reconcilia o Processo com a Constituição da República.
O garantismo processual propõe uma diferenciação nítida de objetos epistemológicos: há a jurisdição (instituição constitucional de Poder, muitas vezes estatal), há o processo (instituição constitucional de garantia contrapoder) e há o procedimento (corporificação prática do processo).
A jurisdição é objeto bastante delineado. Há muita discussão sobre o fenômeno da jurisdição no âmbito não estatal, mas parece haver bom desenvolvimento doutrinário sobre a diferença entre jurisdição e processo e, também, entre jurisdição e procedimento.
Em rigor, porém, uma mirada mais detida põe em questão essa suposta boa diferenciação entre jurisdição em processo. Com efeito, todo objeto de conhecimento pode ser apreendido, v.g., em sua definição (ontologia = o que ele é) e em sua destinação (teleologia = qual a sua finalidade). Por força da hegemonia da epistemologia instrumentalista[4], consolidou-se o habitus de definir o objeto processo como ferramenta ou instrumento da jurisdição[5]. Mas isso diz apenas sobre o seu fim, nada acerca do seu ser; nenhuma informação fornece a respeito do que ele é, posto tudo diga relativamente a que(m) ele serve. De modo que a useira definição de processo não passa de destinação travestida. Por sinal, referido baralhamento se vê também nas correntes ligadas à cooperação processual, segundo as quais tanto o processo quanto a jurisdição têm por fim prestar tutela aos direitos e promover a unidade do direito mediante precedentes[6]. Como é a jurisdição que presta tutela aos direitos e forma precedentes através do processo, fica pouco mais do que evidente que este é visto como instrumento daquela. Não por acaso se vê trabalho destacando os profundos vínculos entre o instrumentalismo processual e a cooperação processual[7]-[8].
Passa-se à definição e à destinação do processo à luz do marco teórico do garantismo processual. Institutos jurídicos podem ser definidos desde os mais variados ângulos, daí ser impossível responder sobre a natureza jurídica de algo assim, genericamente. Urge delimitar o subdomínio da juridicidade a partir do qual se pretende fazê-lo. Deveras, a resposta sobre a natureza jurídica do processo varia conforme se tenha em mente o âmbito jurídico-administrativo, jurídico-tributário, jurídico-teórico etc. Afirmar que o processo é “instituição de garantia contrajurisdicional de liberdade das partes” é responder por sua natureza jurídico-constitucional. Importante ressaltar: essa definição pretende (nos limites em que isso é possível) ser estritamente descritiva do direito constitucional positivo brasileiro (no máximo, de seu bloco de constitucionalidade), nada mais. Não aspira ser ideal, nem ambiciona alcance universal. Dispensa-se de ser referencial de lege lata à institucionalidade jurídico-positiva de outras comunidades políticas[9]. Com essa definição, torna-se possível diferenciar claramente a destinação do processo e da jurisdição. Se o fim da jurisdição é a solução imparcial dos casos mediante aplicação imparcial da lei[10], o fim do processo é garantir que tal atividade se dê sem ilicitudes, excessos ou abusos do Estado-juiz[11]. Fito esse, aliás, plenamente compatível com o dado invariável (posto que não exauriente) do constitucionalismo: a contenção do poder para a tutela das liberdades.
Maior dificuldade há em diferenciar processo e procedimento. Já disse Eduardo José da Fonseca Costa que o processo está para alma, assim com o procedimento está para o corpo. Noutras palavras: o corpo-procedimento está para o plano da imanência, ao passo que a alma-processo está para o plano da transcendência. Neste sentido, o procedimento corporifica, imanentiza, concretiza a garantia do processo, sua alma, seu transcendente, seu abstrato. Adiante, a metáfora será útil para delimitar o âmbito de incidência dos arts. 22, I, e 24, XI, CRFB.
Para o garantismo processual, toda linguagem sobre o processo é constitucional[12]. Em decorrência do ajuste axiológico acima referido, o processo é o conjunto de garantias (expressas ou implícitas – art. 5º, § 2º, CRFB) contrapoder instituído em favor do cidadão. Esse conjunto garantístico está previsto na Constituição. Apenas nela. Por isso o processo é constitucional, sem mais adjetivos. Eis a alma.
