1. INTRODUÇÃO
O novo CPC tem sido propagandeado como marco inaugural não só de um novo diploma legislativo, mas também de um novo modelo de processo. Mais do que uma mudança de lei teria sobrevido uma mudança de paradigma.
A banalizada afirmação, contudo, passa ao largo de esclarecimento basilar: se vivemos num Estado Democrático de Direito e o Bloco de Constitucionalidade é o fundamento formal e material de validade de todos os atos normativos, sendo a Constituição prenhe de garantias processuais, poderia o legislador infraconstitucional adotar um modelo de processo? Alterar um paradigma?
A resposta é negativa, evidentemente. Então, a validade do dito em liça exige uma dupla pressuposição: (i) o modelo adotado pelo CPC/15 não é bem um novo modelo, mas a explicitação do modelo constitucional de processo, e (ii) o modelo do CPC/73 era diverso do da Constituição e era inconstitucional (ou melhor, não recepcionado).
Aqui se passa algo curioso: posto seja caudalosa a quantidade de processualistas defensores da pressuposição (i), não há semelhante convicção quanto ao acerto da pressuposição (ii), sequer (e principalmente) entre os defensores da pressuposição (i)...
A reticência se justifica porque revela algo que comunica pelo não-dito e lança as seguintes indagações: seria, afinal, o modelo cooperativo o modelo constitucional de processo? Seria ele um modelo novo?
Tais perguntas me remetem às célebres preleções de Amilton Bueno de Carvalho acerca do Direito Penal. Para sinalizar o abismo entre os discursos dogmáticos e a realidade de tal ramo do direito, visando falar sobre o direito penal “como ele é” e não “como deveria ser”, o autor recorre a Tales de Mileto para sinalizar o primeiro sujeito que olhou para o mar e viu... mar! Não viu Poseidon, Nereu, Harpias, Sereias ou qualquer outro ser mitológico; só mar. A reviravolta é extraordinária, pois ali a filosofia suplanta o mito. A filosofia busca o conhecimento e a mitologia o encobrimento do que não pode ser dito, pela falta de palavras ou por opção (estratégica?) de não dizê-las, lembra Rubens Casara[2]. Com a filosofia, o sistema de significação deixa de ser fundado na crença (onde habitam os mitos) para ancorar-se na racionalidade (não confundir com racionalismo).
No embalo da alegoria, tenho procurado pensar a cooperação pelo que ela é, e não pelo que dizem que ela é. Claro que a minha visão pode ser caolha e produzir, até inadvertidamente, os meus próprios mitos. É um risco possível, mas que não deve desencorajar essa inadiável tarefa. Ciente dos percalços, sigo.
2. MODELOS DE PROCESSO: PARITÁRIO, HIERÁRQUICO E COOPERATIVO[3]
A doutrina cooperativista costuma apontar três modelos de processo: o paritário, o hierárquico e o cooperativo. Cada qual concebe um modo como o formalismo processual define o papel das partes e do juiz no processo[4].
O modelo paritário trata o processo como coisa das partes. A definição do objeto do processo, a escolha do rito e das provas a produzir é potestade absoluta delas. O juiz tem atuação passiva, um verdadeiro convidado de pedra. É um processo dispositivo.
O modelo hierárquico parte da divisão indivíduo, sociedade e Estado e conta com o predomínio do Estado-Juiz, alocado acima das partes. Há incremento dos poderes do juiz e diminuição do papel das partes no processo. Forma-se um processo inquisitório, conduzido autoritariamente pelo Estado-juiz. A legislação lhe confere amplos poderes de condução, inclusive no tocante à produção de provas ex officio. Ocorre a elevação e centralização burocrática do poder do Estado.
O modelo cooperativo mantém a divisão indivíduo, sociedade e Estado, mas é marcado pela submissão do Estado ao Direito e à participação social na sua gestão. Tal participação resgata a importância das partes ao vincular o juiz ao debate processual, oferecendo um ponto de equilíbrio entre o papel das partes e do juiz no processo. O juiz conduz o processo de modo dialogal, assegurando tratamento isonômico às partes para permitir que participem e influenciem no conteúdo dos provimentos.
Então, no modelo cooperativo o juiz se torna um dos participantes do processo, igualmente gravado pela necessidade de observar o contraditório ao longo de todo o procedimento. Diz-se mesmo que o modelo caracteriza-se pelo redimensionamento do princípio do contraditório, com a inclusão do órgão jurisdicional no rol dos sujeitos do diálogo processual como algo indispensável ao aprimoramento da decisão judicial. Em suma, o juiz está obrigado ao debate, ao diálogo processual.
Nesse sentido, o “princípio da cooperação”[5] atua diretamente, imputando deveres ao juiz[6], entre eles os deveres de esclarecimento (=o tribunal deve se esclarecer junto às partes quanto às dúvidas sobre suas alegações), lealdade (=proibição de litigar de má-fé e dever de respeitar a boa-fé objetiva), diálogo (=o órgão judicial deve dialogar e consultar as partes antes de decidir sobre qualquer questão, possibilitando que essas o influenciem a respeito do rumo a ser dado à causa), consulta (=o órgão jurisdicional não pode decidir nenhuma questão, de fato ou de direito, mesmo que cognoscível de ofício, que não tenha sido previamente submetida à manifestação das partes), prevenção (=o juiz deve prevenir que o direito da parte não seja frustrado pelo uso inadequado do processo) e auxílio (=o juiz deve afastar eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou cumprimento de ônus ou deveres processuais) – registro ter aqui inserido deveres indicados por Fredie Didier Jr não estão presentes no exato trecho da obra de Mitidiero ora resumido.
Em suma, funda-se a cooperação em dois pilares: (i) a repartição funcional equilibrada e (ii) o redimensionamento do contraditório (e da fundamentação das decisões).
3. TESTANDO A COOPERAÇÃO
Cabe perscrutar se a cooperação processual efetivamente (i) conduz a um modelo de processo calcado numa equilibrada distribuição funcional entre juiz e partes e (ii) promove um redimensionamento do contraditório e da fundamentação das decisões.
3.1. Divisão equilibrada de tarefas? O juiz dialoga?
Só se pode falar em divisão equilibrada de tarefas (ou repartição equilibrada de funções, como prefiro) quando se parte da intransigente preservação da imparcialidade do juiz.
Trata-se de dado de largada infenso a flexibilizações. Não há exceção aqui: ou o juiz é imparcial ou não é (leia-se: não atua como) juiz. Desconheço qualquer autor cooperativista que pense diferente disso (pelo menos abertamente). Nem poderia ser de outro modo, pois sendo as partes parciais e devendo o juiz ser imparcial não há equilíbrio onde o juiz é parcial. Falar, portanto, em divisão equilibrada de tarefas exige tratar, em primeiro e definitivo lugar, da imparcialidade do juiz.
Como ninguém ignora, a imparcialidade é corolário da garantia do devido processo legal[7] e consta expressamente em diversas normativas internacionais em vigor no Brasil (art. 14 do Pacto Internacional de Direitos Individuais e Políticos e art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos).
A garantia da imparcialidade pode ser analiticamente decomposta em dois sentidos: (i) imparcialidade subjetivo-psíquica e (ii) objetividade objetiva, que se subdivide em (ii.1) objetivo-funcional e (ii.2) objetivo-cognitiva[8]. Aqui, importa o sentido (ii) e seus desdobramentos.
A garantia da imparcialidade impõe que a repartição funcional seja definida a partir (i) da rigorosa demarcação das funções das partes e do juiz (=imparcialidade objetivo-funcional) e (ii) da definição das funções que, posto judicantes, não devem ser exercidas pelo mesmo julgador no processo (=imparcialidade objetivo-cognitiva)[9].
Como se vê, em (i) se quer impedir o juiz de exercer função de parte e, em (ii), obstar, tanto quanto possível, que ele conduza o processo e julgue o pedido sob influência de vieses cognitivos.
São esforços indeclináveis para poder falar em divisão equilibrada de trabalho entre partes e juiz. Trata-se de uma exigência mínima.
Conquanto não amesquinhem a imparcialidade, os cooperativistas não se debruçam sobre essa garantia com detença. Tirante hipóteses pontuais e casuísticas, as preocupações acima referidas não encontram ressonância em seus trabalhos, o que põe em questão a suficiência da enunciação abstrata de que o modelo tem como pilar uma divisão equilibrada de tarefas entre partes e juiz. Ora, como falar em divisão equilibrada de tarefas sem buscar definir, com o rigor possível, as tarefas que cabem a cada sujeito processual? Idem, quando não se debruça sobre os casos em que, segundo robusto lastro científico, mesmo o exercício de funções judicantes podem comprometer o equilíbrio psíquico do juiz[10]?
Exponho desde já a minha impressão: a demarcação das funções dos sujeitos processuais não tem tanta importância para o modelo cooperativista; ele transige parcimoniosamente com a imparcialidade, sobretudo a objetivo-funcional. Explico.
Como visto acima, o modelo cooperativo confessadamente absorve todos os poderes que foram conferidos ao juiz no modelo hierárquico, reconhecidamente autoritário, mas crê que os “compensa” com a imposição do dever do juiz dialogar com as partes. Vale dizer, submeter as atividades do juiz ao contraditório e exigir fundamentação substancial bastaria para se ter uma divisão de tarefas equilibrada. Em termos mais herméticos: a verticalidade do modelo hierárquico seria horizontalizada tão só pelo cumprimento do dever de diálogo.
Assim, para o modelo cooperativo, mais importante que demarcar detalhadamente quais são as funções processuais das partes e do juiz é definir como essas funções devem ser exercidas. O fato de uma função ser, em tese, atribuída às partes não impede seu exercício, em concreto, também pelo juiz, desde que a seu respeito ele oportunize a manifestação das partes e a considere em sua decisão. Se a comunidade de trabalho dialogar, o quem (fez) e o que (fez) tornam-se dados secundários. No fundo – e não sem contradição –, a divisão de tarefas importa menos que o modo como elas são exercidas. Talvez isso explique a corrente formulação entre os cooperativistas, segundo a qual “o juiz é simétrico no debate e assimétrico na decisão”[11].
O equívoco da tese da simetria do juiz no debate foi definitivamente desvelado por Lúcio Delfino e Fernando Rossi. Em texto primoroso[12], os autores mineiros demonstraram que isso seria admitir o exercício pelo juiz de situações jurídicas ativas processuais derivadas do contraditório, o que é vedado pela Constituição.
Partindo do texto do art. 5º, LV, CRFB, segundo o qual “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, nossos autores notaram que o contraditório é uma situação jurídica relacional, modalidade de eficácia jurídica que liga sujeitos em posições jurídicas opostas, mas coordenadas à consecução de um único objeto (relação direito/dever). O contraditório enfeixa situações jurídicas ativas (=direitos), de titularidade das partes, e situações jurídicas passivas (=deveres), de titularidade do juiz. Em suma, por força do texto constitucional o contraditório é direito das partes e dever do juiz.
Então, procede considerar o juiz um sujeito do contraditório, pois sobre ele recaem as situações jurídicas passivas (=deveres) por ele impostas, mas daí não se pode supor que ele pode exercer as situações jurídicas ativas (=direitos) por ele asseguradas. Não é por acaso que a parte pode optar entre exercer ou não o contraditório, direito seu que é, enquanto o juiz é obrigado a cumprir o contraditório, pois é seu dever. Nesses termos, nota-se a absoluta impossibilidade de falar em simetria/equivalência entre as posições jurídicas das partes e do juiz frente ao contraditório.
Assim, se por juiz simétrico se quer significa qualquer coisa mais que o julgador consciencioso dos deveres (=situação jurídica passiva) a si impostos pelo contraditório (=situação jurídica passiva), então, isso só pode significar que ele também exerce os direitos (=situações jurídicas ativas) por ele assegurados. Nesse quadrante, será o juiz o sujeito que cumula funções de parte e julgador. É o juiz-contraditor, que simultaneamente postula e decide, verdadeiro monstro ético-jurídico[13] que fulmina a noção de garantias como limites/vínculos contra o poder, no caso, do contraditório como garantia das partes que limita o exercício dos poderes do Estado-juiz.
A propósito, convém arriscar uma diferenciação entre limites e controles. Limites são contornos de atuação, ou seja, o que(m) das funções (=por quem uma função pode ser exercida?). Controles são accountability/prestações de conta, ou seja, o como das funções (=de que forma uma função pode ser exercida?). Limites antecedem e são pressupostos dos controles. Examinar se determinada função foi exercida corretamente só tem sentido quando se pressupõe que ela poderia ter sido exercida, caso contrário, o exercício, por si só, já é erro. Assim, como deixa clara a compreensão do contraditório como situação jurídica relacional, a divisão de trabalho entre os sujeitos processuais é uma questão do que(m) e não do como das funções processuais, ou seja, de limites e não de controle. O contraditório é a tábua de definição das funções das partes e do juiz, posições que, por força dos limites semânticos do texto constitucional, não são intercambiáveis[14]. Vale dizer, não se admite que o juiz exerça função de parte – e vice-versa –, conclusão que aniquila por completo a tese da simetria do juiz no debate. Daí ser cirúrgica a posição de Lúcio Delfino, em texto mais recente[15], no sentido de que tal redimensionamento do contraditório promovido pelo art. 6º, CPC, por outorgar ao juiz o exercício de suas posições jurídicas ativas, fragiliza-o enquanto garantia do cidadão e limite do Poder estatal, algo que não poderia ser feito sequer por Emenda Constitucional, muito menos por lei ordinária.
