Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho
I
Em 2007, o professor lusitano Luis Correia de Mendonça publicou o ensaio “Vírus autoritário e processo civil” (clique aqui), no qual busca revelar as origens do autoritarismo processual, nomeadamente a decorrente da jurisdição civil em diversas partes do mundo e traça as origens da infecção do sistema português até a época do lançamento do texto.
O trabalho que ora realizo tem outro objetivo. Ao invés de buscar o paciente zero da infecção viral – o que já vem sendo realizado com bastante galhardia entre nós por André Cordeiro Leal (Instrumentalidade do Processo em crise. Belo Horizonte : Mandamentos, 2008, pp. 37/127), Mateus Costa Pereira (Introdução ao Estudo do Processo: Fundamentos do garantismo processual brasileiro. 1. ed. Belo Horizonte : Letramento : Casa do Direito, 2020, no prelo), Igor Raatz (clique aqui e Autonomia Privada e Processo: liberdade, negócios jurídicos processuais e flexibilização procedimental. 2. ed. Salvador : Editora JusPodivm, 2019, pp. 77/116), Natascha Anchieta (clique aqui) e Luciana Carvalho (em sua dissertação de mestrado, ainda inédita) –, dedico-me a demonstrar o estado pandêmico do vírus autoritário em nossos dias, que se dissemina em velocidade absurda pela doutrina processual, professores, estudantes, advogados, promotores e juízes, e como a doença a ele relacionada, o autoritarismo, se manifesta.
II
Todos os estudos sobre o vírus autoritário apontam que ele se hospeda na mente dos “jurídicos” (=qualquer pessoa que estude Direito) e promove a subversão completa do sistema do direito, fazendo com que os infectados defendam medidas, ações e comportamentos autoritários, sem qualquer respaldo concretamente legal ou constitucional, visando atingir a “a justiça no caso concreto”.
O vírus promove a abertura do sistema do direito para que outros sistemas como a política, a moral, a economia etc o aprisionem, liquefazendo a solidez do legal em uma (des)ordem fluida, que preze pela solução dada pelo juiz a partir de seus parâmetros pessoais. Como já tive oportunidade de dizer em outros momentos (clique aqui e aqui), esse vírus embute na cabeça do “jurídico” a necessidade de empoderar o juiz para além dos limites constitucionais, abusando, portanto, do poder.
A grande dificuldade para o seu combate é que a disseminação é muito rápida e ataca, sem perdão, as mentes dos estudantes de direito desde os primeiros dias de suas venturas acadêmicas. Uma vez infectado, o sujeito passa a desenvolver a doença do autoritarismo e o vírus multiplica-se em escala geométrica dentro de seu pensamento, possibilitando a transmissão comunitária com uma voracidade ímpar.
A doença do autoritarismo se manifesta pela prescrição, pela defesa, ou pela prática de atos judiciais que não guardem relação com os limites impostos pela Constituição para o exercício da função jurisdicional. Grosso modo, é pelo exame desses sintomas que se diagnostica a presença da enfermidade, tendo em vista a inexistência de qualquer exame preciso para a sua identificação.
A disseminação do vírus depende da capacidade de difusão do pensamento autoritário. A doutrina processual brasileira é, sem qualquer favor, a maior responsável pelo estado de pandemia. É pelas lições de nossos doutrinadores que somos infectados e adquirimos a doença.
Os pacientes, em geral, nem sequer têm conhecimento sobre a origem e a qualidade das ideias que passam a defender, em outras palavras, não sabem que defendem atos autoritários. Talvez o maior perigo seja o fato do vírus autoritário ser invisível. Nenhum doutrinador, responsável por sua disseminação em massa, alerta o leitor para o fato de estar infectado e de sofrer de autoritarismo. As ideias autoritárias, não raro desenvolvidas sob a insigne de “grandes novidades” ou “revoluções copernicanas”, são apresentadas sorrateiramente, como se fossem avanços, correções necessárias ao retrógrado legislativo, inovações salvadoras para o sistema de justiça, como a “bala de prata” contra os problemas que nos assolam (morosidade, corrupção, impunidade etc).
Um sintoma bastante comum do autoritarismo é a reação escandalizada da pessoa que recebe o diagnóstico. Via de regra, os “jurídicos” que sofrem do mal não aceitam bem a notícia. Revoltam-se e imputam àquele que realizou o diagnóstico as mais diversas pechas, como se a negação da realidade fosse uma forma de expiar os males da doença. Talvez isso se justifique pelo fato de que ser qualificado como autoritário em um regime democrático, como o nosso, representa um problema grave de legitimação das suas próprias convicções.
