#25 - DESMISTIFICANDO O PROCESSO JUSTO: PELA RECONSTRUÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

12/08/2019

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

 1

O garantismo processual, a partir da doutrina de Eduardo José da Fonseca Costa[1], propõe a leitura da cláusula do devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF) como uma instituição de garantia de liberdade do cidadão para a limitação do exercício do poder jurisdicional. Trata-se, em outras palavras, do processo em si considerado. Ele passa a ser visto como uma instituição autônoma e diversa da ação e da jurisdição e que tem na limitação do exercício do poder a sua substancialidade constitucional de proteção da parte com o arbítrio do Estado.

Para alguns, a visão pode parecer nova, contudo não é. Ela foi cunhada a partir do processo civilizatório ocidental, com especial destaque para a Magna Charta Libertatum e o nascimento da cláusula due processo of law (1215), passando pelo desenvolvimento teórico do Estado moderno e contenção do poder estatal pela estruturação do direito fundamental de liberdade[2] e o estabelecimento do governo das leis (rule of law), tudo temperado com sangue, suor e lágrimas, nomeadamente na Revolução Gloriosa, Revolução Americana, Revolução Francesa, dentre outras.

Chega-se com isso à definição do Estado de Direito estruturado a partir das liberdades individuais. Esta brevíssima visão que apresento – que peca claramente pela superficialidade –, tem por finalidade a demonstração introdutória de que a construção do processo como instituição de garantias de liberdade contrajurisdicionais decorre de uma produção histórica de fluxos e contrafluxos, de avanços e retrocessos, de testes de tentativa e erro próprios do processo civilizatório, que no direito chamamos de tradição.

Por conseguinte, ela não é um favor que nos foi concedido pelo Constituinte de 1988. Pelo contrário, essa noção de processo foi adquirida a partir de muita luta de nossos antepassados, caracterizando uma importante garantia de liberdade contra o arbítrio estatal.

O que os garantistas processuais realizam hoje nada mais é do que o resgate dessa tradição à luz do texto constitucional, ou seja, é a declaração firme e contundente de que o PROCESSO representa uma garantia fundamental de liberdade e que por essa razão, nomeadamente, o Estado não pode manietá-lo da maneira que bem entende para o atingimento de “fins” sociais, econômicos, políticos, religiosos etc. Essa liberdade do cidadão (o processo), conjugada com tantas outras, como o contraditório, ampla defesa, publicidade, imparcialidade, fundamentação, legalidade etc, encerra o limite do próprio Estado (e de la suya mano peluda).

Vendo o fenômeno processual em uma rotação de 360º, pode-se dizer que para o Juiz ele representa apenas limite, como observamos acima. Para as partes ele é (i) liberdade positiva (freedom) pelas inúmeras possibilidades de ação e abstenção previstas no procedimento legalmente estabelecido, (ii) liberdade negativa (liberty) diante da garantia de limitação do poder estatal em não atuar fora do procedimento e (iii) limite para a própria parte, como forma de impor o não conhecimento de alegações, questões, direitos ou pretensões apresentadas intempestivamente (= com o decurso do prazo), ou fora das hipóteses legais. O limite ora salientado na hipótese (iii) representa o exercício da liberdade negativa (item ii) da parte adversa, ou seja, é a restrição imposta para a cognição judicial nos casos de intempestividade e/ou de atos realizados fora das hipóteses legalmente estabelecidas na aplicação da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Significa, portanto, o exercício da garantia de uma parte contra a outra.

Em resumo muito apertado, essa é a essência do processo, sinônimo do devido processo legal constitucionalmente previsto no art. 5º, LIV, da CF.

No entanto, há anos se produz doutrina constitucional e processual no Brasil (e também no exterior), ignorando-se complemente a noção acima. Na verdade, a doutrina brasileira largamente prefere omitir e esquecer a cláusula constitucional do devido processo legal e substituí-la por outra eleita ao bel prazer de seus adeptos, qual seja, o “processo justo”, como veremos a seguir.