De resto, se o contraditório é garantia de participação para influir no desenvolvimento e resultado do processo, não faz o menor sentido dizer que o juiz pode exercê-lo em simetria com as partes. O juiz não pode, ao mesmo tempo, influir no resultado e pronunciar o resultado. Eis a divisão equilibrada de tarefas possível: a alguém compete influir no desenvolvimento e resultado (=as partes) e outrem compete pronunciar o resultado (=o juiz). Fora daí não há equilíbrio possível.
Importante dizer que retirar o juiz das posições ativas do contraditório não fragiliza as versões fortes do contraditório e da fundamentação. É fora de dúvida de que o juiz deve oportunizar a manifestação das partes antes de decidir qualquer questão, inclusive as cognoscíveis de ofício até então por elas não suscitadas, e que deve responder pontual e expressamente todos os argumentos e provas apresentados pelas partes, mas isso não é diálogo, ao menos não no sentido de que ele dialogue ativamente, tal qual as partes, mas o cumprimento dos deveres que lhe são impostos pelo contraditório. Impulsionar o processo para dar informação e oportunizar a reação das partes para que possam influir no desenvolvimento e resultado do processo é cumprir os deveres (=situação jurídica passiva) impostos o contraditório, ao passo em que decidir mediante consideração objetiva, concreta e expressa de todos os argumentos e provas das partes, atribuindo sentido aos fatos e ao direito de modo íntegro e coerente é cumprir o dever de fundamentação das decisões (art. 93, IX, CRFB e arts. 489, § 1º, I a VI, e 926, CPC). Definitivamente, não é necessário falar em juiz simétrico e diálogo entre juiz e partes para se ter tudo isso.
Aliás, diálogo entre partes e juiz não é a melhor alegoria para ilustrar o fenômeno processual. Melhor referir à estrutura dialética do processo. Como se sabe, o método dialético consiste no tensionamento de uma tese e uma antítese para geração de uma síntese. Assim ocorre no processo: o autor apresenta um conjunto de alegações fático-jurídicas em determinado sentido (=tese), o réu, resistindo, apresenta um conjunto de alegações fático-jurídicas em sentido contrário (=antítese), e o juiz, por fim, considerando essas versões antagônicas e os elementos de prova em que se amparam, decidirá fixando a regra de regência do caso concreto (=síntese). Se é isso que se quer indicar quando se fala em diálogo, muito bem. Mais do que isso, porém, é excesso hostil à Constituição, posto possa soar simpático ao espírito...
Na linha desses esclarecimentos, a tese da simetria é (i) dispensável, se quer significar o cumprimento de deveres impostos pelo contraditório, e é (ii) deturpadora do texto constitucional, se quer significar a possibilidade de o juiz exercer as situações jurídicas ativas decorrentes do contraditório (dá azo à figura do juiz-contraditor, síntese autoritária de um poder exercido sem limites[16]).
Alguém poderá dizer: “mas os cooperativistas não advogam a figura do juiz-contraditor”. Colocada a questão em termos genéricos, de fato não. Mas uma mirada mais detida, atenta aos planos do dito e do não-dito, há exemplos não-ditos de juiz-contraditor na doutrina cooperativista.
Com efeito, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero reconhecem que o juiz não pode conceder tutela provisória de ofício, sendo indispensável o requerimento da parte (art. 295, CPC). Portanto, reconhecem que tal iniciativa é função das partes, não do juiz. Nada obstante, defendem que “uma maneira de conceder ao juiz a possibilidade de ter um papel mais participativo no emprego da técnica antecipatória” é “colaborando com a parte (art. 6.º) (...) consultá-la a respeito de seu interesse na concessão da tutela sumária”. Essa solução equilibraria “a iniciativa judicial, inspirada na promoção da igualdade entre os litigantes e a na adequação da tutela jurisdicional, e o respeito à liberdade da parte”, até mesmo pela responsabilidade objetiva que daí pode advir (art. 302)[17].
Se bem que respeitável, a proposta encerra dois problemas fundamentais.
Em primeiro lugar, deturpa a noção do dever de consulta. Consultar é oportunizar a manifestação das partes a respeito de questão que o juiz é obrigado a decidir, inclusive aquelas cognoscíveis de ofício (art. 10, CPC), evitando decisões surpresa. Consultar não é provocar a parte para que ela requeira o exame de questão que o juiz não pode conhecer de ofício. Consultar é dar informação, não é pedir autorização para decidir. In casu, como os próprios autores reconhecem que a iniciativa da parte é imprescindível, o que se tem é um indisfarçável pedido de autorização para decidir, que nada tem a ver com dever de consulta.
Em segundo lugar, viola a garantia da imparcialidade. Ora, quando o juiz provoca a parte a requerer a obtenção de tutela provisória é porque já está introspectivamente convencido de que ela deve ser concedida; só precisa do requerimento (aval) da parte para externar formalmente sua decisão. O juiz já tem convicção formada antes da decisão e se coloca ao lado da parte para que ela lhe autorize a decidir formalmente. Ou alguém supõe que o juiz fará tal “consulta” se não estiver previamente convencido de que é o caso de conceder a tutela provisória? É crível que, feita a “consulta” e sobrevindo resposta positiva o juiz a indefira? Claro que não! De modo que a violação da imparcialidade subjetiva é ululante. Ademais, agindo assim o juiz suplementa a atividade postulatória da parte, ou seja, funciona como o advogado que dá aconselhamento estratégico. Não age como juiz, portanto. Cristalina, também, a violação da imparcialidade objetivo-funcional.
Tem-se aí, portanto, claro exemplo de juiz-contraditor, o “julgador-postulante” que se arvora em situação jurídica ativa do contraditório, como se parte fosse, pedindo autorização para decidir questão cujo exame depende de provocação da parte. Diga-se claramente: trata-se de forma velada de concessão da tutela provisória de ofício.
Trata-se de exemplo privilegiado de que a tese da simetria do juiz no debate conduz à figura do juiz-contraditor e se dissolve em indisfarçável protagonismo judicial que, a pretexto de exercer papel mais ativo para igualar as partes, deturpa o conteúdo constitucional do contraditório e promove ostensivas distorções funcionais. Longe de equilibrar, desequilibra[18].
Pois bem. Até aqui, cotejei a questão à luz da imparcialidade subjetiva e objetivo-funcional. Passo a submetê-la aos ditames da imparcialidade objetivo-cognitiva, reconhecendo que, no particular, encontra-se na doutrina cooperativista genuína preocupação com a equilibrada divisão de tarefas entre juiz e partes.
Para Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, o juiz que teve contato com a prova ilícita não pode julgar a causa, dado o risco natural e incontrolável, porque proveniente do inconsciente, de contaminação cognitiva, ou seja, da elevada chance de redecidir a causa ainda sob influência da prova ilícita, que, a rigor, deve ser ignorada[19]. Vale dizer, se o juiz não pode decidir com base em prova obtida por meios ilícitos (exclua-se, por irrelevante, os casos de exclusão da ilicitude) e jamais saberemos em que medida ele decidiu influenciado por ela, a única solução possível é, de fato, a substituição do julgador.
Nossos autores têm razão. Estudos de psicologia cognitiva comportamental recomendam fortemente essa solução[20], o que a põe em imensa superioridade epistemológica em relação a entendimento contrário, que se fia apenas em crença.
Constitui ingenuidade supor que o exame da fundamentação sempre permitirá a identificação do enviesamento produzido pela prova ilícita. Não porque o juiz dissimulará deliberadamente a influência dela em seu convencimento, mas porque isso pode se dar – e é natural que se dê – inconscientemente. Afinal, a quebra de imparcialidade subjetiva pode ser (i) consciente declarada, (ii) consciente não declarada ou (iii) inconsciente, sendo certo que em (iii) – indubitavelmente, a hipótese mais corrente –, é perfeitamente possível que o julgador nem se dê conta da contaminação cognitiva dela em sua tomada de posição, caso em que a fundamentação não deixará qualquer vestígio da ancoragem na prova ilícita.
Trata-se de um ponto cego do direito[21], porque impossível o efetivo controle jurídico do indevassável universo intrapsíquico do juiz, lembra Eduardo José da Fonseca Costa[22]. Nesses casos, vale a blague de Aury Lopes Jr: deve-se desentranhar a prova e o juiz![23]
O dimensionamento das questões relativas aos vieses cognitivos encontra auxílio na filosofia (v.g. pragmática linguística), na psicanálise (v.g. a questão dos quadros mentais paranoicos), na psicologia cognitivo-comportamental (v.g. estudos de microeconomia – heurísticas e vieses), dentre outros. Conquanto laboriosa a sua compreensão, o jurista deve assumir a missão de familiarizar-se a elas, mormente aquele ocupado com a construção de um modelo de repartição funcional efetivamente equilibrado, afinal já não é mais possível levar a imparcialidade a sério sem essa transdisciplinaridade[24]. Furtar-se a isso é insistir no obscurantismo de formulações dogmáticas estéreis e míticas que enfraquecem tal garantia constitucional, ferindo o núcleo duro do devido processo legal. Não que aqueles aportes transdisciplinares sejam definitivos e devam ser acatados sem reflexão. Todo conhecimento humano é falível e testificável. O que não se pode é ignorar esses estudos sob a crença (arrogante, reducionista e risível) de que à preservação da imparcialidade basta a vinculação do juiz ao diálogo. Tal postura revela desdém com a garantia da imparcialidade e, consequentemente, indiferença com o efetivo equilíbrio funcional entre juiz e partes, transigindo com a figura do juiz-contraditor.
É alvissareira a adesão dos cooperativistas (pelo menos de parte deles) a essas preocupações com a imparcialidade objetivo-cognitiva e seu impacto na divisão equilibrada de tarefas (nesse caso, o contato com a prova inválida desequilibraria a estrita função de julgar). Bem verdade que lidam com o tema de modo casuístico e assistemático, mas como essas preocupações são relativamente novas no processo brasileiro o simples fato de sinalizarem tais recatos já é algo louvável.
Diante de todo o exposto, a conclusão parcial é a seguinte: deixando de verticalizar inúmeras questões relativas ao conteúdo da garantia da imparcialidade, o modelo cooperativo não fornece instrumental capaz de assegurar uma divisão de tarefas efetivamente equilibrada. Bem ao contrário, ao permitir, em afronta ao art. 5º, LV, CRFB, que o magistrado exerça situações jurídicas ativas (=direitos) asseguradas pelo contraditório dá-lhe protagonismo e desequilibra o exercício das funções processuais – o que também põe em questão a afirmação de que, nesse modelo teórico, o centro metodológico da teoria do processo é ocupado pelo Processo, e não pela Jurisdição...
3.2. Redimensionamento do Contraditório?
Agora quero verificar se as versões fortes do contraditório e da fundamentação das decisões (um não existe sem o outro) realmente constituem peculiaridades que diferenciam a cooperação processual dos demais modelos processuais.
Já ninguém ignora – e aqui mesmo foi dito – que o processo deve ser pensado em conformidade com a Constituição. O modelo de processo que importa é aquele que pode ser atribuído à Constituição, não ao CPC ou qualquer outro ato normativo infraconstitucional. Portanto, mesmo que uma codificação processual tenha extrema importância na vida de todos nós – e tem! –, não se pode embarcar na inebriante euforia de crer que estamos diante de um novo direito processual (civil, pelo menos). Não, definitivamente não. Estamos diante de um novo Código, não de um novo processo. O modelo constitucional o antecipa e condiciona.
Daí ser necessário cuidado com afirmações como “o novo CPC adotou o princípio da colaboração do juiz para com as partes como sendo o mais apropriado para disciplina da direção do processo civil do Estado Democrático de Direito”[25] ou “há diversos modelos de direito processual. Todos eles podem ser considerados em conformidade com o princípio do devido processo legal. Tudo vai depender do que se entende por devido processo legal (...) os princípios do devido processo legal, da boa-fé processual e do contraditório, juntos, servem de base para o surgimento de outro princípio do processo: o princípio da cooperação (...) [que] define o modo como o processo deve estruturar-se no direito brasileiro”[26]. Afinal, e embora essa possa não ser a intenção de seus próceres, tais formulações podem naturalizar um modo de compreender o processo a partir da lei, e não da Constituição.
Por sinal, a segunda assertiva mostra-se ainda mais problemática, pois ao admitir que modelos antagônicos são igualmente conformáveis à cláusula do art. 5º, LIV, CRFB, acaba aniquilando a autonomia e antecedência condicionadora da Constituição, como se seu texto fosse vazio de sentido e o intérprete (inclusive o legislador, que interpreta a Constituição ao legislar) tivesse plena liberdade para atribuir-lhe o sentido de sua preferência[27]. Fosse isso verdade, o que impediria o legislador, v.g., de prescrever que somente quem requer a prova pericial pode participar da sua produção, assegurada ao adversário apenas a manifestação sobre o seu produto? Ora, se a Constituição nada diz sobre esse pormenor e seu texto é oco de sentido, seria muito difícil argumentar que tal dispositivo ofenderia o contraditório...[28] Claro que não é assim. A Constituição não tem sentido pronto e acabado, mas não está à disposição da livre inventividade do intérprete. Ela é produto da história, de conquistas cívicas e deve ser compreendida no contexto da tradição circundante, como demonstra Francisco José Borges Motta em sua leitura moral da cláusula do devido processo legal[29]. Observe-se que sem essa dimensão é quase (senão completamente...) impossível falar em controle material de constitucionalidade.
