# 1 - Garantismo Processual em debate      

25/02/2019

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Ibero-americano (IIDP) e Pan-americano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito Padre Anchieta de Jundiaí (FADIPA). Diretor de Relações Internacionais da ABDPro. Presidente para o Brasil do IPDP. Advogado em JUNDIAÍ.

O mundo racional é movimentado e transformado pelas ideias, não pela força. Há certas ideias, todavia, que se impõem mais do que outras. Vários são os porquês dessa realidade. É como se algumas delas fossem entremeadas por uma oculta “força física” capaz de avassalar as mentes aprisionadas pelo senso comum. Assim se passou com o fenômeno jurídico que conhecemos por Processo.

Ao largo do século XX vigorou a ideia de que o Processo seria um instrumento do poder, no caso, do Judiciário. Desafortunadamente essa ideia segue reinante. Seria o Processo um instrumento a serviço das pessoas físicas que manejam, por dentro do Estado, a chamada jurisdição. Um instrumento a ser operado por juízes e tribunais com finalidades redentoras, cuja missão determinante seria o atingimento de certos escopos (=políticos, sociais, jurídicos), justificando, com isso, a sua razão de ser. Isso fez com que o chamado fenômeno processual passasse a ser pensado, operado e concretizado em perspectiva utilitarista ex parte principis.

Menoscabou-se a juridicidade-constitucional na qual estão radicadas as engrenagens do Processo. Fizeram dele um local de hiperpublicismo jurisdicional. Tornou-se o habitat de uma espécie de voluntarismo ideológico-solidarista cabresteado pela pessoa física do juiz em sua atuação monocrática ou colegiada. Deu-se margem à atuações demagógicas identificadas como ativismo judicial, onde prepondera o político, via “vontade” do decisor, e não o jurídico ao qual está vinculado. Num só golpe: é a potencialização do binômio autoritarismo/arbitrariedade por meio do exercício da jurisdição.  Quem neste instante me lê lembrará não apenas de um, mas de vários exemplos desse jaez. São histórias que diariamente invadem os nossos ouvidos.

São vários os motivos que impulsionaram a formação dessa ordem de coisas. O CPC austro-húngaro de 1897, opera magna legislativa do então Ministro da Justiça Franz Klein, pode ser considerado o marco fundante da estratégia consistente num  dirigismo processual que dá ao juiz (=jurisdição) a “mão de ferro” necessária para a condução da marcha do processo, influenciando o seu resultado de modo a se alcançar os “fins pacificadores” perseguidos pelo Estado por intermédio do(s) governante(s) de plantão. O código de Klein foi a matriz inspiradora de diplomas similares na Alemanha e na Itália, por exemplo. Por sua vez, estes três códigos europeus influenciaram, e muito, legislações correlatas aqui na América Latina.

No caso do Brasil, basta o exame da Exposição de Motivos do CPC-39 e do CPC-73 para que se constate a subserviência de nosso legislador aos cânones autoritários estabelecidos desde o Código austro-húngaro. Frise-se que o fato jamais foi dissimulado pelo pai-mentor deste CPC. Na verdade, esse viés autoritário foi até mesmo confessado por Franz Klein em sua exposição de motivos a este código. Sobre o tema, confira-se, dentre outros, o meu Ativismo e garantismo no processo civil: apresentação do debate, disponível em plataformas físicas e digitais.

Desnecessário dizer que nos domínios dos assim chamados processos penal e trabalhista a realidade autoritária é equivalente, onde o perverso ativismo judicial também é semeado e frutifica em solo fértil, como se não houvesse no historicismo jurídico do pós-guerra um cipoal de garantias constitucionais e internacionais pactuadas pelos povos e nações à guisa da blindagem contrajurisdicional (=EDUARDO COSTA) que marca o compromisso republicano e democrático do fenômeno que, juridicamente, identificamos por Processo.

Ainda que o senso comum da sociedade leiga, ou mesmo de certos setores do mundo jurídico, aceitem reflexões subservientes e miméticas ao excesso de autoridade, e com isso acabem por chancelar o ativismo judicial, não se pode esquecer que há uma Constituição a que todos estamos submetidos e que estabelece várias GARANTIAS. Uma delas é a GARANTIA do devido processo legal, que sinteticamente é uma plataforma de trabalho regrada por contraditório, ampla defesa e recursos, cuja regularidade da observância de suas regras é que legitimará o exercício republicanamente adequado da jurisdição. Basta a leitura dos incs. LIV e LV do art. 5º da Constituição Federal para concluir que Processo é GARANTIA, até mesmo pelo acaciano fato destes enunciados prescritivos topograficamente habitarem os confins dos “Direitos e GARANTIAS Fundamentais”.