 

2

A noção do “processo justo” é debitária de dois movimentos siameses, quais sejam, o neoconstitucionalismo e o instrumentalismo processual.

Já tive a oportunidade de me debruçar sobre os contornos do movimento instrumentalista (clique aqui) e demonstrar a perversidade de sua finalidade (clique aqui). Para o que interessa no momento, o instrumentalismo se destaca como uma epistemologia processual que confunde o processo com a jurisdição, pois coloniza a garantia a partir do exercício do poder.

É clássica a noção de que o instrumentalismo toma o processo como um instrumento da jurisdição[3] para que o juiz realize os objetos do Estado. Trata-se de uma doutrina estatalista e empoderadora, que não vê, a priori, limites ao exercício do Poder Jurisdicional, possibilitando sua atuação fora dos limites estabelecidos na lei, uma vez que abre a possibilidade para correções metajurídicas do direito pelo juiz, que deve exercer sua capacidade de homem extraordinário e captar os influxos sociais para julgar de acordo com a maioria (juiz antena).

O neoconstitucionalismo, por sua vez, é um movimento que nasce a partir da Segunda Guerra Mundial e que se popularizou no Brasil, juntamente com o instrumentalismo, a partir da redemocratização[4].

A importância do neoconstitucionalismo para a adoção, por muitos, da noção do processo justo é gritante. Seus defensores entendem que há uma obrigação moral para os juízes de aplicarem os sistemas jurídicos de seus Estados pela presunção de que estes sejam justos. Para tanto, devem interpretar os “valores e princípios constitucionais” por meio de teorias “político-morais”, que proporcionem a criação de um novo Direito, apto aos novos desafios do constitucionalismo moderno e da realidade do século XXI, podendo ser considerado livre do juspositivismo.

Segundo os neoconstitucionalistas, o modelo antagônico de juiz ao propagado por eles seria o “juiz boca-da-lei”, o que seria o resumo da visão positivista do direito. Com o devido respeito aos seus seguidores, trata-se de evidente reducionismo de uma das correntes teóricas mais importantes da jusfilosofia. O modelo de juiz boca-da-lei está ligado à Escola da Exegese (século XIX) após à Revolução Francesa, como forma de engessar a interpretação judicial, nomeadamente das fórmulas legislativas duvidosas, pelo simples motivo de que os juízes franceses eram vinculados diretamente à então monarquia deposta do “Ancièn Regime”. No entanto, o desenvolvimento teórico do positivismo não parou na escola da Exegese, como todos sabemos. Apenas para citar as correntes mais importantes, temos o positivismo normativista de Kelsen, o grande debate entre o positivismo inclusivo de Hart e o positivismo exclusivo de Raz e Shapiro, o positivismo normativo de Waldron, dentre outros.

A retórica da necessidade da abertura moral para o ajuste do direito se dá por um fundamento muito mais emocional do que racional. Afirmam os partidários do neoconstitucionalismo que o direito nazista era positivista e, por conseguinte, foi o positivismo jurídico um dos culpados pelos horrores do Holocausto. Esta versão, conhecida por “reductio ad Hitlerum” , embora altamente propagada nas salas de aula das faculdades de direito e nos livros com as premissas neoconstitucionalistas, é flagrantemente falsa. Como demonstra Dimitri Dimoulis, um dos principiais ideólogos do nacional-socialismo, Carl Schmitt, redigiu um trabalho em 1933 no qual acusa o positivismo de todos os males do mundo jurídico, afirmando que o ordenamento nacional-socialista baseia-se no “axioma jurídico de que a lealdade, a disciplina e a honra não podem ser separadas da direção unitária (Führung)”. Esse axioma era incompatível com o juspositivismo, que correspondia ao liberalismo, tutelando direitos individuais e garantindo a separação dos poderes em detrimento dos interesses da comunidade nacional[5]. Ao invés de albergar o positivismo, o nazismo teve que erigir um edifício anti-positivista, que estabeleceu-se claramente pela interpretação das leis e respectiva negativa de vigência a inúmeras delas, “segundo o espírito do Führer”. Há clara incompatibilidade teórica e prática entre o positivismo do século XX, nomeadamente aquele de matriz kelseniana e o direito entabulado no regime totalitarista alemão. Seguir acusando o positivismo de cúmplice dos horrores daquela época demonstra desconhecimento da história ou simples maldade histriônica.