É necessário entender que o vírus gera efeitos diferentes em cada um dos hospedeiros. A doença do autoritarismo se verifica em graus variáveis, com uma escala enesimal de autoritarismos, desde os mais leves, até os mais agudos, porém, todos autoritários.
Embora cientistas no mundo todo estejam trabalhando em busca de uma vacina (=pré-imunizatória) contra o vírus autoritário, até o momento a única forma de imunização é através da cura.
A boa notícia é que ela já está disponível para todos os “jurídicos”, porém nem todos estão dispostos a “pagar o preço” por ela, isso porque ela não é espontânea, necessita de medicação frequente e meditação profunda por parte do paciente.
Grande parte do processo de cura é reconhecer que diversos fundamentos que o paciente defende, nos quais se alicerçam inúmeras certezas e convicções, estão equivocados. A imprestabilidade de tais fundamentos faz com que todos os edifícios de conhecimento que se ancoravam neles venham à ruína. Anos de estudos esfacelados pela derrota da pedra angular que os sustentavam.
É exatamente esse medo que impede que grande parte dos “jurídicos” se curem. Porém, é da ruína do equívoco que se abrirá a porta da cura e a possibilidade da construção de novos edifícios a partir de fundamentos constitucionais de limite ao exercício do poder. Aqueles que atingirem a cura estarão imunizados contra o vírus autoritário e poderão auxiliar outros que ainda não passaram por esse processo, bem como impedir que futuras gerações sejam infectadas, alertando-os sobre a forma de identificação do vírus e os cuidados profiláticos de desinfecção.
Em outras palavras, a cura apenas ocorre pelo esclarecimento e convencimento, não há outro caminho. Os autores desta coluna, semanalmente, renovam as pílulas antiautoritárias. Hoje, apresento aos leitores mais um remédio contra os poderes instrutórios de ofício.
III
Uma das reações mais comuns entre os infectados pelo vírus autoritário é a atribuição de liberdade para a atuação judicial. Eles defendem que o juiz teria um sem número de liberdades dentro do processo para atingir aquilo que denominam como sendo a finalidade do processo, qual seja, a decisão justa.
Um exemplo clássico é a atribuição ao juiz de poderes instrutórios oficiosos. Grande parte da doutrina nacional defende a “ampla liberdade” do julgador para a produção de prova de ofício no caso concreto. Em todas as concepções se verifica, tal qual um dogma, a premissa de que o juiz é o destinatário da prova, já que ela é utilizada para subsidiar a decisão final. Deste modo, a decisão somente será “justa” se o juiz puder buscar a “verdade” no caso, já que representa uma “imposição ética” tal conduta. Sustentam que o interesse do Estado-juiz, para a correta solução do litígio, encontra-se acima do interesse particular das partes. Mais do que isso, entendem que não há qualquer violação à garantia da imparcialidade, pois quando o juiz determina a produção da prova não tem conhecimento de a qual parte ela beneficiará. Pelo contrário, aduzem que se o juiz não determinar a produção de prova de ofício, permanecendo passivo, estará sendo parcial, pois estará defendendo o interesse daquele a quem a prova prejudicaria.
Há, ainda, aqueles que defendem que a liberdade probatória do juiz deve ser contida e somente poderá ser exercida de maneira complementar à atividade das partes, se ainda subsistir dúvida quanto a determinada questão de fato relevante para o julgamento. (Essa visão já recebeu críticas agudas. Ver: SOUSA, Diego Crevelin. #52 – Ainda e sempre a prova de ofício: o sepultamento silencioso dos poderes instrutórios supletivos do CPC/15, clique aqui).
Não concordo com as posições. Pelo contrário, elas representam traços do autoritarismo que grassa em nossa doutrina processual. A expressão “liberdade” conectada de qualquer modo com a expressão “juiz” repelem-se como água e óleo. Não se combinam de maneira alguma. São como ímãs do mesmo polo, que se afastam mutuamente. Elas representam um paradoxo linguístico que desafia as regras básicas de lógica interna do discurso (DIETRICH, William Galle. #21 – Observações lógicas sobre o instrumentalismo processual, clique aqui).