O que se convencionou chamar processo civil, processo penal etc., na verdade, são as concretizações, manifestações imanentes do processo. Para o garantismo processual, precisamente isso é o procedimento. Daí só se poder falar em procedimento civil, procedimento penal etc. Eis o(s) corpo(s).
Não quer isso dizer que a Constituição não possa dispor, também, sobre procedimentos. Sim, ela pode. Quer dizer que a lei (tomado o significante em sentido amplo, como qualquer norma positiva infraconstitucional) não pode dispor sobre processo.
Disso decorre a identificação de duas disciplinas distintas: a processualística, cujo objeto de estudo é o programa normativo constitucional (CRFB e os diplomas que compõem o bloco de constitucionalidade) e a procedimentalística, cujo objeto de estudo é o programa normativo infraconstitucional (CPC, CPP etc.). A primeira interfere nesta, mas não se debruça diretamente sobre o objeto de estudo dela; a segunda desenvolve-se em atenção à primeira, é por ela influenciada e condicionada, mas dedica-se, digamos assim, aos seus desdobramentos corpóreos. Sobre o imanente, não sobre o transcendente. Mas atenção: as duas são relevantes, apenas seus objetos diretos de estudo são diferentes. Nada impede que, com rigor metodológico, ambas sejam desenvolvidas pelo mesmo indivíduo. Ele só não pode perder de vista que o constitucional desde-já-sempre coloniza procedimental, nunca o contrário.
Desde o garantismo processual, afirma-se que, no caso brasileiro, apenas o poder constituinte derivado legisla sobre processo. Ora, se o processo é o conjunto de garantias contrapoder (expressas e implícitas – art. 5º, § 2º, CRFB) previstas na Constituição, apenas norma constitucional pode ter natureza de processo. A contrario sensu, não compete à União legislar sobre processo, pelo menos não no sentido que aqui atribuído ao significante.
A tese não deve impressionar. Afinal, a Constituição institui Garantia e Poder. Logo, apenas Constituição pode, nos limites por ela fixados, criar, modificar ou extinguir Garantia e Poder. Ora, essa é exatamente a relação entre processo e jurisdição. É notório que a União não legisla sobre o Poder Judiciário. Apenas o Congresso Nacional, na condição de Poder Constituinte Derivado, o faz. Nem poderia ser diferente, já que se trata de Poder instituído constitucionalmente. Pelas mesmíssimas razões, portanto, apenas o Congresso Nacional, na mesma condição de Poder Constituinte Derivado, legisla sobre processo. Afinal, trata-se de garantia constitucionalmente instituída. Em termos lógicos, se o Poder Constituinte Originário instituiu Garantia e Poder, apenas o Poder Constituinte Derivado pode – repita-se: nos limites definidos pelo primeiro – legislar sobre processo (Garantia) e jurisdição (Poder).
Por todo o exposto, já se conclui que o art. 22, I, CRFB, institui competência privativa da União para legislar sobre procedimento. Não por acaso, é a União quem legisla (cria, modifica e extingue) os Códigos de Procedimento (erroneamente nominados Códigos de Processo) Civil, Penal etc. e demais leis procedimentais. Assim, o dispositivo deve ser lido como instituinte da competência para legislar sobre direito procedimental.
Disso decorre que um Estado da federação não pode legislar sobre requisitos da petição inicial. Alguém, imerso no baralhamento conceitual propagado pelo próprio texto constitucional e pouco esclarecido pela doutrina, poderá gritar: mas é procedimento! Sim. É procedimento. Ontologicamente, temos aí regra procedimental. Afinal, a “a petição inicial é microgarantia, pois impede o juiz de satisfazer direito litigioso sem provocação formal pelo titular e sem o obrigado conhecer o alegado contra ele”[13]. E exatamente porque questão procedimental, compete exclusivamente à União legislar sobre os requisitos de uma petição inicial. O mesmo vale para microgarantias outras, como a contestação (que “impede o juiz de satisfazer direito litigioso sem antes ouvir o obrigado”), o recurso (que “viabiliza a correção de decisões judiciais equivocadas”[14]) etc. Não pode um Estado federado legislar sobre os procedimentos recursais. Não pode um Estado legislar, de maneira inédita, sobre o procedimento de um recurso inovador. Temos questões puramente procedimentais, onde o imanente atinge o transcendente do processo. Quando for o caso, a competência legislativa será tão-somente da União.
