Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho
O problema do ônus da prova é um problema de aplicação do Direito.
Leo Rosenberg
1. Um ponto de partida: a questão da “verdade”.
Não é segredo algum que o estudo da prova constitui um daqueles temas que ao mesmo tempo em que é um dos mais complexos, interessantes e frutíferos do direito processual, também é um dos menos estudados com o aprofundamento necessário pela ciência do Direito.
Por ser problemática tanto a sua compreensão quanto sua aplicação é que se exige do jurista uma enorme responsabilidade ao pretender lidar com os fundamentos e fenômenos do direito probatório.
A prova em seu sentido amplo é mais que um direito; é verdadeira garantia do cidadão. Não possui apenas um caráter declaratório, uma espécie de intenção ou escopo; é algo mais concreto e imprescindível para o desenvolvimento da ciência processual e, portanto, assecuratório do exercício do devido processo legal e seus consectários lógicos (contraditório e ampla defesa), como expressamente estabelece a Constituição Federal.
Prova, destarte, possui um liame etiológico com a fundamentação/motivação das decisões (judiciais e/ou administrativas), resultando disso o dever das partes e corolário do processo exigir que o órgão julgador se manifeste sobre as provas produzidas, de modo que tais premissas sirvam de fundamento à decisão.
Toda a discussão sobre direito probatório deve enfrentar a noção de que o acertamento dos fatos em um caso concreto presta-se ao atingimento da “verdade”.
Não se discute se a verdade descoberta é fruto de autoritarismo ou não no direito processual. Praticamente todos concordam que não existe uma possível verdade à espera de ser encontrada ou que o objetivo do processo seja busca da verdade, o que leva à retórica e conceitos performáticos indesejáveis (verdades real e formal).
No processo, a verdade tem implicações no campo procedimental na medida em que o caráter dialético e dialógico deste conduzirá a uma decisão. O argumento das forças, em contraposição no processo, levará a algo capaz de construir uma verdade.
Busca-se na “verdade”, por um lado, algo correspondente à coerência ou experiência e, por outro, alguma coisa convencional decorrente da natureza da linguagem (signos) o que nos faz concluir que (i) não há verdade à mingua de intérpretes e linguagem; e (ii) não é possível falar-se em verdade objetiva/única/absoluta.
Não se desconhece que, em razão do exercício do poder estatal – jurisdição – há uma atuação do órgão julgador, a qual o leva não só à participação na relação jurídico-processual na qualidade de sujeito imparcial, recoltando as provas produzidas pelas partes e proferindo decisões (função típica), mas também – e aqui o problema do instrumentalismo processual – influenciando diretamente na dinâmica do processo, produzindo provas de ofício ou sujeitando-se a interferir na eficácia do ônus da prova (função atípica), sempre a pretexto de descobrir uma verdade última, a fim de entregar uma decisão “justa”, fruto de um julgador preocupado com esse valor.
Esse “recurso” à busca da verdade “escondida”, “tolhida” ou “contida”, em razão da “insuficiência” da atuação das partes, teria o condão de legitimar o exercício de poderes instrutórios oficiosos[1], nada mais servindo, data venia, do que uma couraça para autenticar a atividade julgadora e, com isso, revelar a quebra da garantia constitucional da imparcialidade[2].
Nada mais místico do que carrear ao órgão julgador a busca pela “verdade material/real”, assumindo este o papel de operador material do processo, por agir oficiosamente sempre na busca por sua Justiça.
Ora, a finalidade do processo é disciplinar por meio de regras seguras e ao encargo das partes os meios de provas admitidos para se desincumbirem de seus ônus argumentativos, delimitando o produto da controvérsia sobre a qual se reclama uma decisão.
As regras da prova são limites à busca arbitrária da “verdade”.
2. Ônus da prova: algumas notas
O Código de Processo Civil de 1.973 estabelecia, como embasamento lógico, o tratamento isonômico constitucionalmente previsto (art. 5º, II da Constituição Federal) e racional, cabendo à parte autora provar os fatos que constituem o direito por ela afirmado, enquanto ao réu impõe-se demonstrar situações impeditivas, modificativas ou extintivas do(s) pleito(s) formulado(s).