Sugerir que o modelo de processo pode ser definido pela lei infraconstitucional fragiliza a normatividade constitucional, promovendo, queiramos ou não, um sutil rebaixamento do devido processo legal: de referencial fundante do sistema processual ele se torna mais um elemento interno de outro referencial fundante do sistema processual – a cooperação. O devido processo legal passa a ser aquilo que a cooperação diz que ele é, invertendo-se a estrutura normativa hierárquica para a Constituição ser interpretada a partir da lei...
Daí a necessidade de insistir incansavelmente que a acepção forte do contraditório e da fundamentação deriva diretamente da Constituição, não se tratando de inovação (quando muito, mera explicitação) normativa do CPC/15. Por sinal, algo que a doutrina brasileira aponta de há muito, como se vê, v.g., na produção acadêmica de notáveis membros da escola mineira de processo.
José Alfredo Baracho de Oliveira dava esses contornos ao processo constitucional já na primeira metade da década de 80. Após a entrada em vigor da CRFB, escreveu que “a tutela do processo efetiva-se pelo reconhecimento do princípio da supremacia da Constituição sobre as normas processuais”, oferecendo as seguintes garantias: (i) a Constituição pressupõe a existência de um processo, como garantia da pessoa humana; (ii) a lei, no desenvolvimento normativo hierárquico desses preceitos, deve instituir esse processo; (iii) a lei não pode conceber formas ilusórias à concepção de processo consagrada na Constituição[30].
Daí se seguiram Aroldo Plínio Gonçalves (disseminação da doutrina fazzalariana, situando, definitivamente, a instituição do processo no centro da teoria processual, sobrelevando o papel das partes em seu desenvolvimento e resultado)[31], Rosemiro Pereira Leal (teoria neo-institucionalista, que absorve o modelo constitucional de processo (Italo Andolina e Giuseppe Vignera), mas tonifica o contraditório como princípio que deve ser inserido na estruturação de todos os procedimentos preparatórios dos provimentos estatais, ainda que assim não disponham seus modelos legais, enleando-o à própria legitimidade das decisões judiciais no Estado Democrático e atuando, ao lado dos princípios da ampla defesa e da isonomia, como controle da atividade do julgador (isocrítica e fiscalidade))[32], Dierle Nunes (contraditório como garantia de influência e não surpresa)[33], Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (contraditório como quadrinômio estrutural – informação, reação, diálogo e influência)[34], André Cordeiro Leal (entretecimento indelével entre contraditório e fundamentação das decisões)[35], entre outros.
Falei da escola mineira e ninguém despreza o confronto teórico que envolve ela e a escola paulista de processo, marcado pela acusação daqueles de que estes blindaram o processo dos ares legitimadores do constitucionalismo democrático, aferrando-o a uma concepção autoritária. Posto eu concorde com os mineiros, é preciso reconhecer que, a seu modo, os arautos da escola paulista não ignoram a dimensão forte do contraditório e da fundamentação. Não concordo integralmente com sua interpretação dessas garantias, mas deve ser dito que Cândido Rangel Dinamarco, o maior artífice dessa corrente e um dos maiores processualistas da história do país – seguramente o mais influente –, já escreveu sobre o contraditório[36] e sobre a fundamentação[37] de modo semelhante aos mineiros e mais ainda ao que ora fazem os cooperativistas, inclusive quando trata da proibição de decisão surpresa, ainda que não empregue o vocabulário da moda (=dever de consulta)[38]-[39].
Sem poder ser taxado de instrumentalista nem de cooperativista, há décadas Nelson Nery Jr. também sublinha o conteúdo forte do contraditório e da fundamentação[40].
Esses ligeiros exemplos da doutrina brasileira bastam para demonstrar que a dimensão forte do contraditório e da fundamentação não é uma peculiaridade do aporte teórico cooperativista. Isso não o distingue dos demais. Definitivamente, não é aqui que ele oferece algum acréscimo epistemológico à ciência processual – se bem que apresente ganho (ou manutenção de poder) político...
Insisto: a dimensão forte do contraditório decorre do modelo de Estado Democrático de Direito, que consagra o povo como titular do poder e assegura a sua participação na formação dos provimentos que os afetarão, inclusive diretamente (art. 1º, parágrafo único, CRFB). É a participação democrática constitucionalmente assegurada que dá conteúdo substancial ao contraditório e à fundamentação das decisões. Os dispositivos do novo CPC que os minudenciam não introduziram novidade normativa na ordem jurídica brasileira, mas apenas novidade textual que se mostrou necessária para (tentar) fazer vingar a normatividade constitucional que, via de regra, lamentavelmente não penetrava na praxis jurídica nacional. Em suma, participação efetiva, influência, proibição de decisão surpresa, entretecimento do contraditório e da fundamentação etc., não são novidades trazidas pelo novo CPC, mas explicitações do conteúdo garantístico da Lei Maior.
Colocando as coisas em seus devidos lugares: no ponto, o CPC/15 é relevante pelo que explicita, não pelo que inova na ordem jurídica pátria. Não há qualquer menoscabo de minha parte: não é de somenos importância explicitar o que, posto existente, padecia de profunda inefetividade. O Código deve ser louvado por isso. Mas sem exageros: explicitar o que já existe é isso, explicitar, não é inovar. Quem explicita insiste, não cria.
Aliás, é exatamente por isso soou absurdo o pedido de veto do art. 489, § 1º, CPC/15, formulado pela AMB, ANAMATRA e AJUFE. Fundado em razões absolutamente utilitaristas e sem qualquer respaldo no modelo constitucional de processo[41], o pedido de veto partia da equivocada premissa de que tais dispositivos criavam exigências até então inexistentes na ordem jurídica brasileira, como se tais disposições não fossem apenas explicitações da normatividade constitucional e o estado de coisas da fundamentação das decisões no Brasil pré-CPC/15 fosse adequado à CRFB[42]. Não perceberam que, antes de atacar o CPC/15, o pedido de veto era um repto contra a Constituição; que mesmo acolhido o pedido de veto subsistiria o dever de cumprir as exigências explicitadas nos referidos dispositivos, porque antes derivam da Lei Maior. Enfim, desprezaram que taxavam de infraconstitucional discussão de estatura constitucional. A investida foi malograda, embora, lamentavelmente, o STJ siga violando a normatividade já constitucional e, agora, legal[43] – o que só confirma a necessidade (até mesmo simbólica) de insistir que a dimensão substancial do contraditório e da fundamentação deriva desde a Constituição de 1988.
Daí o desacerto e a inconveniência de dizer que “o CPC adotou determinado modelo de processo” e que “este modelo de processo redimensionou o contraditório e a fundamentação das decisões”. Isso pode prestar o grave desserviço de seguir fragilizando a Constituição e ser um tiro no pé do próprio CPC/15 no que ele tem de melhor, que é o seu caráter contrafático[44] – tome-se como o exemplo frisante desse risco o referido pedido de veto.
Insisto mais uma vez: não estou dizendo que dispositivos como os arts. 7º, 9º, 10, 11, 489, § 1º, I a VI, 493, parágrafo único, 927, § 1º, 933 etc. são irrelevantes. Pelo contrário, são salutares num ambiente de baixa constitucionalidade (Lenio Streck) como esse em que vivemos. Mas eis o que elas são: regras que explicitam o conteúdo das garantias do contraditório e da fundamentação desde-já-sempre impostos e exigíveis por incidência direta da Constituição, do modelo garantístico de processo nela consagrado, que antecede e independe daqueles dispositivos infraconstitucionais.
3.3. Deveres de consulta, diálogo, lealdade, esclarecimento, prevenção e auxílio: o contraditório substancial depende deles?
Por tudo isso, estou, a preço de hoje, convencido de que os deveres decorrentes do “princípio da cooperação” só repetem manifestações de outras garantias processuais ou institutos infraconstitucionais específicos, tornando descartável tal formulação genérica. Pior: um deles flerta com a inconstitucionalidade. Mas trato disso com calma.
3.3.1. O dever de consulta
O dever de consulta apenas manifesta o conteúdo do contraditório como proibição de decisão surpresa. Ao cidadão destinatário de provimentos estatais é garantia a participação direta no respectivo processo prévio de formação (art. 1º, parágrafo único, CRFB), o que, no processo, se traduz como garantia de influência, isto é, que o provimento jurisdicional será a síntese do debate entre as partes, repercutindo todos os seus argumentos e provas. Consequentemente, o juiz não pode decidir qualquer questão a respeito da qual não tenha sido franqueada a prévia manifestação das partes. A participação não é influente se não antecede a tomada de decisão. Assim, o contraditório outorga às partes a situação jurídica ativa (=direito) de apresentar argumentos e provas para influir no convencimento do julgador e impõe a este a situação jurídica passiva (=dever) de considerar essa participação e de oportunizar-lhes a manifestação sobre questões que identificou de ofício. De modo que o dever de consulta nada mais é que uma situação jurídica passiva imposta ao juiz pelo contraditório. A inconstitucionalidade da decisão surpresa se combate com o contraditório, pura e simplesmente, não sendo necessário falar em dever de consulta, que, portanto, não ostenta conteúdo, regime e efeitos próprios, bastando falar na garantia do contraditório. Por essa razão, o significante é descartável.
3.3.2. O dever de diálogo
O dever de diálogo não é mais que síntese da “nova visão” do contraditório, ou seja, da necessidade de a decisão ser resultado do debate processual, respondendo o juiz a todos os argumentos e provas apresentados pelas partes, bem como que oportunize a manifestação delas antes de decidir questão que conheceu de ofício. Com exceção da tese de que o juiz é sujeito ativo do diálogo processual (=paritário no debate), há consenso quanto à necessidade de a decisão repercutir a participação das partes e não surpreendê-las com questão antes não submetida ao debate entre as partes. Trata-se do conteúdo constitucional da garantia do contraditório. Nada mais, nada menos. Então, quando se fala em dever de diálogo não se está falando de um instituto autônomo, com conteúdo, regime e efeitos próprios, mas empregando um neologismo para se referir à garantia do contraditório[45]. Logo, o significante é descartável.
3.3.3. O dever de lealdade
O dever de lealdade impõe que as partes não litiguem de má-fé e observem o princípio da boa-fé objetiva[46]. Se leal é quem não litiga de má-fé (art. 80, CPC), então o dever de lealdade não é instituto jurídico autônomo, dotado de conteúdo, regime e efeitos próprios. É descartável, pois. Se leal é quem respeita o princípio da boa-fé objetiva (art. 5º, CPC), então o dever de lealdade não é instituto jurídico autônomo, dotado de conteúdo, regime e efeitos próprios. É descartável, pois. Veja-se: é possível falar em litigância de má-fé e boa-fé objetiva sem recorrer ao dever de lealdade, mas não é possível de falar deste sem ligação com aqueles. O dever de lealdade só teria autonomia epistemológica se fosse capaz de gerar, ele mesmo, deveres atípicos, ou seja, que determinada conduta (qual?) poderia ser punida (como?) por atentatória ao dever de lealdade (o que ele é?), independentemente de disposição legal expressa, isto é, como fundamento para que ilícitos atípicos gerassem sanções atípicas. Mas não é preciso muito esforço para rechaçar tal formulação. Do império da legalidade e da segurança jurídica resulta que o Estado só pode aplicar punições/sanções expressamente previstas em lei. Como corolário da imprescindível necessidade de contenção do Poder, conquista e missão fundamental do constitucionalismo que supera a relação Soberano-súdito pelo vínculo Cidadão-Estado, apenas a lei pode dizer quando e como o Estado(-juiz) pode punir. É terreno da legalidade estrita. Exige-se tipicidade em relação tanto à hipótese de incidência (=quando) quanto ao modo de ser da sanção (=multa, proibição de fazer carga dos autos etc.). Assim: (i) há ilícito típico e aplica-se a sanção típica a ele correlata, presentes os elementos do respectivo suporte fático; (ii) há ilícito típico ao qual não corresponde nenhuma sanção típica e nenhuma punição pode ser aplicada; ou (iii) não há ilícito típico e nenhuma sanção pode ser aplicada. Os “modos específicos de deslealdade” são punidos a título de ato atentatório à dignidade da justiça (v.g. art. 77, §§ 1º e 2º, CPC) ou de litigância de má-fé (arts. 80 e 81, CPC), segundo seus róis numerus clausus não interpretáveis extensivamente e nos termos das sanções ali previstas. Para bem ou para mal, não há deslealdade atípica nem sanção atípica. É intolerável que, a pretexto de “concretizar” o conteúdo não escrito do contraditório se erguesse o princípio da cooperação (de conteúdo igualmente não escrito) como fonte de ilícitos e sanções atípicas. Seria a moralização do processo a partir da pauta moral do julgador de ocasião, em manifestação do mais puro despotismo judiciocrático, radicalmente incompatível com o constitucionalismo. Se o dever de lealdade não pode ser fonte de ilícitos atípicos e sanções atípicas e toda a referência a ele é referência a outros institutos, mostra-se evidente que é significante descartável.