A partir das premissas neoconstitucionalistas, surgiram dois “novos movimentos” na doutrina processual, quais sejam, o neoprocessualismo[6] e o formalismo-valorativo[7]. Embora haja disputa doutrinária entre eles, ambos bebem da mesma água e visam à mesma coisa, a conformação do “processo justo”.

O que os neoconstitucionalistas querem, na verdade, é liberar o juiz das amarras da lei e da constituição para que possa construir criativamente o direito a partir dos valores e princípios que julga estarem previstos na Carta Magna, mesmo que para isso tenha que ultrapassar os limites funcionais de Poder, invadindo as esferas legislativa e executiva.

É nesse caldo cultural dos irmãos siameses neoconstitucionalismo e instrumentalismo que nasce a ideia do processo justo.

 

3

Para possibilitar um approach didático ao tema, elegi um doutrinador para debater a questão. Daniel Mitidiero afirma que o art. 5º, LIV, da CF estabelece um “direito fundamental ao processo justo”, pois embora a constituição tenha falado em “devido processo legal” ele sugere que a expressão é criticável por dois motivos:

“Em primeiro lugar, porque remete ao contexto cultural do Estado de Direito (Rechtsstaat, État Légal), em que o processo era concebido unicamente como um anteparo ao arbítrio estatal, ao passo que hoje o Estado Constitucional (Verfassungsstaat, État de Droit) tem por missão colaborar na realização da tutela efetiva dos direitos mediante a organização de um processo justo.

Em segundo lugar, porque dá azo a que se procure, por conta da tradição estadunidense em que colhida, uma dimensão substancial à previsão (substantive due process of law), quando inexiste necessidade de pensá-la para além de sua dimensão processual no direito brasileiro. De um lado, é preciso perceber que os deveres de proporcionalidade e de razoabilidade não decorrem de uma suposta dimensão substancial do devido processo, como parece à parcela da doutrina e como durante bom tempo se entendeu na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Aliás, mesmo no direito estadunidense semelhante entendimento não se configura correto. Os postulados da proporcionalidade decorrem dos princípios da liberdade e da igualdade – as posições jurídicas têm de ser exercidas de forma proporcional e razoável dentro do Estado Constitucional. De outro, importa ter presente que não é necessário recorrer ao conceito de substantive due process of law “com o objetivo de reconhecer e proteger direitos fundamentais implícitos”, na medida em que nossa Constituição conta expressamente com um catálogo aberto de direitos fundamentais (art. 5º, § 2º), o que desde logo permite a consecução desse mesmo fim: reconhecimento e proteção de direitos fundamentais implicitamente previstos e mesmo não previstos na Constituição (conceito material de direitos fundamentais).”

E prossegue:

“Eis aí as razões pelas quais prefere a doutrina falar em direito ao processo justo (giusto processo, procès équitable, faires Verfahren, fair trial) – além de culturalmente consentânea ao Estado Constitucional, essa desde logo revela o cariz puramente processual de seu conteúdo.”[8]

Trocando em miúdos, o direito ao processo justo visa assegurar a obtenção de uma decisão justa. Ele é o meio para assegurar a pretensão à justiça e a pretensão à tutela jurídica.

Logo no primeiro argumento, verifica-se um equívoco que merece ser trazido à lume. Supõe o autor que o “Estado Constitucional” deu ao juiz poderes para romper limites legalmente estabelecidos a partir da realização imediata de “valores”. Se assim for, este “Estado Constitucional” tem o condão de agredir a própria Constituição da República de 1988 e todo constitucionalismo ocidental, pois o ser constitucional visa à imposição de LIMITES ao Estado e assegurar direitos fundamentais aos cidadãos brasileiros.