A repartição funcional demonstra que: (i) a prova produzida pertence ao processo, servindo aos sujeitos processuais indistintamente; (ii) a atividade probatória possui um vínculo em relação à participação dos sujeitos processuais, por meio da garantia do contraditório (uma, mas não suficiente, condição de legitimidade do provimento).
O ônus da prova (sua distribuição) acaba por desempenhar dupla função: (i) estrutura a atividade probatória, dimensionando-a entre os sujeitos (aspecto subjetivo-procedimento); (ii) atua como possibilidade de construir o convencimento decisório do órgão julgador (objetiva-julgamento), uma vez que é vedado pronunciamento non liquet.
A história da ciência processual, no que se refere à evolução da teoria do ônus da prova, demonstra “os percalços, os retrocessos e os triunfos da busca de uma regra geral, abstrata e inequívoca de quem deve sofrer os riscos da falta de prova da alegação de fato”[3].
Jeremy Bentham sustentava que o ônus da prova deveria ser imposto, em cada caso concreto, àquela das partes que puder satisfazê-lo com menos inconvenientes, quer dizer, diminuta demora, vexames e despesas[4].
Jorge Wagner Peyrano, por sua vez, defendia que o ônus dinâmico seria aplicado de forma excepcional e subsidiária, já que serve para aperfeiçoa-lo. Daí por que falar-se em flexibilização da teoria estática, tendo a função de permitir que uma das partes exerça o seu direito de provar quando uma comprovação se torne impossível, diante das circunstâncias do caso concreto[5].
Leo Rosenberg afirmava peremptoriamente que as regras sobre o ônus da prova deveriam ser fixas e prévias em nome da segurança jurídica. Dizia que “o direito não pode deixar ao arbítrio do juiz a decisão sobre o que pertence ao fundamento da demanda e o que pertence ao fundamento das exceções, pois, a regulação do ônus da prova deve fazer-se mediante normas jurídicas cuja aplicação deve estar submetida à revisão pelo tribunal, e esta regulação deve conduzir a um resultado determinado, independente das contingências do processo particular, sendo um guia seguro para o juiz. Uma distribuição livre do ônus da prova não é liberdade com que poderia pensar uma magistratura bem aconselhada. A distribuição proporcionada e invariável da carga probatória é um postulado de segurança jurídica”[6].
Tal imobilidade tem por premissa um processo civil liberal, tanto que justificada por Rosenberg “assim o quer a finalidade do processo civil: por mais que procure averiguar a verdade, mais do que isto o que importa é estabelecer e assegurar a paz jurídica, eliminando de forma definitiva a incerteza entre as partes”[7].
O Código de Processo Civil de 2.015 prevê, expressamente, tanto a prova de oficio quanto a teoria do ônus dinâmico da prova; a primeira estabelecida no art. 370 e a última no art. 373, § 1º. Veja-se:
Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
§1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caputou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído.
§2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil.
§3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
§4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo.
Especificamente em relação à dinamização do ônus da prova (novidade do CPC/2015), cabe lembrar que, embora a doutrina majoritária[8], em geral, não aponte qualquer mácula ao referido dispositivo – ao revés, trata-o com naturalidade –, o fato é que seus reflexos são tão maléficos ao garantismo processual quanto à prova de oficio, como procuraremos demonstrar ao responder a seguinte indagação: são constitucionais, à luz da teoria do garantismo processual, as iniciativas probatórias oficiosas?
A esse questionamento, adiantamo-nos, a resposta é desenganadamente negativa. Vejamos.
3. O instrumentalismo processual e sua versão fashion: a roupagem “nova” para o “velho
Parcela considerável da doutrina nacional encontra no neoconstitucionalismo fundamento para evocar a possibilidade de o órgão julgador exercitar seus poderes instrutórios de ofício, uma vez que seria por essa concepção que se daria o efetivo acesso à justiça material[9].