3.3.4. O dever de esclarecimento
O dever de esclarecimento costuma ser indicado em dois sentidos: (i) obrigação de o juiz pedir esclarecimentos às partes sobre suas postulações obscuras e (ii) obrigação de o juiz ser claro em seus provimentos lato sensu. Nos dois casos há institutos autônomos, cada qual com disciplina própria, sendo o dever de esclarecimento mero sinônimo deles. Em (i), há uma síntese das regras de sanação, aproveitamento e pós-eficacização dos atos processuais[47]. Quando o juiz pede esclarecimentos às partes sobre suas postulações ele está atuando para corrigir defeitos situados no plano da admissibilidade. Por exemplo: a causa de pedir incompreensível gera inadmissibilidade da petição inicial (art. 330, § 1º, III, CPC) e do recurso (art. 1.010, II, CPC, pressuposto da regularidade formal), mas elas só podem ser inadmitidas se, devidamente intimada, a parte não aclará-las no prazo assinado (CPC, arts. 320, parágrafo único e 932, parágrafo único, respectivamente). Portanto, a postulação incompreensível é viciada e, sem o devido aclaramento, deve ser inadmitida. Franquear a clarificação é uma alternativa a essa drástica solução. O juiz não precisa de esclarecimentos quando entende a postulação. Se o juiz entende a postulação da parte e mesmo assim pede esclarecimentos, o que faz em verdade é dar-lhe a oportunidade de robustecer (verticalizando, ampliando ou reduzindo) a argumentação e/ou pedido, ocasião em que estaria agindo como advogado da parte, em afronta à garantia da imparcialidade (objetivo-funcional/impartialidade). Portanto, dever de esclarecimento no sentido (i) nada mais é que referência às regras expressas e pontuais que tratam da sanação, aproveitamento e pós-eficacização dos atos processuais. Mais que isso configura inconstitucionalidade. Em (ii), por outro lado, refere-se à clareza da decisão, que é pressuposto de validade dela. Decisão obscura não é devidamente fundamentada, portanto nula (art. 93, IX, CRFB). Empregado neste sentido, o dever de esclarecimento nada mais é que o dever de fundamentar validamente as decisões. Portanto, tanto em (i) quanto em (ii) o dever de esclarecimento não é um instituto autônomo, mas outro significante alusivo a institutos com existência, regime e efeitos próprios[48], razão por que é completamente descartável.
3.3.5. O dever de prevenção
Quanto ao dever de prevenção e ao dever de auxílio, confesso que sempre me soaram pouco claros, até oblíquos. Sua formulação corrente permite que eles signifiquem qualquer coisa e os exemplos fornecidos pelos cooperativistas não ajudam em sua precisa definição. Eis o lugar, por excelência, onde o dito e o não-dito concorrem em simétrica paridade de armas... e precisamente aí mora o perigo. Tentarei decompô-los analiticamente.
Assim como o dever de esclarecimento (cf. item 3.3.4), o dever de prevenção é significante que também alude à incidência das regras de sanação, aproveitamento e pós-eficacização de atos processuais inadmissíveis. Ambos atuam no plano da admissibilidade das postulações, mas diferem em sua extensão: o dever de prevenção remete às regras de sanação, aproveitamento e pós-eficacização de postulações com defeitos em geral; o dever de esclarecimento remete às regras de sanação, aproveitamento e pós-eficacização de postulações com defeito de fundamentação. Mutatis mutandis, o dever de prevenção está para o dever de esclarecimento assim como a inadmissibilidade recursal está para a irregularidade formal: o inclui, mas o extravaza.
Sobre o dever de prevenção, Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero fornecem o seguinte exemplo: “é vedado ao juiz não conhecer de determinada postulação da parte por feito processual sanável sem que se tenha primeiramente dado oportunidade para a parte saná-lo (arts. 317 e 932, parágrafo único, CPC)”. Nossos autores assim exemplificam o dever de esclarecimento: “é vedado ao juiz indeferir de imediato eventuais postulações das partes pela simples ausência de compreensão da narrativa, sendo imperiosa a oportunização de manifestação das partes para esclarecimento da questão, oportunidade em que tem de indicar claramente o ponto que entenda deva ser aclarado (art. 321, CPC)”[49]. Claro está, portanto, que o dever de prevenção também não é um instituto jurídico autônomo, mas um significante empregado para se referir a outros institutos com identificação, regime e efeitos próprios, do que avulta ser descartável.
3.3.6. O dever de auxílio
Considero o dever de auxílio o mais problemático de todos.
Primeiro, porque auxiliar significa ajudar, socorrer. É correto dizer que o juiz tem a função de ajudar ou socorrer a parte na realização de alguma atividade? Fala-se em auxiliar ainda no sentido de função secundária. Então, seria o juiz detentor de uma função secundária em alguma atividade de parte? Desnecessário dizer que nada disso cabe dentro dos limites semânticos do art. 5º, LV, CRFB. Portanto, a ideia de um dever de auxílio é problemática em si.
Segundo, porque a doutrina oferece formulação incrivelmente vaga: “’o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na superação das eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ónus ou deveres processuais’. Cabe ao órgão julgador providenciar, sempre que possível, a remoção do obstáculo (SOUSA, 1997, p. 65; BARREIROS, 2013, 199-201)”[50]. Ora, o que é “remoção” e a que “obstáculos” se refere? Como definir esse dever-poder do juiz com algum grau de previsibilidade e saber, v.g., se condiz ou não com a garantia da imparcialidade objetivo-funcional (se o juiz está exercendo função de parte)?
Terceiro – e que deriva dos motivos anteriores, máxime do segundo –, porque tal dever não é unanimidade sequer entre os próprios cooperativistas.
A ver.
Luiz Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero assim exemplificam o dever de auxílio: “pense-se, por exemplo, no exequente que não encontra bens penhoráveis do executado para satisfação do seu crédito. É tarefa do juiz auxiliá-lo na identificação do patrimônio do executado a fim de que a tutela executiva possa ser realizada de forma efetiva (art. 772, III, CPC)”[51].
Ora, isso não diz respeito ao próprio cumprimento do secular dever de impulso oficial? É necessário falar em dever de auxílio para referir-se ao mais comezinho dever funcional do juiz em nosso sistema processual (art. 2º, CPC)?
Com efeito, a execução busca “desfecho único”, qual seja, a satisfação do direito do exequente (dentro das regras legais, por certo). É a sua razão de ser. Para tanto, o exequente indicará bens do executado a fim de obter a satisfação de seu crédito, mas o fará se e quando souber da sua existência e localização. Do contrário, caberá ao Juiz, direta (v.g. técnicas de penhora on line) ou indiretamente (v.g. por seus auxiliares, como via mandado por oficial de justiça), diligenciar no sentido de encontrar bens penhoráveis. De lado os atos que o exequente pode ou deve realizar por suas próprias forças (v.g. a obtenção de certidões perante os registros públicos não carece de intervenção judicial e deve ser realizado pela parte), o juiz deve, de ofício, praticar ou ordenar a prática dos atos imprescindíveis ao desenvolvimento e resultado frutífero da execução. Impulso oficial, nada mais. O exemplo em liça não poderia deixar mais claro que o dever de auxílio é só mais um neologismo cooperativista. Com olhos fitos na regra do impulso oficial, a importância do significante dever de auxílio é zero.
Na linha do exemplo supra, seria correto dizer que quando o juiz intima uma parte para se manifestar sobre petição apresentada pela outra ele está cumprindo seu dever de auxílio? Se a resposta for negativa – e é claro que é! –, então também deverá ser – e é claro que é! – para o exemplo acima transcrito, afinal em ambos o juiz apenas cumpre seu dever funcional de dar impulso oficial ao processo.
Como se sabe, o mundo cultural é construído pela linguagem e ela comunica porque é convencional (=acordada pela comunidade). O utente não pode sair por aí nomeando as coisas a seu talante, sob pena de inviabilizar a comunicação. Há uma tradição que nos antecipa e nos condiciona e o seu desprezo produz o deletério efeito de macular a comunicação. Pois bem. No plano semântico, dever e auxílio possuem significados diametralmente opostos: dever se liga ao que é obrigatório e auxílio remete ao que é facultativo. Assim, se a expressão dever de dever é risível, a expressão dever de auxílio (obrigação facultativa) não faz o menor sentido. A primeira é só uma tautologia; a segunda, uma contradição! Assim, cabe indagar: por que chamar de auxílio aquilo que, para o juiz, é dever? O que se ganha com isso, além de dispensável poluição semântica? – já se verá de onde isso veio e a que ponto ele pode nos levar (ou melhor, retornar)...
Não há razão para baralhar significados consolidados. Prestação de tutela jurisdicional e auxílio não são sinônimos. Pelo contrário! Quando o juiz proíbe, obriga e/ou permite algo, presta tutela jurisdicional. Quando o advogado aconselha a parte a adotar essa ou aquela estratégia processual, presta auxílio. Juiz presta tutela jurisdicional (ato de força), advogado presta auxílio (ato de retórica). Falta razão para intercambiar essas noções, tornando fluido (“dever de auxílio”) o que é sólido (“impulso oficial”, “prestação de tutela jurídica”), confuso o que é organizado e obscuro o que é claro.
Contribuindo para o aclaramento do significante em liça, Lorena Miranda Santos Barreiros apresenta formulação algo mais precisa: “os deveres de prevenção e auxílio são manifestações do contraditório, na medida em que tornam efetivo o seu conteúdo fundamental, que não é apenas o de ser a parte informada dos atos do processo, mas o de reação, com possibilidade de real influência no conteúdo decisório final. Essa possibilidade de influência ficaria sobremodo comprometida se a parte, por deficiências em suas alegações e/ou pedidos, ou por não poder, justificadamente, suplantar obstáculos ao exercício de seus direitos ou faculdade ou ao cumprimento de ônus ou deveres processuais, ficasse, assim, alijada da dialética processual”[52].
Há algo mais concreto aí: dever se auxílio é socorrer a parte que apresenta “alegação e/ou pedidos deficientes”. Ainda assim, fica a dúvida: em que, efetivamente, consistiria esse auxílio? O juiz poderia sugerir correções/aprimoramentos para tornar o pleito da parte mais consistente e viável, mesmo quando ele fosse claro, apenas não fosse tão robusto quanto possível? De ordinário, Lorena (e a doutrina brasileira) não dize(m). Ficamos no plano do não-dito (ou do quase-dito).
Mas a doutrina portuguesa, menos acanhada porque bem resolvida, no ponto, vai direto ao ponto, como reporta Fredie Didier Jr: “para cumprir este dever, poderia o órgão julgador, por exemplo, sugerir a alteração do pedido, para torná-lo mais conforme o entendimento jurisprudencial para casos como aquele”[53].
Impossível ser mais claro! O não-dito se fez dito. Escancaradamente. Indubitavelmente. Não falta uma letra aí. Dizendo sem peias: o dever de auxílio é uma autorização para o juiz ajudar a parte a vencer. Não se trata de simplesmente franquear a manifestação sobre questão conhecida de ofício para oportunizar influência e evitar surpresa. É muito mais que isso: o juiz se põe ao lado da parte e lhe dá toda a orientação necessária para vencer. Ele se torna advogado da parte. Deixa de ser juiz, ou de ser apenas juiz. Nada pode explicar com mais clareza o que significa a ideia de um “juiz paritário no debate”. Nada incorpora com tanta fidelidade a figura do juiz-contraditor. Com essa formulação, finalmente o dever de auxílio recebe um conteúdo normativo próprio, adquire status de instituto jurídico autônomo – mas não novo, como logo veremos –, ainda que visceralmente inconstitucional (desnecessário descer novamente aos porquês disso violar a imparcialidade, tanto em sentido subjetivo-psíquico quanto objetivo-funcional/impartialidade, e o contraditório).
Sem falar em inconstitucionalidade, Fredie Didier Jr. faz ressalvas ao dever de auxílio: “não nos parece possível defender a existência desse dever no direito processual brasileiro. A tarefa de auxiliar as partes é do seu representante judicial: advogado ou defensor público. Não só não é possível: também não é recomendável. É simplesmente imprevisível o que pode acontecer se se disser ao órgão julgador que ele tem um dever atípico de auxiliar as partes. É possível, porém, que haja deveres típicos de auxílio, por expressa previsão legal”[54]. A lição merece exame detido.
De um lado, nosso autor afirma que a função de auxiliar as partes é do advogado, não sendo possível nem recomendável outorgar dever de auxílio atípico ao juiz (com isso quer dizer, assim me parece, que não pode ser atribuído ao art. 6º, CPC). De outro lado, obtempera que nada impede a concessão de dever de auxílio típico ao juiz, dês que por previsão legal expressa e casuística. Como está claro, essas ponderações não comungam do mesmo critério.
Como se vê, para Fredie Didier Jr. o dever de auxílio não é um problema em si – se fosse, o juiz jamais teria tal dever –, mas questão de política legislativa – por isso, pode ser outorgada mediante previsão legal expressa e casuística. Tudo se reduz a uma dimensão de grau: (i) não pode haver dever de auxílio atípico, mas (ii) pode haver dever de auxílio típico. Desse modo, nosso autor não é contra o dever de auxílio per se, mas apenas à cláusula geral de auxílio.