Por exclusão, o art. 24, XI, CRFB, não institui competência para a União, os Estados e Distrito federal legislar concorrentemente sobre procedimento. Em lógica dedutiva, é inválido afirmar, ao mesmo tempo, que a União tem competência privativa para legislar sobre procedimento, e que a União, os Estados e o Distrito Federal têm competência concorrente para legislar sobre procedimento. Ou a legislação sobre procedimento é de competência privativa da União ou é concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal. Impossível que haja esse concurso pleno. Consequentemente, a única explicação para a coexistência lógica dos arts. 22, I, e 24, XI, CRFB, é eles terem por objeto normas de natureza distinta. Em coerência como quanto afirmado, sobretudo, em 9 e 10, conclui-se que, de fato, compete privativamente à União legislar sobre direito procedimental, isto é, procedimento. Resta identificar, afinal, qual o objeto da prescrição do art. 24, XI, CRFB, já que não é processo (necessariamente objeto de emenda constitucional) nem procedimento (necessariamente objeto de lei federal).
De acordo com Aroldo Plínio Gonçalves, com escólio em Elio Fazzalari, o procedimento é uma sequência normativa e nela “a observância da incidência da norma que prevê o ato que pode ser exercido ou deve ser exercido ou deve ser cumprido é pressuposto, é condição de validade, da incidência de outra norma que dispõe sobre a realização de outro ato, sendo deste o pressuposto, assim até que o procedimento se esgota atingindo seu ato final, quando se verificam todos os pressupostos normativamente previstos para a emanação do provimento”[15]. O procedimento não se esgota num único ato nem consiste em simples cadeia normativa, se apresenta como um complexo normativo em que um primeiro ato é pressuposto de validade de outro, que, por sua vez, se torna do próximo e assim sucessivamente, até o provimento. Assim, de ato-pressuposto em ato-pressuposto, que o procedimento vai dando imanência o processo (alma), corporificando-o. Todavia, entremeado no procedimento (tomado como norma e como ato) incidem, também, regras e são praticados atos que com ele não se confundem. Afinal, se o processo (alma) é a garantia que se interpõe entre os jurisdicionados e o Estado-juiz, é inevitável que o mesmo espaço fenomênico seja compartilhado pela imanência (corpo) da jurisdição. Nos termos até aqui desenvolvidos, o procedimento é o corpo do processo. É chegada a hora de dizer qual é o corpo da jurisdição.
Enquanto alma, a Jurisdição necessita corporificar-se, ganhar imanência, expressão fenomênica. É necessário que normas disciplinem isso. Tais são as normas a que se refere o art. 24, XI, CRFB. No jogo conceitual aqui indicado, tal dispositivo não versa sobre processo, nem sobre procedimento. Seu objeto é a burocracia judiciária. Normas que definem rotinas cartorárias, local de paginação de folhas (no caso de processos físicos), quantidade de páginas de cada volume (no caso de processos físicos) etc., não são processuais, por óbvio, nem procedimentais, pois não disciplinam microgarantias que minudenciam macrogarantias. São isso e apenas isso: regras que explicitam o modo de se manifestar a burocracia judiciária.