Além disso, uma visão individual do processo (prevalência sobre o interesse das partes) tolheria “o interesse do próprio poder judiciário de garantir, através do processo, a adequada instrução e a melhor solução para a lide. Sem instrução adequada, é improvável que a decisão seja a mais acertada”[10].
Assim, por essa percepção acadêmica, as partes poderão estabelecer limites em relação aos fatos controvertidos a serem examinados pelo órgão julgador, porém “não poderão assim proceder quanto aos meios de prova que forem necessários”, cabendo ao juiz/tribunal “proceder de forma dinâmica, visando à produção das provas necessárias para que se realize um julgamento com justiça”[11].
Vão mais além, ao asseverarem que o “princípio da igualdade das partes não pode servir de argumento válido à proibição da produção de prova de ofício, considerando-se que a isonomia real exige um tratamento diferenciado dos sujeitos desiguais, nos limites de sua desigualdade. A igualdade de partes desiguais em termos econômicos ou técnicos só poderá ser efetivada no processo com a permissão da atividade instrutória de ofício, o que evitará que a vitória ocorra em razão de superioridade econômica ou técnica de uma delas”[12].
José Carlos Barbosa Moreira chega a conceber a ideia de que os “poderes instrutórios, a bem dizer, devem reputar-se inerentes à função do órgão judicial, que, ao exercê-los, não se substitui às partes, como leva a supor uma visão distorcida do fenômeno. Mas é inquestionável que o uso hábil e diligente de tais poderes, na medida em que logre iluminar aspectos da situação fática, até então deixados na sombrapor deficiência da atuação deste ou daquele litigante, contribui, do ponto de vista prático, para suprir inferioridades ligadas à carência de recursos e de informações, ou à dificuldade de obter patrocínio de advogados mais capazes e experientes, Ressalta, com isso, a importância social do ponto”[13]. O jurista carioca chega a fazer um paralelo entre a atividade oficiosa da prova e o resultado do processo, como se uma coisa não contaminasse a outra, in verbis:
“Quando o juiz determina a realização de uma prova, ele simplesmente não sabe que resultado vai obter; essa prova tanto poderá beneficiar uma das partes como a outra; e até diria – se considerarmos que essa atitude do juiz implica parcialidade – que a omissão em determinar a prova também implicará parcialidade, porque se a prova não for feita, dessa falta de prova igualmente resultará benefício para alguém, de modo que estaríamos colocando o juiz na desconfortabilíssima posição de ter de ser sempre parcial, quer atue, quer não atue. Eu prefiro ser parcial atuando, a ser parcial, omitindo-se”[14].
Barbosa Moreira é categórico ao reconhecer que o julgamento “segundo as regras de distribuição do ônus não é atitude que tranquilize de todo o juiz consciente de sua responsabilidade: ele atira no escuro; pode acertar o alvo, mas pode igualmente errar, e sua sentença, injusta, produzirá na vida dos litigantes efeitos diversos dos queridos pelo ordenamento, quando não diametralmente opostos. Não será preferível que ele procure fazer jorrar alguma luz sobre os desvãos escuros da causa - e, se possível, baseie o julgamento numa ciência mais exata e completa do que realmente aconteceu?”[15].
De outra parte, Humberto Theodoro Júnior defende as iniciativas probatórias do órgão julgador, pautado numa concepção, data maxima venia, desacertada tanto do devido processo legal como processo justo quanto levando em conta apenas o ônus objetivo (regra de julgamento) da distribuição, situações pelas quais teria conduzido “à superação dos velhos limites opostos à iniciativa judicial em matéria de instrução probatória. Acima do ônus da prova – cujas regras atuam na fase final de julgamento da lide e, não durante a coleta dos elementos de instrução da causa – prevalece o compromisso com a verdade real”[16].
Ada Pellegrini Grinover aduz, por exemplo, que as inciativas probatórias oficiosas estariam “longe de afetar a imparcialidade”, uma vez que tais iniciativas assegurariam “o verdadeiro equilíbrio” e proporcionariam “uma apuração mais completa dos fatos. Ao juiz não importa que vença o autor ou o réu, mas interessa que saia vencedor aquele que tem razão. Ainda que não atinja a verdade completa, a atuação ativa do juiz lhe facilitará inegavelmente o encontro de uma parcela desta”[17].