Mas se é assim, qual a importância do argumento de que auxiliar a parte é função do advogado? Ou a função de auxiliar a parte é, em princípio, do advogado, mas, episodicamente, mediante regra expressa e casuística, também do juiz? É lícito ao legislador instituir hipóteses típicas de dever de auxílio?
Decididamente, não é lícito ao legislador instituir deveres de auxílio típicos. A Constituição trata do processo, da função jurisdicional e da advocacia e não há um dispositivo sequer cuja carga semântica sugira, mais remotamente que seja, competir ao juiz exercer funções típicas de advogado, ainda que episodicamente. Muito pelo contrário! Se o art. 5º, LV, CRFB, prescreve ser o contraditório garantia exclusiva das partes, apenas quem age por elas (i.é, seus advogados) pode auxiliá-las, nunca o juiz. Daí ser inconstitucional a instituição de deveres de auxílio, seja por cláusula geral ou por regra casuística.
Insista-se nesse ponto: a estipulação das funções processuais dos advogados e dos juízes não é um dado menor, reles questiúncula situada no espaço de livre conformação do legislador ordinário. Trata-se, ao invés, de dado sensível à normatividade constitucional e, como visto, aberra às garantias da imparcialidade (objetivo-funcional) e do contraditório (situação jurídica relacional que encerra situações jurídicas ativas às partes e situações jurídicas passivas ao juiz) o exercício, pelo juiz, de função de advogado. O legislador ordinário não tem liberdade para instituir tais deveres, seja por cláusula geral ou regra casuística.
Importante notar, ainda, que Didier Jr. diz “não ser conveniente” uma cláusula geral de auxílio, mas sim municiar o juiz de deveres de auxílio típicos, mas em momento algum aponta um critério capaz de justificar o que considera conveniente e inconveniente. Ademais, não se pode perder de vista que argumentar com “juízo de conveniência” não é argumentar juridicamente. Para o jurista, importa definir o que é lícito ou ilícito (ou, como preferirá Ferrajoli, à luz das Constituições rígidas que operam como fundamento formal e material de validade de todo o direito, que impõem a cisão das noções de vigência e validade, o código fundamental do argumento jurídico passa a ser constitucional ou inconstitucional). Afinal, como o direito é artificial (fenômeno de imputação, não de causalidade – Kelsen), algo pode ser juridicamente lícito (=formal e materialmente constitucional) e moralmente inconveniente, o que, para o jurista, não tem a menor importância. Assim, se Didier Jr. fala em conveniência em sentido extrajurídico, há dois problemas: (i) argumento de conveniência não é critério para a resolução de questões jurídicas e, ainda que fosse, (ii) não é apresentado qualquer critério do que se considera conveniente e inconveniente – logo o argumento é totalmente artificial. Por fim, se emprega “conveniência” para referir ao que é lícito ou ilícito, não demonstrou a conformidade constitucional do seu raciocínio, algo que, a meu ver, como dito acima, não é possível.
Ora, não é possível servir a dois senhores. Sem fundamentação jurídica definidora dos critérios do raciocínio – ela (a fundamentação) não foi exposta e, a meu ver, inexiste –, de duas, uma: ou (i) a função de auxiliar a parte é apenas do advogado – e o juiz em hipótese alguma pode exercê-la, nem mesmo sob autorização de regra casuística instituidora de dever de auxílio típico; ou (ii) a função de auxiliar a parte é tanto do advogado quanto do juiz – e o juiz pode exercê-la independentemente de previsão legal expressa, genérica ou casuística. Não há outra opção possível dentro da ordem constitucional brasileira.
Mas tudo isso tem um quê de impressão, afinal Didier Jr. não disse, exatamente, o que entende por auxílio nem a extensão que considera saudável seja outorgada ao juiz pelo legislador mediante regras casuísticas. Assim, preciso arriscar algumas hipóteses.
Para organizar o raciocínio, esboço os seguintes sentidos para dever de auxílio: (i) dever de auxílio genuíno = exercício, pelo juiz, de funções típicas de parte ou advogado; (ii) dever se auxílio putativo (ou não-auxílio) = exercício, pelo juiz, de funções tipicamente judicantes, de prestação de tutela jurídica.
A hipótese (i) é inadmissível. O legislador não pode criar dever de auxílio que resulte em exercício, pelo juiz, de função de parte e/ou advogado, como autorizado pela doutrina portuguesa, pois, como bem lembra o próprio Didier Jr., isso seria admitir que ele advogasse para a parte. E a CRFB não admite tal solução, como já demonstrado.
A hipótese (ii) é admissível. Lei expressa pode definir, a título de dever de auxílio, funções efetivamente judicantes. Com um porém evidente: aqui já não é de dever de auxílio que se trata. Exercer funções tipicamente judicantes (v.g. dar impulso oficial para ordenar intimações, penhorar bens etc.) é prestar tutela jurídica, e não auxiliar a parte. Auxílio é ajudar e quem auxilia é o advogado.
Em suma: (i) se previsão legal expressa de dever de auxílio = previsão legal que explicita função tipicamente judicante (v.g. determinação de penhora on line quando o exequente não sabe quais são nem onde estão os bens do executado), não é de auxílio que se trata mas de prestação de tutela jurídica, função tipicamente judicante e lícita; mas, (ii) se previsão legal expressa de dever de auxílio = lei que explicita função típica de parte e/ou de advogado exercitável pelo juiz (v.g. orientação do juiz para que a parte corrija sua postulação clara para, com isso, poder vencer), aí se trata mesmo de dever de auxílio e há inconstitucionalidade.
Portanto, falar em dever de auxílio encerra um paradoxo: ou (i) é mera afetação dogmática (quiçá epistemológica, quando indica simplesmente dever funcional típico, que nada tem de auxílio) ou (ii) é grave inconstitucionalidade (quando, v.g., dever de auxílio indica autorização para o juiz praticar, mediante autorização legal ou não ato de parte e/ou advogado). Em (i), dever de auxílio alude ao cumprimento de dever funcional judicante e o significante se mostra semanticamente inadequado e epistemologicamente descartável (se digo que o juiz realizou penhora on line não posso dizer que ele auxiliou a parte; ele prestou tutela jurídica, cumpriu dever). Em (ii), dever de auxílio alude ao cumprimento de dever funcional judicante-postulante e indica inconstitucionalidade.
De modo que sempre haverá algum problema em falar de dever de auxílio: ora (i) indicará enunciado epistemologicamente falso (se é cumprimento de dever funcional não é auxílio, propriamente dito) e ora (ii) indicará enunciado inválido/inconstitucional (quando é função de parte e/ou advogado exercida pelo juiz, auxílio propriamente dito e inconstitucional). Ora, se o enunciado é falso, deve ser descartado (inexiste ganho teórico em substituir impulso oficial por dever de auxílio); se é inconstitucional, deve ser abolido (não se estimula inconstitucionalidades).
Deixando de falar de dever de auxílio no sentido de cumprimento de dever funcional judicante e inadmitindo o seu emprego no sentido de autorização para o juiz exercer função de parte e/ou de advogado, não sobrará qualquer reminiscência desse significante. Ele desparecerá (e não fará a menor falta...)[55].
Essas considerações aclaram minha concordância ou discordância com a posição de Fredie Didier Jr.: (i) se ele admite que a lei outorgue função de parte e/ou advogado ao juiz, discordamos; mas, (ii) se ele admite que a lei defina dever funcional verdadeiramente judicante, ainda que sob o equivocado epíteto de dever de auxílio, concordamos que o juiz pode ter essa função. Mas como a solução (ii) não cuida, efetivamente, auxílio e sim de prestação de tutela jurídica insisto em abandonar definitivamente esse significante que nada aclara e reclama tantos e enfadonhos esclarecimentos[56]. De minha parte, está descartado.
Aliás, o genuíno (e inconstitucional!) dever de auxílio (=permitir que o juiz exerça função de parte e/ou advogado) ainda encontra poderoso óbice no art. 36, III, LOMAN, segundo o qual é defeso ao juiz emitir opinião sobre os casos que deve julgar[57]. Ora, se o juiz não pode emitir sequer opinião sobre os casos que deve julgar, como poderia auxiliar a parte (=sugerir aprimoramentos às suas postulações) sem violar (também!) o dispositivo em liça (cuja constitucionalidade não se questiona!)?
Para finalizar, transcrevo um pequeno e insuspeito excerto doutrinário bastante elucidativo acerca do autêntico sentido do significante “dever de auxílio”. Aqui veremos a que ele efetivamente se presta. Essa velha novidade é herança do despótico Código Klein, a Ordenança Processual austríaca de 1895, e é assim explicado de Mauro Cappelletti: "Si la parte menos astuta, menos preparada, peor defendida, no ha propuesto desde el principio de la manera más adecuada su demanda o planteado adecuadamente su defensa, el juez austríaco podrá, en el curso del proceso, venir en su ayuda, y proporcionarle el modo de reparar, de modificar, de corregir las lagunas y los defectos de sus demandas o defensas. Y a tal fin el juez podrá, o más bien deberá, se fuere del caso, salir de esa absoluta pasividad y de ese absoluto neutralismo, al que estaba constreñido, en cambio, el juez del proceso común, y el mismo juez austríaco hasta la entrada en vigor del código de 1895"[58]-[59]. Palavras de Cappelletti, autor que não chega nem perto de ser um detrator ou adversário teórico de Klein.
Está mais do que evidente o caráter profundamente autoritário que subjaz o dever de auxílio. Ele assenta em tradição inautêntica ao Estado Democrático de Direito e não se mostra referencial teórico viável para quem busca uma divisão de tarefas verdadeiramente equilibrada entre os sujeitos processuais (i.é, hostil a qualquer proposta de hipertrofia das funções de qualquer deles, especialmente do juiz). Se não acende a luz vermelha da repulsa, deve acender ao menos a luz amarela do cuidado. Verdade seja dita, a doutrina brasileira ainda não chegou ao nível de Klein. Por enquanto, é não-dito entre nós (quando muito, é quase-dito). Se se tornará dito, o tempo dirá.
3.3.7. Arremate
Concluo, por ora, que os deveres de consulta, diálogo, lealdade, esclarecimento e prevenção são neologismos cooperativistas plenamente descartáveis. Nada inovam, limitando-se a referir a instituitos pré-existentes e já consolidados. Falar de tais deveres é promover nada mais é que uma dobra de linguagem completamente dispensável. O mesmo pode ser dito do dever de auxílio, se entendido como cumprimento de deveres funcionais judicantes (que, a rigor, nada tem de auxílio). Mas se for entendido como autorização para o juiz exercer função de parte e/ou de advogado (quando, de fato, presta auxílio), aí sim teremos institutos novo e autônomo, dotado de conteúdo, regime e efeitos próprios, justificando-se epistemologicamente. Encerrará ganho político, como acima adiantado, pois redefinirá os poderes do juiz no processo, o que é próprio de uma teoria política do poder (definir quem pode fazer). Será, contudo, de acachapante inconstitucionalidade, ante a violação, no mínimo, das garantias do contraditório e da imparcialidade, o que impõe sua reprovação dogmática e proscrição do foro.
4. ENCERRAMENTO
É hora de parar. Já fui longe demais para uma coluna. Mas o leitor há de me dar um desconto, afinal não falta o que falar sobre esse tema[60]. Definitivamente, precisamos falar sobre a cooperação processual[61].
Sintetizo algumas das minhas convicções sobre o que acabei de examinar – todas falseáveis, passíveis de mudança e, nesse sentido, provisórias; mesmo assim, convicções.
É o seguinte: a meu ver, o modelo cooperativo não é o modelo constitucional de processo e também não é uma peculiaridade sua em relação a outros modelos processuais a defesa de uma versão forte do contraditório e da fundamentação das decisões.
Verdade que não avancei sobre o modelo processual ao qual me filio, mas creio que isso não prejudicou qualquer dos pontos examinados. Tentei examinar o modelo cooperativo por dentro, testando a robustez dos seus próprios pilares. Considero ter sido possível demonstrar que o modelo cooperativo não é o constitucional porque, em afronta ao texto do art. 5º, LV, CRFB, institui a tese da simetria do juiz no debate, impondo nítido desequilíbrio funcional ao permitir que ele exerça funções de parte e/ou advogado (=juiz-contraditor), violando, também, a garantia da imparcialidade (objetivo-funcional/impartialidade) – lembre-se do exemplo da tutela provisória. Da mesma maneira, penso ter explicitado que tal modelo não pode reivindicar como uma peculiaridade sua a dimensão forte do contraditório e da fundamentação, pois é nota presente também no instrumentalismo dinamarquiano e no processualismo democrático mineiro. Em suma, o repertório da cooperação ou não inova (v.g. dever de diálogo nada mais é que o contraditório; dimensão forte do contraditório e da fundamentação está presente em lições diversas e anteriores a ela) ou inova contra a Constituição (v.g. dever de auxílio autoriza o juiz-contraditor). Para registro: o modelo de processo que reputo imposto pela Constituição e ao qual me filio é o garantista, na linha que vem sendo desenvolvida, sobretudo, por Eduardo José da Fonseca Costa, cujo texto-base já foi citado acima.