Precisamente por essa razão é que a competência legislativa é concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre a matéria. O procedimento corporifica o processo (alma), garantia contrapoder instituída constitucionalmente em favor do cidadão, razão pela qual nada há de interesse local que pudesse justificar competência legislativa concorrente. Tal como desenhada a federação brasileira e o arranjo de competências fixado na Constituição, seria absolutamente impensável que os cidadãos tivessem mais ou menos microgarantias processuais apenas porque residentes nesse ou naquele Estado da federação. Por outro lado, como o art. 24, XI, CRFB, trata da competência para legislar sobre a manifestação da burocracia judiciária, que dá imanência ao transcendente jurisdição (alma), é perfeitamente compreensível a concorrência entre a União, os Estados e o Distrito Federal. Afinal de contas, o Poder Judiciário ocupa a burocracia da União (Justiça Federal lato sensu) e dos Estados e do Distrito Federal (Justiça Estadual). Daí a difusão da competência legislativa. Assim situadas as coisas, estranho seria se fosse diferente.
Dessa maneira, se o procedimento é o corpo daquela alma chamada “processo”, poderia uma unidade federada criar um Código de Procedimento Civil? Poderia o Paraná instituir norma procedimental que, na prática, funcione como tutela recursal? Poderíamos pensar em diferentes normas procedimentais entre o Paraná e o Espírito Santo, e. g., sobre tutela antecipatória? A resposta, nos moldes do marco teórico desse texto, são negativas. O procedimento, enquanto imanente do transcendente processo (alma), só pode ser objeto de lei de da União (art. 22, I), nunca dela em concorrência com os Estados e o Distrito Federal. A legislação concorrente pressupõe interesse local, o que não há com o procedimento, mas apenas com a expressão fenomênica da burocracia judiciária (art. 24, XI).
Um exemplo pode fazer as ideias mais claras: as regras que definem os pressupostos da petição inicial e da contestação corporificam garantias (são, elas próprias, microgarantias), integram, pois, o procedimento, já as regas que definem o local de numeração de páginas das folhas (no caso de processo físico), disciplinam a manifestação exterior da burocracia estatal, dão imanência, corporificam o transcendente jurisdição. As regras que definem os pressupostos da petição inicial e da contestação são procedimentais e só podem ser objeto de lei federal (art. 22, I), já aquelas que definem o local de paginação dos atos em geral não, por isso tanto União, Estados e Distrito Federal, no exercício de competência estadual, podem legislar sobre (art. 24, XI). Dialogando com o conceito de procedimento visto alhures, claro está que a observância das regras que disciplinam a petição inicial e a contestação são pressupostos de validade do provimento, mas o mesmo não se pode dizer daquelas regras que tratam do local de paginação das peças ou da limitação de página por volume de autos. Não há razão para tratar essas regras como instituintes e pressupostos de validade dos atos do procedimento. Por isso, em todos os Estados da República Federativa do Brasil, o juiz que deferir, v.g., uma tutela possessória observará, necessariamente, as regras procedimentais do Código de Processo Civil (Lei da União – Lei Federal n.º 13.105/2015). São regras procedimentais que vinculam todos os juízes do país.
De algum modo, a intuição sempre nos conduziu diante do tema. Quando indagados se um Estado da federação criar um procedimento específico inédito, respondíamos, instintivamente, que não. Algo em nós dizia: “isso é processo”. Ontologicamente é procedimento, mas qualquer processualista resistirá em crer que um Estado possa legislar um procedimento inédito, diverso do CPC (ou de qualquer outra lei federal). Mesmo que a Constituição da República diga: a competência legislativa é concorrente nos “procedimentos em matéria processual” (inciso XI do art. 24).
Agora, o aporte do garantismo processual na definição de processo e procedimento nos permite perceber que nosso instinto é justamente isso: em regra, o procedimento (corpo) tem uma alma, o processo. Quando o procedimento concretiza a instituição processo, torna prática a garantia antes abstrata. Por isso, ainda que a regra seja ontológica e substancialmente procedimental, será de competência legislativa privativa da União quando afetar a garantia de processo da parte. Exatamente por isso interpretamos o art. 22, I, CRFB, no sentido de que compete privativamente à União legislar sobre direito procedimental. Já não vemos mais aí autorização para legislar sobre direito processual, privativo que é, como visto no item 7, da competência do Poder Constituinte Derivado. Por outro lado, quando o aspecto que sempre chamamos de “procedimental” consistir em corporificação do transcendente jurisdição (alma), então é manifestação da burocracia judiciária (uma regra de um cartório, e. g.) e a competência legislativa será concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (art. 24, XI).