Ademais, como bem adverte Igor Raatz (clique aqui), “A subtração do termo legal, componente da cláusula do devido processo, representa uma tentativa doutrinária e jurisdicional de execução imediata de valores. Representa, com efeito, uma porta de entrada para a “tirania dos valores”. A subversão do direito infraconstitucional por um pseudodireito jurisdicional se dá capturando a garantia do indivíduo contra o poder jurisdicional, para transformá-la em instrumento do poder jurisdicional. A expressão ‘processo justo’ é um subterfúgio hermenêutico para conferir ao juiz maiores poderes, ‘plasmando extralegalmente o procedimento’”.

Esse suposto “Estado Constitucional” tratado por Mitidiero vê o processo não mais como uma garantia, mas como um instrumento a serviço desse Estado. E se o processo é ferramenta da jurisdição, o juiz deve dispor dele como bem entender, desde que se utilize do pretexto de “colaborar na realização da tutela efetiva dos direitos”. A visão ora em tela é completamente contraditória com o conteúdo da cláusula do devido processo legal.

A utilização de fórmulas como “proporcionalidade” e “razoabilidade” sem a determinação de seus significados amoldam-se aos enunciados performáticos de J. L. Austin, que, ao invés de explicar ou descrever, servem apenas para auxiliar e justificar uma ação, ou seja, eles apenas realizam. É o que se vê no texto de Mitidiero. Não se sabe o que ele quer dizer com tais expressões. Elas, em realidade, integram o rol retórico de seu argumento para que o juiz negue validade à Constituição e às leis e possa colocar em seu lugar aquilo que preencha esse tal “Estado Constitucional” de descrição inexistente. Ou seja, é um grande convite ao arbítrio.

O processo justo caminha de mãos dadas com o discurso da desformalização. Seus defensores necessitam se ver livres das amarras da lei para que possam empoderar o juiz. Para tanto, é indispensável que as formas procedimentais previstas em lei sejam relativizadas, deixando de ser aplicadas aquelas que trouxerem embaraço para o atingimento da decisão justa. As garantias do contraditório e da fundamentação são vistas para eles como figuras imunizantes do arbítrio judicial, soluções sanatórias contra o poder absoluto.

Tal premissa ao garantista processual representa uma flagrante ofensa ao devido processo legal. As formas procedimentais forjadas em lei decorrem da matéria-prima processual historicamente construída. Essas formas projetam microgarantias nos diversos loci de incidência no espraiar do procedimento.

O contraditório e a fundamentação não podem servir como reforço do comportamento arbitrário de tal doutrina. Essas garantias não representam imunização ou legitimação da decisão judicial, muito antes disso, elas forjam os limites do exercício do poder em decorrência da liberdade das partes.

A desformalização serve, ainda, como fundamento teórico para a flexibilização judicial do procedimento, figura inexistente de modo geral no nosso ordenamento jurídico, porém amplamente defendida pelos fautores do processo justo.

Voltando especificamente à citação de Mitidiero. O professor da UFRGS revela com clareza solar sua intenção prescritiva (ou seja, construção de uma realidade virtual e não prevista no ordenamento jurídico), ao recorrer ao argumento de autoridade de que a doutrina estrangeira, como grande parte da brasileira, prefere a utilização de fórmulas congêneres ao processo justo, como são os casos de giusto processo, procès équitable, faires Verfahren, fair trial.

Em texto publicado nesta coluna (acesse aqui) já analisei, an passant, a apropriação abusiva da doutrina brasileira acerca da cláusula giusto processo. A leitura desavisada pode levar o leitor a entender que na Itália a própria constituição estabelece o “direito ao processo justo”, como proposto por Mitidiero. Inobstante tenhamos vozes na Itália que assim pensem, como Comoglio e outros, é indispensável notar que o texto constitucional italiano, no art. 111, estabelece a submissão da jurisdição ao “giusto processo regolato dalla legge”.