Do mesmo modo que Tales de Mileto quis olhar para o mar e ver o mar, busquei fitar a cooperação e ver o que ela é, e não o que dizem que ela é. E aí, pesando e medindo, estou convencido de que parte do seu repertório teórico exerce uma função mitológica de encobrimento.
Retorno a Rubens Casara, a nos lembrar que mito “emerge onde faltam palavras: seja porque não existe o que ser dito, seja porque o que existe, se for dito, revela-se insuportável”[62]. A cooperação não é um mito colocado para suprir um vazio de palavras. Há muito que dizer sobre o modelo constitucional de processo. Ao invés, considero que a cooperação apresenta seus neologismos adjudicatórios de sentidos que a larga tradição arraigou em outros significantes para compensar aquilo que, lhe sendo próprio, se for dito, seria insuportável. É nesse sentido que a considero um mito.
A paráfrase soa mais dramática do que eu gostaria, mas convém. Afinal, os pressupostos teóricos da cooperação processual ora se revelam meros adereços semânticos vazios de conteúdo jurídico próprio (=são conceitos que pegam carona em outros, mudando-lhes o nome), ora se revelam portadores de conteúdo autônomo que além de não romperem encobrem traços da tradição autoritária que grava o processo brasileiro.
Nomes como Mateus Costa Pereira e Rosemiro Pereira Leal afirmam – a meu ver, com razão – que os deveres de cooperação (em geral, e o dever de auxílio, em particular, acrescento), ocupam, no modelo cooperativo, o mesmo lugar de legitimação simbólica que os escopos metajurídicos da jurisdição ocupam no instrumentalismo processual. As consequências são as mesmas: (i) manutenção, ainda que imprevidente, da Jurisdição no centro da teoria do processo (=o processo deve ser pensado a partir e em função da jurisdição[63]), e (ii) o consequente estímulo do protagonismo judicial, que leva o juiz a atuar sem vínculos substanciais e asfixia a autonomia do direito, reduzindo o aspecto procedimental da democracia participativa a uma mera racionalidade instrumental. A mesma crítica que é feita aos escopos metajurídicos da jurisdição, há décadas, por Aroldo Plínio Gonçalves (desde 1992), e, mais recentemente, por autores como Dierle Nunes, Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oliveira[64] e Leonard Ziesemer Schmitz[65], dentre outros, e agora me parecem integralmente válidas para os deveres de cooperação.
À semelhança da escola instrumentalista, a cooperação processual, principalmente com o dever de auxílio, aposta em uma visão mítica do juiz como sujeito portador de extraordinária sabedoria, clarividência, inteligência e magnanimidade. Alheio ao tempo e sempre munido das mais elevadas intenções ele está permanentemente à disposição, assumindo a função de um tutor que salva os demais sujeitos processuais da própria inapetência. Contrapõe-se a natureza contingente, limitada e volúvel das partes, advogados e promotores lato sensu à virtude plena e sem fragilidades do juiz, que exerce, então, uma função redentora (é o próprio juiz-antena do instrumentalismo). O sucesso do modelo depende desse sujeito carismático, sublime, infalível e... inumano. Mitológico, portanto – não se deixe escapar que essa dependência do juiz põe (ou mantém?) a Jurisdição no centro da teoria do processo.
Estaria eu criando meus próprios mitos? Pode ser. Mas me lancei na aventura de olhar para o mar em busca de mar. Creio ter conseguido, mas as narrativas não cessam e podem apontar para outros caminhos. Quem sabe, juntos, possamos navegar em busca da compreensão do que a cooperação de fato é. Até lá, até que provem a legitimidade constitucional de um juiz que é, parafraseando Franco Cipriani, a um só tempo, árbitro e treinador[66], sigo com as minhas convicções sobre o tema: a cooperação tem coisas boas e novas, mas as novas não são boas e as boas não são novas.
Boa viagem!
5. NOTAS
[1] Sou grato a todos os amigos que leram o texto antes da publicação, especialmente àqueles que prestaram contribuições decisivas para o seu aprimoramento, que são Eduardo José da Fonseca Costa, Mateus Costa Pereira e Roberto Campos Gouveia Filho. A estes e aos demais, muito obrigado!
[2] Conferir: CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. Saraiva. 2015. Para evitar mal entendidos, Casara deixa claro que o mito pode ser valorado tanto positiva como negativamente (p.27). O mito não é, pois, um mal em si. Certo é, porém, que, antes de tudo, um mito deve ser claramente tratado pelo que é, ou seja, um mito. Tércio Sampaio Ferraz Jr dá o exemplo do mito da caverna, de Platão, como de uso cínico do expediente. Em suas palavras: “O mito da caverna pressupõe o ser humano como alguém que quer ver e contemplar, o que é, para Platão, o aspecto decisivo de sua antropologia filosófica, a qual, de certo modo, informa nossa cultura até hoje. Trata-se da prioridade do ver sobre o fazer, do autor sobre o artífice, da ciência sobre a ação, da contemplação sobre o falar e o agir, da vida contemplativa sobre a vida ativa. A visão da verdade, porém, é um ato de solidão, enquanto o fazer conforme regras é um ato de comunidade, o que explica a dicotomia apontada. O mito da caverna, o homem, para chegar a ver a verdade, liberta-se do convívio com os outros e sai solitariamente do lugar em que estava. Quando é recebido de volta pelos seus companheiros, ele é, então, repudiado. A saída de Platão para o problema posto por essa dicotomia, em que a visão da verdade é um ato de solidão e o fazer é um ato de comunidade, não deixa de ter uma ponta de cinismo. Para influenciar a ação dos homens que não veem, o filósofo – diz Platão –, deve recorrer a mitos, tais como o da vida futura de castigos e recompensas, o chamado mito do inferno que só ele saber ser apenas um mito, no qual ele não crê, mas que produz efeitos na medida em que os homens que ficaram presos dentro da caverna creem”. (Função Social da Dogmática Jurídica. 2ª ed. Atlas. 2015, p. 14-15).
[3] Este tópico é uma síntese do Capítulo 1 da Parte II de MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil. RT. 2009, p. 63 a 77.
[4] Para uma visão mais refinada, consultar: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Uma Espectroscopia Ideológica do Debate entre Ativistas e Garantistas. Ativismo Judicial e Garantismo Processual. Coord. Fredie Didier Jr. José Renato Nalini. Glauco Gumerato Ramos. Wilson Levy. Jus Podivm. 2013, p. 171-186.
[5] Para um debate sobre a natureza principiológica da cooperação, conferir: MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil como Prêt-a-Porter? Um Convite ao Diálogo para Lenio Streck. Revista de Processo – RePro.RePro. vol. 194. p. 55 e ss. Abr-2011; STRECK, Lenio Luiz. MOTTA, Francisco José Borges. Um Debate com (e sobre) o formalismo-valorativo de Daniel Mitidiero, ou “Colaboração no Processo Civil” é um Princípio? Revista de Processo – RePro. vol. 213. p. 13 e ss. Nov/2012.
[6] Não é unânime entre os cooperativistas, mas alguns defendem que a cooperação também cria deveres de cooperação das partes com o juiz (partes-juiz) e deveres de cooperação entre as partes (parte-parte), solução que, inequivocamente, foi positivada no texto do art. 6º, CPC (Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre sipara que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva). Não analisarei essa questão no presente texto. Por ora me importa apenas a cooperação do juiz com as partes (juiz-partes).
[7] Sobre o processo como instituição de garantia, consultar: COSTA, Eduardo José da Fonseca. O Processo como Instituição de Garantia. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia. Mais amplamente, vale conferir, também: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência Processual, Ciência Procedimental e Ciência Jurisdicional. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/ciencia-processual-ciencia-procedimental-e-ciencia-jurisdicional-por-eduardo-jose-da-fonseca-costa.
[8] Sobre a garantia da imparcialidade, consultar: COSTA, Eduardo José da Fonseca. SOUSA, Diego Crevelin de. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Tomo I. Coord. Sergio Luiz de Almeira Ribeiro. Roberto Pinheiro Campos Gouveia Filho. Izabel Cristina Pinheiro Cardoso Pantaleão. Lúcio Grassi de Gouveia. Lualri. 2017, p. 183-244.
[9] Em boa medida, essa questão foi intuída em texto pioneiro de Glauco Gumerato Ramos, publicado na RePro 190, Dezembro-2010, em que propôs a edificação de um modelo de enjuizamento escalonado, no qual juízes diferentes atuariam nas fases postulatória, instrutória e decisória do mesmo processo. Conferir: RAMOS, Glauco Gumerato. Reprensando a Prova de Ofício na Perspectiva do Garantismo Processual. Ativismo Judicial e Garantismo Processual. Ativismo Judicial e Garantismo Processual. Coord. Fredie Didier Jr. José Renato Nalini. Glauco Gumerato Ramos. Wilson Levy. Jus Podivm. 2013, p. 255-271.
[10] Sobre os mais variados vieses cognitivos e o risco de distorcerem a interpretação do juiz, conferir: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a Imparcialidade a Sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Data da defesa: 15/02/2016. 187f. Tese (doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
[11] Por todos, é a posição de Daniel Mitidiero: “O processo cooperativo parte da ideia de que o Estado tem como dever primordial propiciar condições para a organização de uma sociedade livre, justa e solidária, fundado que está na dignidade da pessoa humana. Indivíduo, sociedade civil e Estado acabam por ocupar, assim, posições coordenadas. O direito a ser concretizado é um direito que contra com a juris prudentia, nada obstante concebido, abstratamente, como scientia juris. Por essa vereda, o contraditório acaba assumindo novamente um local de destaque na construção do formalismo processual, sendo instrumento ótimo para a viabilização do diálogo e da cooperação no processo, que implica, de seu turno, necessariamente, a previsão de deveres de conduta tanto para as partes como para o órgão jurisdicional (deveres de esclarecimento, consulta, prevenção e auxílio). O juiz tem o seu papel redimensionado, assumindo uma dupla função: mostra-se paritário na condução do processo, no diálogo processual, sendo, conduto, assimétrico no quando da decisão da causa”. (Colaboração no Processo Civil. Pressupostos Sociais, Lógicos e Éticos. RT. 2009, p. 102).
[12] DELFINO, Lúcio. ROSSI, Fernando. Juiz Contraditor? In Processo Civil nas Tradições Brasileira e Iberoamericana. Conceito, 2014, p.279-292.
[13] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Algumas Considerações sobre as Iniciativas Judiciais Probatórias. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. n. 90.Fórum. 2015, p. 157.
[14] Ainda pende de sistematização a extraordinária amplitude dessa constatação, que alcança um sem número de institutos do direito processual brasileiro. Um exemplo que pode ser facilmente antecipado é o dos poderes instrutórios do juiz. Escrevi sobre isso em: SOUSA, Diego Crevelin de. Segurando o Juiz-Contraditor pela Impartialidade: de como a ordenação de provas de ofício é incompatível com as funções judicantes. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. n. 96. Fórum. 2016, p. 49-78.
[15] Cooperação processual: Inconstitucionalidades e excessos argumentativos – Trafegando na contramão da doutrina. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. n. 93. Fórum. 2016, p. 149-168.
[16] Em texto ainda inédito, escrevemos, eu e Lúcio Delfino, o seguinte: “não estamos negando protagonismos. Discordamos da tese de que “o juiz é simétrico no debate e assimétrico na decisão”, por encerrar contradição lógica. Explica-se. Sendo o debate processual orientado à formação da decisão é mais do que evidente que apenas as partes devem debater e apenas o juiz deve decidir. As partes protagonizam o debate; o juiz, a decisão. Nivelar igualmente partes e juiz no debate é permitir que o último exerça (se não todas, ao menos algumas) funções de parte (p.ex. ordenar a produção de provas de ofício), ou seja, justamente aquelas funções atribuídas a quem, debatendo, está interessado em influir na decisão. Mais: funções exercidas ativamente e que podem influenciar diretamente no resultado do processo. Em suma, é permitir que o juiz aja como se parte fosse. Institui-se a figura do juiz-contraditor, sujeito que é, simultaneamente, juiz e parte, um verdadeiro monstro ético-jurídico. Ora, como o juiz protagoniza – e deve protagonizar! – a decisão, permitir que ele aja simetricamente às partes no debate é enfraquecer a influência destas/sobrelevar a influência daquele na decisão. Não há simetria possível entre quem só debate e quem debate e julga, pois este pode ir preparando o resultado do processo, até mesmo por automatismos mentais inconscientes. De fato, estudos de psicologia cognitiva comportamental indicam que inúmeras distorções cognitivas podem contaminar os processos decisórios humanos, em geral, e do juiz, em particular (v.g., a relação entre a prova de ofício e os vieses de ancoragem e ajuste e de confirmação), havendo, pois, lapso científico contraindicando a atribuição de determinadas funções processuais ao magistrado. Eis o paradoxo: invocar simetria no debate sem problematizar essas questões é preservar (quiçá agravar, porque blindado por discurso equívoco) o assimétrico o protagonismo judicial (além de fazer tábula rasa da imparcialidade). Não há simetria possível em qualquer das fases processuais (debate e decisão). Por fim, cumpre esclarecer que o protagonismo de um sujeito não reduz a relevante participação indireta do outro. Com efeito, o juiz participa indiretamente da fase de debate, assim como as partes participam indiretamente da fase decisória. O juiz participa indiretamente do debate, v.g., quando provoca a manifestação das partes a respeito de matéria cognoscível de ofício (que, a rigor, não é sequer participação ativa, mas passiva, pois cumpre situação jurídica passiva derivada do contraditório, que lhe impõe velar e assegurar o amplo exercício do contraditório pelas partes, ex vi do art. 7º, in fine, CPC), do mesmo modo que as partes participam indiretamente da decisão quando o juiz considerar todos os seus fundamentos, argumentos e provas, para acolhê-los ou rejeitá-los (art. 489, § 1º, IV, CPC). Portanto, a posição ora defendida – protagonismo das partes no debate e protagonismo do juiz na decisão – não fragiliza, absolutamente, o que se convencionou chamar contraditório substancial (garantia de influência e não surpresa), inclusive com sua inquebrantável repercussão no dever de fundamentação analítica das decisões. Queremos ilustrar que tudo isso é possível sem precisar recorrer a formulações de uma pseudossimetria entre partes e juiz no debate. O amplo respeito ao contraditório não exige um juiz ativo, mas um juiz que cumpra seus deveres decorrentes daquela situação jurídica processual, tal como constitucionalmente instituída. Observadas aquelas balizas, respeita-se o processo constitucional quando as partes protagonizam o debate e o juiz protagoniza a decisão, nos termos acima explicitados. Não é necessário igualar juiz e partes para que o processo encerre um ambiente verdadeiramente democrático – até porque é intuito fadado ao fracasso, dado que produz resultado justamente inverso: acentua o protagonismo judicial. Aliás, não há um dispositivo constitucional sequer que sugira essa simetria entre juízes e partes[16]. Como já dito anteriormente, talvez seja o caso de deixar que a Constituição nos diga algo antes de dizermos algo sobre ela”.