Em um Estado Democrático de Direito (legislado), o juiz está submetido à lei (em seu sentido amplo). O velho e conhecido império da lei (HARRINGTON, The commonwealth of Oceana, 1956). Esse limite é imposto pela própria Constituição em diversas garantias contrajurisdicionais, como a legalidade (art. 5º, II, da CF), o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF), direito de ação e acesso à jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF), irretroatividade da lei penal (art. 5º, XL, da CF), direito à individualização da pena (art. 5º, XLVI, da CF), pressuposição de inocência (art. 5º, LVII, da CF) etc. É por isso que o juiz deve ser visto como um servo da lei, observando-a com fidelidade canina (COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPro #71 – O poder judiciário diante da soberania popular: o impasse entre a democracia e a aristocracia, clique aqui).
No processo, somente há loci de liberdade para as partes. Elas têm liberdade para alegar os fatos e fundamentos necessários para tutelar o seu direito/interesse, provar os fatos alegados, ajustar o procedimento em comum acordo. Assim, advogar que o juiz é livre para a produção de provas de ofício representa, em si, uma grave contradição em termos.
Como se sabe, os defensores dessa concepção de liberdade judicial partem das concepções do instrumentalismo e/ou do cooperativismo para subverterem a garantia de liberdade contrajurisdicional do processo em uma forma de empoderamento ad hoc do juiz, apropriando-se, retoricamente, de dispositivos constitucionais para tanto. Assim, dizem que o juiz deve ser livre na produção da prova porque somente desse modo poderá prover o atingimento de uma sociedade justa (art. 3º, I, da CF), através de suas decisões também justas. Desse modo, essa função “ativa” do juiz é premissa fundamental para essa linha de pensamento.
Já tivemos oportunidade de analisar em outro ensaio os problemas da concepção do processo justo (clique aqui). No particular, é necessário frisar que a imposição constitucional da neutralidade política do judiciário impede que os juízes realizem julgamentos por critérios de “justiça”, pois o justo encontra-se imerso nos domínios do sistema da moral e da política e somente se comunicam com o direito através do processo constitucional ou legislativo. Somente assim, o juiz promove a “sociedade justa” de que trata o art. 3º, I, da CF, julgando conforme as leis.
Essas considerações já são suficientes para determinar a inconstitucionalidade da suposta liberdade probatória por violação flagrante à garantia do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF). Porém, os problemas se acumulam, como veremos.
O juiz como destinatário da prova é dos maiores mitos autoritários construídos pelo publicismo processual. Tal concepção remonta a priscas eras e vem sendo repetida, tal qual um mantra, pela doutrina.
Pautar-se na premissa de que o juiz é destinatário da prova não explica “o que ela é”, “para o que ela serve” e a “quem a prova serve”.
A palavra prova é polissêmica e deve ser usada na sua concepção técnico-processual. A prova é a forma de ratificação da afirmação fática apresentada por uma das partes que se tornou controvertida pela resistência específica da outra. Trata-se, portanto, de uma investigação sobre a exatidão da afirmação da parte. Ela serve, por conseguinte, para a confirmação de uma afirmação negada (ALVARADO VELOSO, Adolfo Eduardo. Teoria general del processo: La prueba judicial – 1. ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Astrea, 2015, pp. 23-31). A prova não busca demonstrar a “verdade dos fatos” como defendido por boa parte da doutrina e positivado no art. 369, do CPC, pela simples razão de que a (re)construção da verdade é impossível (ROSSI, Júlio César. #38 – Garantismo processual versus “neoprocessualismo”: as iniciativas probatórias oficiosas são constitucionais?, clique aqui; ARAÚJO, André Luiz Maluf de. ABDPro #123 – A verdade no processo. Como ficam as fontes e o meio os meios de prova. Uma pequena reflexão, clique aqui).
Assim, por uma razão lógico-processual, o objeto da confirmação são as afirmações das partes (DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Fundamentos e inovações do Código de Processo Civil, 1. ed. – Belo Horizonte, São Paulo : D’Plácido, 2020, pp. 147 e 148). As provas não buscam a verdade (real, formal, possível, ou seja lá o qualificativo que se queira dar), mas apenas um juízo de confirmação sobre a probabilidade do acontecimento dos fatos conforme afirmado por uma das partes.
Não é difícil entender que a prova serve (=está a serviço) (d)a parte, seja para a confirmação ou para a não confirmação da asserção controvertida. Ouso dizer que o ente destinatário da prova, portanto, são as afirmações e não um dos sujeitos processuais. Porém, essa questão é o que menos importa na análise ora realizada.