A tradução do termo sem a devida adequação linguística prega peças com efeitos práticos gravíssimos. A expressão “giusto” na língua italiana possui significado polissêmico, sem que o significante “justo” em língua portuguesa atenda de modo correspondente. Como demonstra Nelson Nery Jr., a partir da lição de Vincenzo Vigoriti, o art. 111 da Constituição italiana inspirou-se diretamente na cláusula do due process of law anglossaxão, sendo que o termo “due” sugere as ideias de processo regular ou correto, razão pela qual deveria ser traduzido para o italiano como “giusto[9]. O mesmo pode ser dito sobre a cláusula “fair trail”. A expressão “fair” possui inúmeros significados, sendo inúmeras vezes utilizada como sinônimo de regular e adequado.

O “processo justo” não passa de um enunciado performático[10], um slogan, pois não pode ser submetido a testes de validade, uma vez que não é verificável como verdadeiro ou falso, diante da falta de descrição ou de registro de algo (ao contrário do que acontece com os enunciados constatativos). Sua função é simplesmente realizar algo, mesmo com conteúdo zero. Trata-se de uma velha estratégia daqueles que buscam conferir ares de juridicidade para aquilo que é simplesmente panfletário. “Os termos frequentemente utilizados com função performática são interesse público, conveniência e oportunidade, livre convencimento motivado, proporcionalidade, vontade da lei, princípio republicano e justiça. Em regra, esses conceitos são usados para conferir verniz normativo a decisões ativistas. Julga-se de acordo com a subjetividade do intérprete e, para mascarar esse voluntarismo, os enunciados performáticos são lançados como elemento de suposta normatividade ao decisum.”[11]

O tema ora apresentado merece uma análise muito mais aprofundada, razão pela qual o leitor deve tomar os argumentos lançados até o momento como uma introdução ao debate.

No entanto, as críticas aqui apresentadas permitem uma analogia interessante com a distopia 1984 de George Orwell. A expressão “processo justo” tomada por Mitidiero e pela quase unanimidade da doutrina representa um exemplo típico de “novilíngua”, um idioma fictício, criado com o objetivo de restringir o escopo do pensamento através do controle da linguagem. Utilizando os termos da própria “novilíngua”, a expressão “processo justo” representa um “duplipensar” em si, ou seja, um pensamento duplo antagônico e coordenado, um paradoxo apenas possível na imersão dessa ficção, representa um “saber-se que está errado” e um “convencer-se que está certo”. Nesse duplipensar, o processo é uma garantia que nada garante à parte, garante apenas a força do Estado, a potência ilimitada do Poder sob a imagem de uma inalcançável justiça material, satisfaz o julgo do magistrado bem intencionado sob a astúcia da parte. Ainda em Orwell, o “processo justo” tem por premissa uma forma de “polícia do pensamento”, que tem por inimigo todo agir indesejado (a partir da perspectiva judicial) das partes, como forma de combater o “crimideia”, todo e qualquer pensamento ilegal ou perigoso existente na mente da parte. Assim, o juiz passa a atuar com o poder-dever de “crimideter”, ou seja, paralisar por instinto qualquer pensamento perigoso, que fuja ao escopo do “processo justo”. Na própria noção de “crimideter” está a incapacidade da autoridade em verificar os seus erros de lógica, de não compreender os argumentos mais simples e hostis contra a concepção de “processo justo” e de se aborrecer e enojar com qualquer “trem de pensamento” que tome rumo herético.

Esse agir fica evidente em passagem da obra de Cândido Rangel Dinamarco, ferrenho defensor do instrumentalismo, que embora reconheça o caráter garantístico do processo na CF, acentua a existência de “severos ditames preordenados ao processo justo e equo”, como forma de assegurar a justiça no caso concreto[12]. Eis o duplipensar que tanto mal faz ao devido processo legal.