Há vários indicativos na jurisprudência que parecem corroborar o sentido do texto – embora ela, a jurisprudência, não siga, ainda, o garantismo processual e, de certo modo, tenha dimensionado o tema algo intuitivamente, data maxima venia. Vejamos três exemplos:
1.º) o STF já declarou a inconstitucionalidade da Lei do Estado de São Paulo de n.º 11.819/2005, que havia criado interrogatório por videoconferência. Consta da ementa o seguinte: “a Lei n.º 11.819/05 do Estado de São Paulo viola, flagrantemente, a disciplina do art. 22, inciso I, da Constituição da República, que prevê a competência exclusiva da União para legislar sobre matéria processual”[16]. Ora, o “rito”, o “corpo” da videoconferência em si considerada é, do ponto de vista ôntico, questão procedimental. Mas aí São Paulo pretendeu imanentizar um transcendente valioso: a garantia do processo. Interrogatório é meio de defesa; é microgarantia. É, pois, questão indubitavelmente processual. Tem corpo de procedimento. Sempre terá corpo de procedimento. Mas sua alma é processual. E sobre a alma legisla só a União.
2.º) o STF já declarou inconstitucional lei estadual que criou embargos de divergência contra decisão de turma recursal, no âmbito dos juizados especiais[17]. Ora, já salientamos acima: recurso é microgarantia. Tem alma de processo. É corporificado em procedimento, mas seu espírito é processual.
3.º) o STF decidiu pela constitucionalidade de lei estadual que cria varas especializadas em delitos praticados por organizações criminosas[18]. Realmente, aí temos um quid procedimental: mas a questão afeta a própria jurisdição. Logo, um Estado poderá legislar sobre o tema, com base no art. 24, XI, da CRFB.
A linguagem do garantismo processual contribui para aclarar a leitura sobre o texto constitucional. Em face de todo o exposto, a competência privativa da União para legislar sobre “direito processual” (art. 22, I) deve ser lida como competência para legislar sobre direito procedimental. Já a competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (exercendo competência estadual) sobre “procedimentos em matéria processual” (inciso XI do art. 24) deve ser interpretada como competência para legislar sobre matérias de estrita burocracia judiciária. No primeiro caso, temos competência legislativa privativa da para legislar sobre procedimentos em matéria externa processual, já no segundo caso, competência legislativa concorrente sobre procedimentos em matéria interna jurisdicional. Quando o procedimento for corpo contendo alma processual, concretizando ou afetando o processo como garantia, então a competência legislativa será, somente, da União. Mas se o “procedimento” (tomado em sentido amplíssimo, sem o rebusco aqui elaborado) for corpo contendo alma jurisdicional, disciplinando a manifestação da burocracia judiciária, então a competência será concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal.
Este texto não tem a pretensão de exaurir, em definitivo, essa questão. Alguém poderá dizer, por exemplo, que seria desnecessária a confecção de lei estadual versando sobre alguns pontos citados acima. Mas daí decorre outra conclusão: uma norma sobre esses mesmos pontos que seja editada pelas corregedorias configuraria usurpação legislativa. Melhor seria pensar numa atribuição constitucional de iniciativa legislativa privativa da presidência dos tribunais, com chancela pela Assembleia Legislativa respectiva. Quiçá poderíamos falar numa espécie de “lei procedimental em branco”: um ex ante do devido processo legislativo permitindo um ex post administrativo (um ato-regra delimitado pelo semântico do texto da lei). Não existe, p. ex., “devido processo portarial” (ou, para lembrar de colocação feliz de Eduardo José da Fonseca Costa, não podemos falar em devido “processo infralegal”, nem mesmo em “processo extralegal[19]). São inconstitucionais, p. ex., regras abstratas decorrentes de atos administrativos dos tribunais que, de algum modo, criam um plus – ainda que indireto – sobre o juízo de admissibilidade dos agravos de instrumento. Também parece ser inconstitucional a Resolução n.º 22.610/2007, do TSE[20], que cria procedimentos eleitorais de ação de decretação de perda de cargo eletivo por desfiliação sem justa causa e, também, de ação de justificação de abandono de sigla. Como bem afirmado por Antonio Carvalho Filho, em conversa pelo Telegram, a imanência da burocracia judiciária é o espaço, por excelência, para o desenvolvimento correto, profícuo e adequado das discussões a respeito da eficiência do serviço judiciário (art. 37, CRFB, e art. 8º, CPC). Mas tudo isso demanda mais reflexões sobre o tema. Por ora, à guisa de ensaio, basta[21].