Paulo Osternack Amaral chega ao ponto de discorrer que a “imparcialidade não pode funcionar como fundamento para que se oculte a verdade. A investigação aprofundada – dentro dos limites da causa – entregará às partes uma decisão justa e adequada”[18].
Nada mais equivocado e irrefletido, quer nos parecer.
O velho instrumentalismo processual, no bojo do qual o norte é a publicização (processo a serviço do Poder Estatal), é “refratário ao DNA do processo, verdadeira ´instituição de garantia´”[19]. Os escopos instrumentalistas (sociais, políticos e jurídicos), por serem definidos pelos próprios órgãos judiciais encarregados de “dizer o Direito”, desaguam num protagonismo cujo resultado é o ativismo, do qual exsurge nitidamente o enfraquecimento da democracia e do Estado de Direito.
Demonstrando a falácia que repousa sobre a secção entre escopos sociais, políticos e jurídicos, evidenciando que é na própria ordem jurídica que residem os outros dois fins, sob pena de se admitir que o poder (jurisdicional) pode ser exercido à margem da Lei, Aroldo Plínio Gonçalves arremata, ensinando-nos que:
“A ordem política e a ordem social têm o seu fundamento na ordem jurídica, existem[sic] dentro do ordenamento jurídico e sofrem a sua regulamentação. Supor o contrário seria o mesmo que se admitir a possibilidade de se afirmar que, na sociedade organizada, o poder se exerce dentro da lei e pela lei, e que o poder não se exerce dentro da lei e pela lei. Já se percebe a impossibilidade de se manter as duas assertivas, pois mesmo no caso do abuso do poder, os limites da lei dão a medida para a qualificação de seu exercício abusivo. No Estado contemporâneo de direito, o poder se exerce segundo a disciplina da lei, seja ela mais rígida ou mais elástica, conforme deixe ao Estado um campo mais restrito ou mais amplo de decisão sobre a oportunidade e as formas de suas manifestações. O critério para a aferição dessa maleabilidade será sempre dado pelo Direito, pois é na lei fundante, na Constituição, que se encontram a estruturação dos órgãos do poder, a definição de sua competência e os direitos e garantias que limitam a sua atuação”[20].
Não é por outra razão que Georges Abboud e Mateus Costa Pereira afirmam que “o desapego da teoria instrumentalista à lei democraticamente posta é palmar, ao passo de ser estimulada uma avançada tomada de posições pelos juízos e tribunais, em antecipação a modificação de que o legislador ainda se faz devedor. Ao fim e ao cabo, o sentimento de justiça e a subjetividade do julgador teriam mais valor que o processo legislativo-democrático. Se entender pela falta de correspondência entre a lei e os anseios sociais, admite-se que o juiz se adiante ao legislador, substituindo a lei por um ato de vontade seu”[21]. O instrumentalismo, portanto, nada mais é do que o novo neoprocessualismo que possui raízes em seu tronco mãe: o neoconstitucionalismo.
A começar pelo epíteto neoconstitucionalismo, segundo o qual para Luis Roberto Barroso seria “o novo direito constitucional, identificado como um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio as quais podem ser assinalados, como marco teórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; como marco filosófico, estaria o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre direito e ética e, finalmente, como marco teórico, encontraríamos o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional”[22], permissa venia, tal movimento, no Brasil, não passa de protagonismo judicial desprendido dos limites constitucionais e legais mínimos estabelecidos pelo ordenamento jurídico pátrio; uma espécie de ativismo judicial que, na medida em que se procura compreendê-lo “constata-se que se está diante de elaboração imersa em tamanhas fragilidades, que não passa de muito mais do que um ´modismo intelectual`”.
Nas exatas palavras de Elival da Silva Ramos basta “a leitura de excerto extraído de artigo de um dos mais proeminentes neoconstitucionalistas, Luis Roberto Barroso, para a cabal comprovação de que sequer os que assim se rotulam visualizam uma clara diretriz teórica a ser seguida, confessando ´operar em meio à fumaça e à espuma`”[23].