A doutrina do “processo justo” funciona como um “Ministério da Verdade”, encarregado de apagar a história ou desvirtuá-la de modo a deixá-la de acordo com a vontade do Poder. É exatamente isso que se passa com o conteúdo do devido processo legal. Os adeptos do “processo justo” apagaram a garantia historicamente forjada pelo devido processo legal e substituíram o significante por outro que traz em si um poço de vaguidão ímpar para auxiliar na moldagem do processo para aquilo que eles desejam que seja, mesmo contra as disposições legais ou constitucionais.

 

4

A finalidade última do processo justo, como já referido acima, é o atingimento de uma decisão justa, ou seja, que preste referência à justiça material, mesmo que contra o direito. O conceito de justiça material vem sendo reformulado durante os tempos e, atualmente, além de ser caracterizado pela escolha entre o binômio certo e errado, próprio do sistema da moral, passou a sofrer influências dos domínios da economia pela doutrina da análise econômica do direito, que impulsionou entre nós o consequencialismo jurídico, passando a limitar o jurídico pelas consequências econômicas (binômio lucro e prejuízo) dessa decisão.

Assim, os adeptos dessa teoria enxergam na cláusula do processo justo um direito fundamental ao julgamento com justiça.

O maior problema dessa construção é a abertura que promove do sistema jurídico, que funciona a partir do binômio lícito e ilícito, para a sua colonização por outros sistemas, como o da moral e o da economia. Aos poucos, o jurídico vai ruindo e sendo substituído por seus agentes colonizadores, até o ponto em que não se sabe mais qual é o referencial para a decisão do juiz.

Os garantistas processuais, cultores da noção histórica do devido processo legal, pelo contrário, advogam a necessidade de preservação do sistema jurídico pela observância da constituição e das leis. Dentre os garantistas, encontraremos adeptos do positivismo jurídico (em suas diversas feições), da crítica hermenêutica do direito, do pós-positivismo (em especial o mülleriano) dentre outros. Nenhum deles advogará a tese de que o juiz deve seguir os preceitos da Escola da Exegese, contudo todos estarão de acordo sobre a limitação do poder estatal a partir da constituição e das leis. Com efeito, não admitem, no sistema vigente, o julgamento de casos a partir de juízos de justiça material.

A independência judicial, para os garantistas, é um ganho civilizatório sem precedentes. Representou o descolamento e a autonomia do poder jurisdicional na interpretação das normas jurídicas, para bem executar o dever da contra-majoritariedade, que é tão cara ao exercício da jurisdição. Deste modo, a independência judicial, além de impedir qualquer forma de pressão externa sobre o magistrado, permitindo um julgamento isento, possibilita ao juiz o cumprimento da obrigação de julgar conforme a lei. Não é por outro motivo que a expressão “processo” é antecedida pela expressão “devido” (obrigatório) e sucedida pela expressão “legal” (conforme a lei). Assim, a contra-majoritariedade da jurisdição acarreta a necessidade de observância do direito (e de seu binômio lícito e ilícito), sem qualquer intervenção de outros sistemas, como a moral, a política, a economia, a religião etc. Essa “fidelidade canina” à lei, blinda o juiz dos influxos e contrafluxos da maioria de ocasião em determinado caso. Ao magistrado não importa a opinião pública ou publicada a respeito de um caso que esteja sob sua análise, já que responde apenas e tão somente ao direito. Caberá ao legislativo realizar o diálogo com a maioria para as mudanças legais e constitucionais que a sociedade exige.