Notas e Referências
[1] Deve-se a Eduardo José da Fonseca Costa a edificação consistente, no Brasil, das bases epistemológicas do garantismo processual – que, ressalte-se, nenhuma relação tem com o garantismo jurídico de Luigi Ferrajoli, posto o significante “garantismo” pudesse induzir a assimilação. O texto de entrada para essa compreensão do processo como instituição de garantia é: COSTA, Eduardo José da Fonseca. O Processo como Instituição de Garantia. In: https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia.
[2] Para compreender o sentido do significante “liberdade” para o garantismo processual, conferir: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: Garantia De Liberdade [Freedom] E Garantia De «Liberdade» [Liberty]. In: http://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty
[3] CHESTERON, G. K. Santo Tomás de Aquino. Trad. Antônio Emílio Angueth de Araújo. 3.ª ed. Campinas: Ecclesiae, 2015, p. 27.
[4] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 14ª Ed. Malheiros. 2009.
[5] Veja-se a categórica afirmação de José Roberto dos Santos Bedaque: “processo e jurisdição têm o mesmo objetivo, o que é perfeitamente natural, visto que o primeiro constitui meio de atuação da segunda. Sendo o processo instrumento da jurisdição, deve ser entendido em função desta, ou seja, como instrumento de garantia do ordenamento jurídico, da autoridade do Estado” (Poderes Instrutórios do Juiz. 7ª Ed. RT. 2013, p. 70).
[6] Afirmam Luiz Guilherme Marinoni, Sergio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero que no Estado Constitucional “o processo civil passou a responder não só pela necessidade de resolver casos concretos mediante a prolação de uma decisão justa para as partes, mas também pela promoção da unidade do direito mediante a formação de precedentes. Daí que a jurisdição no processo civil do Estado Constitucional tem por função da tutela aos direitos mediante a prolação de decisão justa para o caso concreto e a formação de precedente na formação da unidade do direito para a sociedade em geral” (Novo Curso de Direito Processual Civil. 2ª ed. V. 1. RT. 2016, p. 15-151.).
[7] A propósito, conferir: AULIO, Rafael Stefanini. O Modelo Cooperativo de Processo Civil no Novo CPC. O trabalho é emblemático por várias razões, dentre as quais destacamos: é versão comercial de dissertação de mestrado defendida e aprovada junto ao departamento de direito processual da faculdade de direito da USP, o epicentro do instrumentalismo processual no Brasil; foi orientado por Cândido Rangel Dinamarco, figura mor do instrumentalismo processual no Brasil; seu o capítulo II é dedicado a demonstrar justamente “A Instrumentalidade como Fundamento de um Processo Civil Cooperativo” (p. 25 e ss.). De modo que ficam muito claramente postos os vínculos entre instrumentalismo processual e cooperação processual. Para notas críticas da “teoria geral do processo” criada na USP, ver SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Ciência processual e ciência jurisdicional. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, n. 104, out./dez. 2018
[8] Em sentido contrário, pretendendo extremar o formalismo-valorativo e o instrumentalismo processual, conferir: ZANETI JR., Hermes. MADUREIRA, Cláudio Penedo. Formalismo-Valorativo e o Novo Processo Civil. Revista de Processo. vol. 272. Out. 2017. Versão Eletrônica. Não nos parece que o texto desata os elos de imbricação entre as referidas epistemologias processuais. As diferenças apontadas – se é que existem e procedem – se situam no âmbito da teoria da interpretação, não no bojo do fenômeno processual, propriamente dito, menos ainda das relações teleológicas entre processo e jurisdição.