A propósito, essa moda do “neo” – que não é nova – também ingressou no processo civil (neoprocessualismo), a exemplo do conceito de jurisdição dado por Fredie Didier Jr. O referido jurista baiano, ao referir-se ao instituto, denomina-o de “função criativa” e “ilimitada” que “recria a norma jurídica do caso concreto, bem como se recria, muita vez, a própria regra abstrata que deve regular o caso concreto”[24], isso tudo baseado “nos valores constitucionalmente protegidos na pauta de direitos fundamentais na construção e aplicação do formalismo processual”, capitulando este como a “atual fase metodológica da ciência do processo”. Logo, neoprocessualismo e formalismo valorativo (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira) são os dois lados da mesma moeda ou, em outras palavras, variações terminológicas do “velho” instrumentalismo processual.
Não há nova fase alguma!
O que há é o velho ativismo judicial, que germina no âmago do instrumentalismo processual, marcado pela introdução de princípios extrajurídicos e/ou performáticos, com o objetivo de colmatar o direito ao ideal voluntarista, decisionista, utilitarista e consequencialista do órgão julgador, corrompendo-se o Estado de Direito.
No ponto, válidas são as observações de Jorge Octávio Lavocat Galvão:
“É curioso que esse protagonismo dos tribunais não tenha proporcionado um maior interesse no estudo sobre o Estado de Direito. A rigor, uma ênfase maior no Poder Judiciário deveria desencadear um incremento nas pesquisas sobre o modo como as normas jurídicas restringem a discricionariedade dos agentes públicos e trazem previsibilidade e certeza para a vida dos cidadãos, focando-se no papel dos magistrados na promoção desses valores. Não foi isso o que aconteceu. (...) alega-se que os juízes, com seu senso moral aguçado, necessitam de maior flexibilidade para desenvolver suas capacidades emancipatórias. Leis e códigos? Isso tudo é coisa do passado. Interpretar a letra da lei? Nem pensar! O importante mesmo são os valores e os princípios constitucionais. Como consequência dessa lógica, o trabalho dos neoconstitucionalistas tem sido basicamente o de desenvolver instrumentos que possibilitem uma atuação judicial mais expansiva e criativa, Hércules virou Zeus. Razoabilidade, proporcionalidade, constitucionalização do Direito, eficácia horizontal dos direitos fundamentais, derrotabilidade das normas jurídicas, força normativa da Constituição, sobreintepretação constitucional, filtragem constitucional etc., são todas expressões que possuem em comum o fato de conferirem aos juízes um maior poder de interferência na realidade social. Normas e regras jurídicas fazem parte de um vocabulário antiquado. Fala-se agora em princípios, valores, fins, standards, conceitos jurídicos indeterminados, cláusulas gerais, enfim, toda matéria-prima que confere maior margem à manipulação dos resultados por parte dos intérpretes. A indeterminação dos textos legais é paradoxalmente festejada e admirada. Quando mais abstrato, mais sentido tem. O que tem significado é que passa ser insignificantes”[25].
Pretende-se reescrever o direito ao arrepio das opções políticas definidas e tomadas na seara legislativa (Parlamento) e, até mesmo jurisprudenciais, firmadas pelos órgãos do Poder Judiciário.
Há sim um hiper publicismo (autoritarismo processual) que reconhece na figura do órgão julgador uma espécie de Deus (onipresente e onisciente) dotado de angelical poder para dizer o certo, o justo e o correto às partes, custe o que custar, inclusive a higidez do edifício jurídico produzido democraticamente, relevando a legalidade aos valores e à atuação do Poder Judiciário imprevisível.
Para tal mister, nada pode impedi-lo, nem mesmo as garantias do devido processo legal, da imparcialidade e da neutralidade do órgão jurisdicional[26]. O importante é a “substancialidade” e a “justiça” das decisões.
Aos órgãos do Poder Judiciário, o movimento neoconstitucionalista/neoprocessualista, oferece mecanismos que lhes permitem realizar “revoluções sociais independentemente da política majoritária”[27], desgarrando-os de quaisquer subordinações às opções legislativas.