[17] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo Curso de Processo Civil. RT. 2015, p. 205-206.
[18] A constatação prova demais: a cooperação não é problemática apenas quando pensada na relação parte-parte (=as partes devem cooperar entre si), mas também na relação juiz-parte (=o juiz deve cooperar com as partes), pois, edificada sem o cuidado com a imparcialidade objetiva, promove desequilíbrio funcional.
[19] Prova e Convicção. 3ª ed. RT. 2015, p. 312.
[20] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Data da defesa: 15/02/2016. 187f. Tese (doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 112-114.
[21] Amplamente, para além do tema ora tratado, conferir: MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito. The brazilian lessons. 3ª ed. Atlas. 2013.
[22] Algumas Considerações sobre as Iniciativas Judiciais Probatórias. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. n. 90. Fórum. 2015, p. 160.
[23] Direito Processual Penal. 12ª ed. Saraiva. 2015, p. 411.
[24] Foi o que fez Eduardo José da Fonseca Costa em sua tese de doutorado, em que propôs a compreensão da imparcialidade a partir de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia: FONSECA COSTA, Eduardo José da. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Data da defesa: 15/02/2016. 187f. Tese (doutorado em Direito). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
[25] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. MITIDIERO, Daniel. Novo Processo Civil Brasileiro. RT. 2015, p. 271-272.
[26] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V.1. 17ª Ed. Jus Podivm. 2015, p. 120-125.
[27] Tal é o imaginário de baixa constitucionalidade (Streck) do senso comum teórico dos juristas (Warat), presente em célebre passagem de Guilherme de Souza Nucci, um dos mais festejados autores do processo penal brasileiro, a dizer que a CRFB adota um modelo acusatório, o CPP adota um modelo inquisitório e por isso nosso modelo de processo penal é misto: “Registremos, desde logo que há dois enfoques: o constitucional e o processual. Em outras palavras, se fôssemos seguir exclusivamente o disposto na Constituição Federal poderíamos até dizer que nosso sistema é acusatório (no texto constitucional encontramos os princípios que regem o sistema acusatório). Ocorre que nosso processo penal (procedimento, recursos, provas etc.) é regido por Código específico, que data de 1941, elaborado sob nítida ótica inquisitiva (encontramos no CPP muitos princípios regentes do sistema inquisitivo, como veremos a seguir)”. (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. RT. 2005, p. 100). A passagem fala por si só e confirma o que eu disse acima.
[28] Eis o problema de um realismo jurídico simplificado (que não incluiu autores sofisticados como Hart, v.g.) e sua pretensão de reduzir o direito àquilo que os juízes dizem que ele é. Para uma crítica ao realismo, conferir, por todos: ABBOUD, Georges. Discricionariedade Administrativa e Judicial. RT. 2014; COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência Jurídica. Crítica ao realismo linguístico de Paulo de Barros Carvalho. 2ª Ed. Malheiros. 2009, em especial as p. 182-191; STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica. Casa do Direito. 2017, especialmente o verbete n. 35 (realismo jurídico), p. 245-250.
[29] Dworkin e a Decisão Jurídica. Jus Podivm. 2017, p. 242-250.
[30] Apud. LEAL, André Cordeiro. O Contraditório e a Fundamentação das Decisões no Direito Processual Democrático. Mandamentos. 2002, p. 104.
[31] Técnica Processual e Teoria do Processo. 2ª ed. Del Rey. 2012.
[32] Como síntese da sua obra, cita-se: Teoria Geral do Processo. Primeiros estudos.11ª ed. Forense, 2012.
[33] Processo Jurisdicional Democrático. Uma análise crítica das reformas processuais. Juruá. 2008.
[34] Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 3ª ed. Del Rey. 2015.
[35] O Contraditório e a Fundamentação das Decisões no Direito Processual Democrático. Mandamentos. 2002.
[36] O Princípio do Contraditório e sua Dupla Destinação. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 4ª ed. Malheiros. 2001, p. 122-135.
[37] O Dever de Motivar. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 4ª ed. Malheiros. 2001, p. 1077-1080.
[38] Instituições de Direito Processual Civil. V.III. 6ª ed. Malheiros. 2009, p. 184-186.
[39] As críticas de fundo ao instrumentalismo processual não se voltam principalmente a esses aspectos, digamos, procedimentais, mas à confiança que devota aos juízes, permitindo que decidam os casos de acordo com seu sentimento de justiça, inclusive contra legem. A propósito, conferir: ABBOUD, Georges. LUNELLI, Guilherme. Ativismo Judicial e Instrumentalidade do Processo. Diálogos entre Discricionariedade e Democracia. RePro. vol. 242. 2015. p. 21- 47. Abr-2015. Versão eletrônica.
[40] Princípios do Processo na Constituição Federal. 10ª ed. RT. 2010, p. 207 a 263 (sobre o contraditório) e p. 288 a 300 (sobre a fundamentação).
[41] Dizia o pedido de veto: “a nossa preocupação é com o impacto que esses itens vão causar no congestionamento da Justiça. Atualmente, temos quase 100 milhões de processos em tramitação no país. Cada magistrado julga, em média, 1,5 mil processos por ano. O Judiciário está no limite. (...) terão impactos severos, de forma negativa, na gestão do acervo de processos, na independência pessoal e funcional dos juízes e na própria produção de decisões judiciais em todas as esferas do país, com repercussão deletéria na razoável duração dos feitos)”. Na época, antes mesmo da resposta da Presidente da República, escrevemos, eu e Lúcio Delfino, um texto a respeito. Conferir: SOUSA, Diego Crevelin de. DELFINO, Lúcio. Convite a um Processualismo Constitucional Democrático. in http://emporiododireito.com.br/backup/convite-a-um-processualismo-constitucional-democratico/
[42] Em 2006, julgando o MS 25.787/DF, o STF reconheceu que a pretensão à tutela jurídica encampa os direitos (i) de informação, (ii) de manifestação e (iii) de ver seus argumentos considerados.
[43] A propósito, conferir: ROSSI, Júlio Cesar. Tribunais Superiores Maculam o Dever de Fundamentar Decisões. In https://jota.info/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/tribunais-superiores-maculam-o-dever-de-fundamentar-decisoes-24112016. Conferir, também: PEIXOTO, Ravi. A vedação à decisão surpresa e a crônica de uma morte anunciada. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. n. 99. Fórum. 2017, 359-365.
[44] NUNES, Dierle. A Função Contrafática do Direito e no novo CPC. Disponível em : https://www.academia.edu/12752172/A_fun%C3%A7%C3%A3o_contraf%C3%A1tica_do_Direito_e_o_Novo_CPC.
[45][45] Francisco José Borges Motta tem passagem valiosa: “Por que não basta que a decisão esteja correta em seu resultado? Por que a decisão deve, também, legitimar-se a partir da resposta aos argumentos dos interessados? (...) a partir da leitura moral das cláusulas constitucionais que tratam do processo (em especial, às cláusulas do devido processo legal e do contraditório), pode-se chegar à conclusão de que, nos quadros de um Estado Democrático de Direito, as exigências do autogoverno (dito num nível mais abstrato: exigências de autonomia e dignidade) fazem com que as decisões jurídicas devam ser construídas em conjunto com os interessados no seu resultado; e que, para tanto, deve-se garantir a participação destes no processo de resolução das questões que lhes atingem. (...) A Constituição deve ser interpretada como um conjunto coerente, e os dispositivos que tratam das coisas processuais devem sustentar-se reciprocamente (não há devido processo legal sem contraditório; não há devido processo legal sem ampla defesa; não há ampla defesa sem contraditório e assim por diante). Não há dúvidas, pois, de que se pode interpretar a cláusula do devido processo legal como um princípio moral abrangente, integrado ao direito como um limite ao poder do Estado. (...) De todas essas condições democráticas (participação, interesse e independência), a que encontra sua expressão mais natural no processo jurisdicional é, certamente, a garantia de participação. (...) no âmbito específico do processo jurisdicional, essa condição está radicalmente imbricada com a possibilidade de os participantes virem a influenciar, com seus argumentos, o provimento jurisdicional. E essa possibilidade é garantida por uma compreensão constitucional da garantia do contraditório” (Dworin e a Decisão Jurídica. Jus Podivm. 2017, p. 244-247).
[46] DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 18ª ed. Jus Podivm. 2016, p. 129.
[47] Essa questão vem sendo primorosamente tratada por Roberto Campos Gouveia Filho, sobretudo nos vídeos que tem gravado sobre a primazia do mérito, para o programa Falando de Processo 365, da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro, que podem ser acessados na página do programa no You Tube, e no Facebook. Eu não teria feito certos reparos e refinamentos em minha compreensão do assunto sem o conteúdo de tais vídeos e nossos profícuos diálogos no Telegram, sempre enriquecedores.
[48] São exatamente esses os exemplos empregados pela doutrina cooperativista para aludir aos sentidos (i) e (ii) do “dever de esclarecimento”, como se vê em: DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V.1. 18ª ed. Jus Podivm. 2016, p. 129.
[49] Novo Código de Processo Civil Comentado. 3ª ed. RT. 2017, p. 165.
[50] DIDIER JR, Fredie. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Orgs. Antônio do Passo Cabral. Ronaldo Cramer. Forense, 2016. Versão eletrônica.
[51] Novo Código de Processo Civil Comentado. 3ª ed. RT. 2017, p. 166.
[52] Fundamentos Constitucionais do Princípio da Cooperação Processual. Jus Podivm. 2013, p. 282.
[53] DIDIER JR, Fredie. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Orgs. Antônio do Passo Cabral. Ronaldo Cramer. Forense, 2016. Versão eletrônica.
[54] Curso de Direito Processual Civil. 18ª ed. Jus Podivm. 2016, p. 132.
[55] Pensando melhor, talvez faça. Explico. Se o dever de auxílio for – como me parece que é – o único dado específico do modelo cooperativo, aquilo que o distingue dos demais modelos processuais, falar em cooperação processual sem dever de auxílio é falar em algo diverso da cooperação. Vale dizer: aceitar a cooperação em sua inteireza, isto é, com o dever de auxílio (como autorização para o juiz praticar ato de parte – se mediante previsão legal ou não, pouco importa) é adotar modelo inconstitucional; aceitar o modelo cooperativo com ressalvas, isto é, sem do dever de auxílio (como autorização para o juiz praticar ato de parte – se mediante previsão legal ou não, pouco importa), já não é mais adotar o modelo cooperativo... Ou seja, abolir o dever de auxílio faz uma falta imensa para o modelo cooperativo porque não há modelo cooperativo sem dever de auxílio.