[9] Segundo Eduardo José da Fonseca Costa: “A maioria dos países ocidentais consagra o devido processo legal como garantia constitucional, o que possibilita um código teórico-linguístico homogeneizado e, portanto, um intercâmbio transnacional entre os seus juristas. Mas onde o processo for instrumento de poder ex vi constitutionis, ali o garantista só poderá lastimar – porque ciente dos males do instrumentalismo processual – e restringir-se a considerações de iure condendo. Nesse sentido, o garantismo é uma teoria positivista (conquanto se possa cogitar, por exemplo, de um «garantismo jusnaturalista», que divise afronta à «natureza das coisas» em toda constituição que tente privar o processo de sua «essência garantista»). Por conseguinte, a rigor, não há «o» garantismo universal, mas os garantismos nacionais (brasileiro, argentino, peruano etc.): ele se faz para cada sistema constitucional positivo que institua a garantia do due process of law”. Breves Meditações Sobre o Devido Processo Legal. In: http://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-15-breves-meditacoes-sobre-o-devido-processo-legal
[10] Novamente com Eduardo José da Fonseca Costa, há duas garantias arquifundamentais do processo: (i) não-criatividade judicial e (ii) imparcialidade. A propósito, conferir: COSTA, Eduardo José da Fonseca. As Garantias Arquifundamentais Contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. In: http://emporiododireito.com.br/leitura/as-garantias-arquifundamentais-contrajurisdicionais-nao-criatividade-e-imparcialidade
[11] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O Processo como Instituição de Garantia. In: https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia.
[12] SOUSA, Diego Crevelin de. Dever (ou Garantia) de (Não) Provar Contra si Mesmo?(!) O Dilema Em Torno do Art. 379, CPC. http://emporiododireito.com.br/leitura/abdppro-35-dever-ou-garantia-de-nao-provar-contra-si-mesmo-o-dilema-em-torno-do-art-379-cpc
[13] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. Empório do Direito, Florianópolis, nov. 2017. Disponível em: https://goo.gl/9nmEC3. Acesso em 06 nov. 2018.
[14] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. Empório do Direito, Florianópolis, nov. 2017. Disponível em: https://goo.gl/9nmEC3. Acesso em 06 nov. 2018.
[15] Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª ed. Del Rey. 2012, p. 95.
[16] STF, HC n.º 90.900-1/SP. Rel.ª Min.ª Ellen Gracie. Rel. p/ Acórdão Min. Menezes Direito. Plenário. Julgado em 30 de outubro de 2008.
[17] STF, AI n.º 253.518-9/SC AgR. Rel. Min. Marco Aurélio, 2.ª Turma. Julgado em 09 de maio de 2000.
[18] STF, ADI n.º 4.414/AL. Rel. Min. Luiz Fux. Plenário. Julgado em 31 de maio de 2012.
[19] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O devido processo legal e os indevidos processos infralegal e extralegal. Empório do Direito, Florianópolis, jul 2018. Disponível em: https://goo.gl/ep3Vas. Acesso em 27 nov. 2018.
[20] Neste sentido, cf. PECCHININ, Luiz Eduardo. Da inconstitucionalidade da Resolução nº 22.610/2007, do Tribunal Superior Eleitoral. Revista Brasileira de Direito Eleitoral, Belo Horizonte, ano 2, n. 3, jul./dez. 2010.
[21] Antônio Carvalho Filho nos fez interessantes considerações a este respeito. Este texto é apenas um ensaio que serve ao lançamento das ideias. Retornaremos ao tema no futuro, de modo que teremos tempo e ocasião para refletir e dar a devida reverberação às suas ideias. Nada obstante, fica desde já registrado o nosso agradecimento por sua atenta leitura e generosa contribuição.
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