Esse é um ponto relevante: aqueles que defendem que o juiz é o destinatário da prova escamoteiam um argumento subliminar. Eles tratam a prova como um objeto (esquema sujeito-objeto) capaz de aprisionar os fatos em estado bruto (tal como aconteceram). Veem a prova como uma verdadeira “coisa”, capaz de ser apropriada pelo juiz. Com isso, o juiz tem o “domínio” (=propriedade) sobre a prova, assim, sendo o seu dono, estaria justificado o poder para determinar a produção da prova oficiosas. Esse juiz, que goza de “privilégio cognitivo”, faz triunfar a figura do “juiz solipsista”, o “senhor dos sentidos” (STRECK, Lênio. Dicionário de Hermenêutica. Belo Horizonte : Letramento, 2017, p. 63-67), que resolve por si quando a verdade foi atingida, ou não.
Note-se que o juiz somente conhecerá das provas quando do julgamento da causa, momento no qual, analisando as afirmações controvertidas, verificará no bojo da instrução a existência, ou não, de confirmações de tais asserções para a formação de sua convicção.
IV
Um dos principais problemas dos poderes instrutórios é a violação à garantia da imparcialidade. Todos os doutrinadores infectados pelo vírus autoritário defendem que os poderes instrutórios não geram qualquer prejuízo à imparcialidade judicial, pois o juiz não sabe qual é o resultado (=produto) da prova determinada de ofício antes de sua produção. Com efeito, não poderia ele mesmo prever a quem a prova beneficiaria, se ao autor ou ao réu.
Sem razão seus defensores.
Eduardo Costa já demonstrou a ingenuidade do argumento (COSTA, Eduardo José da Fonseca. Algumas considerações sobre as iniciativas judiciais probatórias, Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, ano 23, n. 90, Belo Horizonte : Editora Fórum, abr./jun. 2015, pp. 154-156). Não há nenhum método eficaz para devassar o mundo intrapsíquico do juiz para investigar se suas intenções de produção de provas de ofício objetivam favorecer uma das partes ou descobrir a verdade. Assim, essa decisão é absolutamente incontrastável pela parte prejudicada pela prova. Seria, pois, uma decisão irrecorrível em seu mérito.
Seja como for, quando o juiz ordena prova à mingua de requerimento da parte só pode haver cinco resultados possíveis, verificáveis em abstrato: “1) prova de fato constitutivo do direito do autor; 2) prova de fato impeditivo do direito do autor; 3) prova de fato extintivo do direito do autor; 4) prova de fato modificativo do direito do autor; 5) prova de nada”. Se a dúvida do juiz recair sobre fato constitutivo do direito do autor, seria ele o único beneficiado, já que os resultados (2), (3), (4) e (5) revelam uma dilação probatória inútil, pois possibilitaria o julgamento de improcedência por ausência de provas, posto que favoreceriam ao réu. O mesmo raciocínio se aplica para a dúvida geral, hipóteses (1), (2), (3) e (4), o único beneficiado seria o autor. Caso a dúvida recaísse sobre a existência de fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor, apenas o réu seria beneficiado. Deste modo, os resultados (1) e (5) seriam inúteis, pois a demanda já poderia ter sido julgado procedente em favor do autor. “Em suma: a prova ex officio iudicis sempre favorece a parte que tinha o ônus de provar, mas não provou” (COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério, 1. ed. – Salvador : Editora JusPodivm, 2018, pp. 171/172).
Assim, é lógico compreender que mesmo não sabendo o produto final da prova ordenada de ofício, o juiz tem plena visão quando de sua determinação, sobre quem potencialmente será beneficiado no caso concreto. Um aprofundamento aqui é necessário. O art. 357, do CPC, exige que o juiz defina na decisão de saneamento e organização do processo os pontos fáticos (=afirmação sobre fatos) controvertidos, o ônus de prova sobre cada ponto e os meios de prova especificamente. Sabendo quais são os pontos fáticos e os ônus probatórios, é claro como o dia que o juiz tem conhecimento sobre quem é a parte potencialmente beneficiada por sua iniciativa probatória no momento em que ordena a sua produção. Partindo do ônus probatório fixado, sob o ponto de vista do magistrado que ordena a prova, a instrução visará ou (a) desincumbir o autor do seu ônus ou (b) desincumbir o réu do seu ônus. Em ambos os casos, o juiz se colocará ao lado de uma das partes e, por consequência, como adversário da outra.