[56] Chamar prestação de tutela jurídica de auxílio é baralhamento desnecessário e contraproducente, porque aglutina no mesmo significante sentidos aos quais a tradição outorgou significados completamente distintos, complicando a apreensão de seu conteúdo e podendo pavimentar o caminho para, nos jogos concretos de linguagem, construir-se um imaginário receptivo à concessão de funções de parte ao juiz, o que, em qualquer caso, é intolerável. Usar o significante auxílio (=ajuda) para significar prestação de tutela jurídica (=dever) é algo que remete à novilíngua de 1984, onde o Ministério da Paz era o responsável pela guerra, o Ministério do Amor era responsável pela lei e a ordem... “O Ministério da Verdade, responsável por notícias, entretenimento, educação e belas-artes. O Ministério da Paz, responsável pela Guerra. O Ministério do Amor, ao qual cabia manter a lei e a ordem. E o Ministério da Pujança, responsável pelas questões econômicas. Seus nomes, em Novafala: Miniver, Minipaz, Minamor e Minipuja. Desses, o realmente apavorante era o Ministério do Amor. O edifício não tinha nenhuma janela. Winston nunca entrara no Ministério do Amor, nunca chegara nem a meio quilômetro de distância. Era impossível entrar no prédio sem uma justificativa oficial, e mesmo nesses casos só transpondo um labirinto de novelos de arame farpado, portas de aço e ninhos ocultos e metralhadora. Mesmo as ruas que levavam até as barreiras externas eram percorridas por guardas com cara de gorila vestindo fardas negras e armados de cassetetes articulados”. (ORWELL, George. 1984. Companhia das Letras. p. 14-15). (Destaquei).
[57] LC 35/79 (Lei Orgânica da Magistratura Nacional). Art. 36 – É vedado ao magistrado: III – manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério.
[58] in Proceso, Ideologias, Sociedad. Trad. Santiago Sentís Melendo e Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America. 1974, p. 18.
[59] Igor Raatz sintetiza o contexto e o conteúdo do Código Klein: “Antes de mais nada, é necessário contextualizar a reforma processual austríaca como contraponto à legislação austríaca como um contraponto à legislação da época vigente, em que vigorava o sistema te atuação, com absoluta separação do juiz em relação às partes, o que dava margem às injustiças combatidas por Menger e à lentidão do processo. Tal contexto é importante, para entender de que modo o sistema austríaco foi, pela reforma, diametralmente modificado. As ideias de Menger influenciaram diretamente o pensamento de Franz Klein, responsável pelo projeto de reforma da legislação processual austríaca, elaborado em 1895, em vigor a partir de 1898. Tratava-se de um código efetivamente novo e original, que mudou o panorama das instituições europeias continentais, ao ponto da sua influência para reformas processuais ser comparada com aquela exercida por Napoleão sobre a Codificação em geral. Para Klein, somente a teoria da sociedade poderia ser o princípio válido e construtivo de um regulamento processual, rompendo, assim, com a teoria do indivíduo prevalente no processo civil do Estado Liberal. O processo, como instituto de direito público, deveria satisfazer, ao lado dos interesses privados, também os valores sociais mais elevados, de modo que o juiz, “timoneiro do Estado”, figuraria como representante profissional do interesse geral. Daí que, a partir de uma concepção do processo como instituição para o bem-estar social, aumenta-se a atividade do órgão judicial, o qual é munido de suficientes poderes para a direção material do processo, capazes de garantir a sua marcha rápida e regular. Nesse sentido, o § 432 da ZPO austríaca, sob notável influência do pensamento de Menger, estabelecia a possibilidade de o juiz instruir as partes ignorantes do direito ou não representadas por advogado e aconselhá-las sobre as consequências jurídicas de seus atos ou omissões”. (Autonomia Privada e Processo Civil. Negócios Jurídicos Processuais, Flexibilização Procedimental e o Direito à Participação na Construção do Caso Concreto. Jus Podivm. 2017, p. 79-80). (Destaquei). Com abordagem mais ampla sobre os projetos de Menger e Klein, conferir: NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Brasileiro. Análise crítica das reformas processuais. Juruá. 2012, especialmente páginas 79 a 106.
[60] Ainda há muito o que dizer, como: a exploração das teses da cooperação das partes com o juiz e da cooperação entre as partes; o modo como a cooperação se relaciona com as controversas medidas que, aqui e acolá, vêm sendo deferidas com fulcro no art. 139, IV, CPC – sobre este tema, escrevi dois textos, um em coautoria com Jorge Bheron Rocha e Bruno Campos (Medidas Indutivas Inominadas: o cuidado com o fator shylokiano do art. 139, IV, CPC. in http://emporiododireito.com.br/leitura/medidas-indutivas-inominadas-o-cuidado-com-o-fator-shylokiano-do-art-139-iv-cpc) e um solo (Teremos um Ano Novo? Uma reflexão sobre e para a doutrina. In http://emporiododireito.com.br/backup/teremos-um-ano-novo/).
[61] Para homenagear o brilhante texto acerca do instrumentalismo processual, publicado nessa mesma coluna, por Antonio Carvalho Filho: Precisamos Falar sobre o Instrumentalismo Processual. http://emporiododireito.com.br/leitura/precisamos-falar-sobre-o-instrumentalismo-processual-por-antonio-carvalho-filho.
[62] Mitologia Processual Penal. Saraiva. 2015, p. 86.
[63] "O processo é, portanto, o método adotado pelo Estado, para formular e atuar a norma jurídica, no caso em que os destinatários não possam ou não queiram fazê-lo. A atuação do direito substancial é o escopo do processo. Aliás, processo e jurisdição têm o mesmo objetivo, o que é perfeitamente natural, visto que o primeiro constitui o meio de atuação da segunda. Sendo o processo instrumento da jurisdição, deve ser compreendido em função desta, ou seja, como o instrumento de atuação da lei no caso concreto, como instrumento de garantia do ordenamento jurídico, da autoridade do Estado. É mediante o processo que o Estado prestigia a ordem jurídica vigente, impondo as normas de direito material às situações da vida real". (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz. 7ª Ed. RT. 2013, p. 69-70). (Destaquei). A crítica de Rosemiro Pereira Leal é lancinante. Tratando da teoria do processo como relação jurídica e seus maiores expoentes – Bülow, Chiovenda, Carnelutti, Calamandrei e Liebman –, anota com razão o mestre mineiro: “Agravam-se as tentativas de classificação de processo e procedimento nesta escola da relação jurídica (hoje instrumentalista), quando, além de se perderem em elucubrações fenomenológicas e enigmáticas, os teóricos dessa escola conectaram o Processo à jurisdição, em escopos metajurídicos, definido o processo como se fosse uma corda a serviço da atividade jurisdicional nas mãos do juiz para puxar pela coleira mágica da Justiça Redentora para todos os homens, trazendo-lhes paz e felicidade. Falam que o processo é instrumento da jurisdição, sem observarem que a jurisdição hoje é função fundamental do Estado e este só se legitima, em sua atividade jurisdicional, pelo processo. É, portanto, validador e disciplinador da jurisdição e não instrumento dela”. (Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. 11ª ed. Forense, 2012, p. 84). (Destaquei). Georges Abboud lança indagações que escancaram a incompatibilidade dos pressupostos da teoria instrumentalista com o Estado Democrático de Direito: “Estas colocações trazem consigo fragmentos ideológicos perigosos, pois o Estado passa a ser o único detentor do poder, enquanto que os sujeitos apenas participam do processo, uma vez que não possuem o poder, apenas são objetos sobre os quais ele se exerce. Ainda que não seja esse o escopo da instrumentalidade, ao final, ela apresenta um pano de fundo teórico fértil para o florescimento de ativismos de todos os gêneros. Outrossim, diante desse quadro, como situar a posição dos direitos fundamentais e das garantias institucionais do cidadão? Como é possível imaginar o cidadão processando a figura do Estado se a ele não é conferido poder nenhum, apenas o direito de participação no processo? De que maneira o judiciário poderia exercer sua função contramajoritária? Nesse modelo de jurisdição, como o direito fundamental pode ser vislumbrado como trunfo contra a maioria?”. Na sequência, demonstra como os postulados instrumentalistas dissolvem o caráter contramajoritário dos direitos fundamentais e cláusula constitucional da divisão dos poderes: “O aspecto preocupante, por isso, é a afirmação genérica de que a jurisdição tem que se preocupar e atender o escopo social, o político e o jurídico. Qual o sentido em se atribuir à jurisdição o atendimento dos escopos políticos e sociais? Na verdade, para se atender a um escopo político, obrigatoriamente, deve-se abandonar uma função contramajoritária que é ínsita ao Judiciário. Obviamente que não se pode ignorar que decisões judiciais causam reflexos em aspectos sociais e políticos. Todavia, essa afirmação não nos permite inferir que seria possível atribuir à atividade jurisdicional a concretização de escopos políticos e sociais. Aliás, conforme tratamos no item referente ao ativismo, em regra, as decisões ativistas surgem nas hipóteses em que o magistrado, pautado em seu senso de justiça e vontade, passa a pretender atender demandas sociais e políticas mediante atividade jurisdicional, sobrepujando, assim, a esfera do processo legislativo”. (Discricionariedade Administrativa e Judicial. O Ato Administrativo e a Decisão Judicial. RT. 2014, p. 364-365). (Destaquei).
[64] O Dito e o Não-Dito sobre a Instrumentalidade do Processo: Críticas e Projeções a Partir de uma Exploração Hermenêutica da Teoria Processual. RePro. vol. 166. p. 27 e ss. Dez-2008. Em lição sobre a instrumentalidade plenamente aplicável à cooperação processual, sintetiza Georges Abboud em obra solo: “a instrumentalidade do processo cria verdadeiro lastro para o ativismo e para a discricionariedade, mormente em virtude de três pontos: 1.) a jurisdição como categoria central da teoria geral do processo concentra na figura do juiz todas as atenções. Essa concentração de atenções, paradoxalmente, ao invés de limitá-lo em sua atividade, amplia demasiadamente seus poderes, caindo num relativismo próprio da filosofia da consciência; 2.) Esse tipo de teoria separa radicalmente Estado e indivíduo e reitera uma relação de sujeição desta para com aquele; 3.) Como há riscos democráticos para a figuração do processo nos postulados da instrumentalidade, posto que sob o argumento de que a jurisdição deve preocupar-se com o atendimento dos escopos políticos e sociais, legitima-se qualquer tipo de provimento de caráter discricionário-ativista-decisionista” (Discricionariedade Administrativa e Judicial. O Ato Administrativo e a Decisão Judicial. RT. 2014, p. 366). (Destaquei).
[65] “O exercício do poder, pelo juiz, segundo a instrumentalidade, deve ser realizado de forma a “captar” as opções valorativas da sociedade no intuito de efetivar uma ideia “justa” de direito. “As disposições contidas no ordenamento jurídico substancial constituem para o juiz, em princípio, o indicador do critério de justiça pelo qual determinada sociedade optou, em dado quadrante de sua história; mas, se só à lei estiver o juiz atento, sem canais abertos às pressões axiológicas da sociedade e suas mutações, ele correrá o risco de afastar-se dos critérios de justiça efetivamente vigentes.” Nesse ponto, o grande risco assumido pela teoria da instrumentalidade é que o julgador/intérprete seja ainda aquele Sujeito individualista que, mesmo na intenção de respeitar valores sociais, acaba atribuindo como tais o seu próprio senso de justiça e de equidade. A jurisdição assume funções criativas, sem que tenha sido desenvolvida uma teoria da decisão judicial. Dinamarco inclusive aponta a possibilidade de desviar-se do que diz a lei, para atender a essa finalidade maior de justiça. Veja-se o seguinte trecho: “Se o texto aparenta apontar para uma solução que não satisfaça ao seu sentimento de justiça, isso significa que provavelmente as palavras do texto ou foram mal empregadas pelo legislador, ou o próprio texto, segundo a mens legislatoris, discrepa dos valores aceitos pela nação no tempo presente. Na medida em que o próprio ordenamento jurídico lhe ofereça meios para uma interpretação sistemática satisfatória perante o seu senso de justiça, ao afastar-se das aparências verbais do texto e atender aos valores subjacentes à lei, ele estará fazendo cumprir o direito.” Da leitura do trecho acima saltam aos olhos algumas posturas rejeitadas por este trabalho, como a referência ao “seu sentimento de justiça”, o apelo à vontade do legislador e, mais grave de todos, a ideia de que se o texto da lei diverge do que o intérprete tem como algo justo, teria sido o legislador quem não soube empregar as palavras adequadamente no dispositivo legal. O direito, assim, se amoldaria àquilo que o intérprete (solipsista) quer que ele seja. Essas constatações são perigosas quando nos inserimos em um Estado Democrático de Direito, pois a vontade (e consequente discricionariedade) do julgador passaria a suplantar aquilo que o poder Legislativo produz normativamente. Há um déficit democrático ao qual foi emprestada uma legitimidade que não lhe cabe”. (A Fundamentação das Decisões Judiciais. A crise na construção de respostas corretas no processo civil. RT. 2015, p. 186-187).
[66] “No es esta la sede para detenerme, como merecería la importancia que Andrioli ha tenido en nuestra historia, sobre su concepción del proceso civil. Espero, sin embargo, se me permita recordar que él estaba convencido que, para ver funcionar el proceso civil, se necesitara hacer de tal forma que el juez llegara preparado a la primera audiencia, de tal forma que pudiera dirigir lo mejor posible el proceso; y que con tal finalidad él consideraba que los abogados debían vaciar de inmediato el saco y que el juez no debiera limitarse a hacer de árbitro, a «pitar las faltas y a marcarlas en la tablilla de amonestaciones», sino que debía sentirse «el entrenador del uno y del otro equipo», corrigiendo los «errores tácticos» de los dos equipos, a fin de obtener «la actuación de la voluntad concreta de la ley»” (Batallas por la Justicia Civil. Ensayos. Primera Parte Contra el CPC de 1940 y su Ideologia. p. 106).
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