O mito do “processo justo” representa a própria deposição do conceito e da garantia do (devido) processo (legal) como conhecemos. É, pois, um predador do direito em si, ao realizar a sua abertura para a colonização de outros sistemas. Representa uma doutrina que visa empoderar a jurisdição para além dos limites legais e constitucionais, como se nela estivessem as soluções dos nossos problemas. Muito dizem que o século XXI é o século dos tribunais. Mais uma vez, depois dos séculos do executivo e do legislativo, essa doutrina aposta em um outro poder. Me parece que a aposta já está perdida. A própria jurisdição, ao depor contra o direito a partir da noção do justo (materialmente falando), realiza o papel de lobo de si mesma. No limiar da segunda década do século XXI, posso dizer que se continuarmos a apostar na fantasia de século da jurisdição, antes mesmo do final do centênio, não teremos mais poder jurisdicional como conhecemos.

O garantismo processual se coloca nessa disputa ao lado das noções de democracia e república, na defesa das liberdades individuais e dos direitos fundamentais historicamente conquistados. No processo civilizatório, não existem fórmulas mágicas e tampouco agentes com capacidades superiores que possam realizar o bem e o justo. É por isso que a reconstrução do devido processo legal, como instituição de garantia de liberdade contrajurisdicional, é essencial para permitir o desenvolvimento da nossa sociedade sem julgos arbitrários ao poder. Está aberto o debate! Que sirva, ao menos, para a reflexão de todos nós.

 

Notas e Referências

[1] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Disponível em <encurtador.com.br/arOV7>, consulta realizada em 05/08/2019. COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPro #8 – Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdicional. Disponível em <encurtador.com.br/eiBKY>, consulta realizada em 05/08/2019. COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo: garantia de liberdade [freedom] e garantia de «liberdade» [liberty]. Disponível em <encurtador.com.br/itPV1>, consulta realizada em 05/08/2019.

[2] Especialmente pelas obras de Hobbes, Locke, Rousseau, Reid e Kant, inobstante as diferenças entre tais pensadores.

[3] DELFINO, Lúcio. O processo é um instrumento da justiça? (Desvelando o projeto instrumentalista de poder). Disponível em <encurtador.com.br/rFKY6>. Acesso realizado em 01/08/2019.

[4] Infelizmente, pela brevidade do presente texto, não tenho possibilidade de analisar as suas bases fundamentais e tampouco suas correntes. No entanto, indico para o leitor interessado a interessante obra de Bruno Aguiar Santos que explora, com bastante didática, os problemas desta doutrina. SANTOS, Bruno Aguiar. Neoconstitucionalismo: a ideologia fadada ao fracasso do arbítrio. Salvador : Editora Juspodivm, 2018.

[5] DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurídico: teoria da validade e da interpretação do direito – 2. ed., Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2018, p. 171.

[6] CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo, in FUX, Luiz, NERY JR. Nelson e WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo e Constituição: Estudos em homenagem ao professor José Carlos Barbosa Moreira – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 662/683.

[7] OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Do formalismo no processo civil: proposta de um formalismo-valorativo, 4. ed. – São Paulo : Editora Saraiva, 2010.<

[8] MITIDIERO, Daniel. Direito Fundamental ao Processo Justo, in Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 45 – Nov-Dez/2011, p. 23 e 24.

[9] Nelson Nery Jr. Princípios do Processo na Constituição Federal [livro eletrônico], 2. ed. em e-book baseada na 12. ed. impressa, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2016, item 8.1. O direito ao devido processo legal.

[10] J. L. Austin, How to do things with words, Harvard University Press, 1975, p. 6.

[11] ABBOUD, Georges. Processo Constitucional Brasileiro [livro eletrônico], 2. ed., São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, item 10.2.7. Ativismo judicial se manifesta por meio de enunciados performáticos. Neste mesmo sentido: ABBOUD, Georges; SANTOS, Maira Bianca Scavuzzi de Albuquerque. A relativização da coisa julgada material injusta: um estudo à luz da teoria dos enunciados performativos de Jonh L. Austin, in: Revista de Processo vol. 284/2018, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, out. 2018, p. 77/113.

[12] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, 4. ed., São Paulo : Malheiros Editores, 2004, p. 180/183.

 

 

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