Isso, por si só, já seria o bastante para que se abandonasse em definitivo a ideia de que o Processo seria um instrumento da jurisdição, o que de resto é uma herança caudatária (i) do hiperpublicismo processual implantado por Franz Klein, (ii) de sua reconfiguração pelo poder discursivo da New Left (=Nova Esquerda), a partir dos anos sessenta, por sobre a prédica dogmático-processual (=Acesso à Justiça de Mauro Cappelletti, por exemplo) e (iii) da instituição entre nós, com ares de suprassumo da vocação jurisdicional, da instrumentalidade do processo. Pronto! Foi o que bastou para os atores voluntaristas da cena processual se agigantassem insuflados pela própria macrocósmica visão do “justo” e da “justiça”, como se a ordem constitucional tivesse dado um “cheque em branco” para que juízes e tribunais vestissem capa e espada para justiçar os males da vida por meio do poder jurisdicional.

Foi nesse contexto que surgiu um movimento de resistência e de (re)conscientização do compromisso jurídico-constitucional do Processo como GARANTIA, o chamado Garantismo Processual, cujo respectivo debate vem ganhando espaço, também, aqui no Brasil.

Mas o que seria, grosso modo, o Garantismo Processual?

Para respondê-lo evoco os dizeres da CARTA DE JUNDIAÍ, o primeiro manifesto GARANTISTA produzido aqui no país e que já chegou ao mundo sendo firmado por juristas de todos os quadrantes da Ibero-américa, preocupados com o que vem sendo feito em nome do constitucionalmente equivocado ativismo judicial.

A CARTA DE JUNDIAÍ e respectivas assinaturas que a acompanham pode ser acessada facilmente na web. Eis a resposta à interrogação acima:     

O Garantismo é uma forma de pensar o Processo em suas dimensões analítico-legal, semântico-conceitual e pragmático-jurisprudencial como efetiva GARANTIA do indivíduo e da sociedade perante o poder estatal de exercer a Jurisdição. Se processo é garantia, jurisdição é poder, e este só será legitimamente exercido quando concatenar as regras de garantia estabelecidas no plano constitucional, como o devido processo, o contraditório (=direito das partes, não do juiz), a ampla defesa, a imparcialidade, a impartialidade, a acusatoriedade, a liberdade, a dispositividade, a igualdade, a segurança jurídica, a separação dos poderes, a presunção de inocência etecetera. O Garantismo Processual, ainda, respeita e leva a sério o papel contramajoritário da Constituição e das garantias por ela estabelecidas, além de racionalmente empreender, em caráter pedagógico, na dissuasão de posturas dogmático-discursivas que, contraditórias à Liberdade constitucionalmente garantida, contemplam proposições e soluções jurisdicionais ex parte principis reveladoras de arbítrio. O Garantismo Processual também implica um tipo de concentricidade que remete o seu discurso à cláusula do due process of law, que por resplandecer no núcleo fundante dos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição da República faz do Processo uma instituição de garantia, e não um ambiente político estatal para que o Judiciário atue para conflagrar a macrocósmica visão de mundo dos agentes públicos que o integram.    

Logo, qualquer postura racional (=plano das ideias) ou realizacional (=plano prático) que rejeite a utilização do Processo como ambiente autoritário-volitivo-criativo será uma postura de salvaguarda do processo como garantia. Portanto, uma postura consentânea com o Garantismo Processual e todos os multifacetados valores constitucionais nos quais se encontra aninhado.

Estou certo de que este espaço de debate sobre Garantismo Processual, criado pelo EMPÓRIO DO DIREITO, fomentará a difusão deste magno tema voltado a melhor compreensão dos vários aspectos que gravitam na órbita do fenômeno jurídico a que chamamos de Processo. A partir daqui outras mentes curiosas poderão seguir avançando nessa batalha que, ao fim e ao cabo, é de salvaguarda das GARANTIAS constitucionais que a República em que vivemos nos viabiliza. Algo, aliás, também presente no vizinho mundo hispano-parlante e no europeu, claro.

É o Garantismo Processual em debate o que todos aqui queremos. Sinta-se convidado ao diálogo!

 

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