Verifica-se que, seja pela análise ex-ante ou ex-post da produção da prova, a iniciativa do juiz promoverá a defesa de uma das partes, violando, assim, a sua imparcialidade (subjetiva) por aderir ao interesse de uma delas.
Um dos argumentos mais assustadores e que grassa entre os que padecem da doença do autoritarismo é a proposição de que juiz que se omite em determinar a prova de ofício está sendo parcial por beneficiar a parte a quem a prova prejudicaria.
Com o devido respeito, a assertiva não se sustenta no âmbito da linguagem. Os seus defensores descrevem o comportamento judicial IMPARCIAL, mas chamam-no de PARCIAL. É a deturpação completa da relação significante-significado e demonstra problemas graves de semiótica da colação. Isso revela, na verdade, a utilização de uma linguagem privada, que não faz parte daquela que compartilhamos socialmente, que pode ser representada como uma novilíngua para feliz expressão de George Orwell.
A análise do problema da imparcialidade judicial necessita do exame sobre sua perspectiva objetivo-funcional, chamada entre nós de impartialidade ou terceiridade (terzità). A noção de impartialidade é muito simples de ser compreendida, é o dever do juiz em abster-se de realizar qualquer comportamento de parte. Simples assim.
Alguns poderiam dizer que “a lei atribui a função probatória ao juiz (art. 370, do CPC), logo ele possui poder suficiente para a iniciativa oficiosa”. A análise aprofundada acerca das inconstitucionalidades do art. 370, do CPC são tantas que não teria tempo para me dedicar detidamente ao trabalho. Saliento, no entanto, que a cláusula do devido processo legal encerra em si um limite ao exercício do poder jurisdicional (garantia contrajurisdicional), mas também um obstáculo ao próprio legislador, impedindo que crie leis incompatíveis com a garantia constitucional do art. 5º, LIV, da CF. Assim, a previsão legal dos poderes instrutórios encerra, em si, a extrapolação dos limites impostos pela Constituição ao Poder Legislativo. Com efeito, a existência de iniciativa probatória de ofício pelo juiz viola a divisão de funções entre os sujeitos processuais, coloca o juiz ao lado da parte e deturpa completamente a sua função de julgamento. A iniciativa de prova é sempre um ato de parte e esse ato não sofre mutação e passa a ser “judicial” pelo simples fato de ser proferido pelo juiz. Ao contrário, revela que o juiz se retirou do seu locus impartial e assumiu flagrante papel de parte. No entanto, esse argumento sequer passa pela análise do pensamento antagonista.
V
É necessário entender que a iniciativa probatória decorre diretamente do devido processo legal, que deve ser entendido como uma garantia de liberdade contrajurisdicional em favor da parte. É um limite para a atuação do Poder Judiciário. Assim, a própria produção probatória vale-se da macrogarantia do processo para encetar no procedimento diversas microgarantias de liberdade em favor das partes. É em decorrência da liberdade positiva (freedom) que as partes têm o direito de produzir todas as provas (confirmações) com relação às suas afirmações controvertidas ou deixar de produzir aquelas que entendam desnecessárias. Representa uma posição jurídica positiva-ativa de autonomia e autodeterminação. A outra face da moeda é a “liberdade” negativa (liberty), que exprime uma posição jurídica negativa-passiva de ausência de intervenção, ausência de interferência e proteção contra o abuso de poder. Nessa noção, a parte tem o direito de não ser molestada pelo juiz no manejo de atos probatórios oficiosos, já que em decorrência da liberdade positiva, somente as partes controlam a iniciativa para a produção probatória no processo (COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: Garantia de liberdade [freedom] e “liberdade” [liberty], clique aqui).
Sem qualquer pretensão de esgotar o tema, o que seria praticamente impossível neste espaço, essas são as principais razões de ordem lógico-processual (e por conseguinte universais) e de ordem constitucional para demonstrar os equívocos da defesa dos poderes instrutórios do juiz, bem como para sacramentar as inconstitucionalidades do art. 370, do CPC, que, por obra dos infectados pelo vírus examinado, continua positivada em nosso código de procedimento a iniciativa probatória de ofício. Espero que isso sirva de remédio para as mentes ávidas pela cura!
Imagem Ilustrativa do Post: Martelo, justiça // Foto de: QuinceMedia // Sem alterações
Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/martelo-leilão-justiça-legal-juiz-3577254/
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/