Ao invés do novo temos um velho e autoritário processo inquisitivo, por meio do qual se busca uma verdade (a verdade que o órgão jurisdicional pretende implementar) ao arrepio de todos os freios expressamente previstos no Texto Constitucional.
Assim, o neoconstitucionalismo no seu viés processual revela-se perfeito “como estratégia de combate, pois transforma a constitucionalização em um conceito de guerrilha: nunca se sabe onde está, o que é, suas dimensões e seus efetivos. Pode estar em todos os lugares e em lugar algum. Como estratégia de combate, é um excelente modo de se fomentar o desenvolvimento de um conceito, até porque inviabiliza qualquer crítica sistemática ou tentativa de controle. Para quem decide e não tem grandes preocupações com os custos argumentativos ou a prestação de contas democrática, é um ótimo meio de justificar escolhas aleatórias e jogar com a constitucionalização e seu enorme acervo de princípios e direitos fundamentais para se liberar de qualquer conformação racional dos atos decisórios. (...) seria fundamental que a constitucionalização deixasse de servir como um conceito de guerrilha e se tornasse um conceito de combate convencional”[28].
Em verdade, o neoconstitucionalismo e o neoprocessualismo praticados no país são disfarces do ativismo judicial ou, como bem metaforicamente projetou Carlos Bastide Horbach, assumem o papel de uma “roupa nova do Rei” (Hans-Christian Andersen)[29].
Sob o manto “neo” e seus “valores”[30] materializados numa varinha de condão o “rei” faz o que bem entender!
Um jurista hoje ue se propõe a escrever sobre “segurança jurídica e/ou processo” só tem dois caminhos: ou se finca na concretização das garantias constitucionais do processo, buscando combater o ativismo, o neoconstitucionalismo, o neoprocessualismo e as arbitrariedades que deles derivam – todos sintomas da hiper concentração da jurisdição-poder – ou bem se entrega a eles e faz discursos falaciosos, tais como aqueles que se denominou cunhar de flexibilização, ponderação, eficiência quantitativa, dinamização da ônus da prova e, de fato, assume a postura instrumentalista-utilitarista do processo, (re)produzindo “doutrina” que denominei de “assessoria de imprensa”[31].
4. As iniciativas probatórias oficiosas: a compreensão do processo como genuína garantia contrajurisdicional de liberdade individual das partes revela as suas incompatibilidades com a Constituição Federal
No Estado Democrático de Direito, uma das características essenciais e ínsitas do viés procedimental do devido processo legal é a instauração de procedimentos imparciais que possibilitem aos cidadãos comprovarem as suas versões dos fatos. Isso envolve determinadas medidas, tais como: (i) ser ouvido por um juiz imparcial, devidamente qualificado para sua função, que decida com base em provas produzidas no bojo do processo; (ii) ser representado e aconselhado por advogado em todas as fases; (iii) ter acesso às instâncias superiores; e (iv) poder contestar as provas produzidas pela outra parte etc[32].
Entendemos que, a par da falsa controvérsia existente a respeito de o ônus da prova implicar em regra de julgamento ou regra de procedimento, consubstancia-se, em verdade, não apenas em critério de julgamento, o qual informa ao juiz como deve julgar quando as provas não são suficientes para a formação da convicção sobre os fatos da causa, mas também critério de organização da atividade probatória, que indica às partes a sua parcela de responsabilidade na formação da prova destinada à construção do juízo de fato[33].
O ônus da prova exerce, destarte, dupla função: (i) desemprenha importante papel no que tange à estruturação da atividade probatória das partes (função subjetiva); e (ii) funciona como regra de julgamento, a ensejar, no caso de insuficiência de provas aptas a formar o convencimento judicial, decisão contrária aos interesses da parte que não cumpriu o seu encargo (função objetiva).
A garantia da imparcialidade[34] do órgão julgador é a pedra de toque do direito probatório. Deriva do devido processo legal em seu viés da ampla defesa e do contraditório. Toda a atividade probatória é ônus exclusivo das partes; a elas é conferido o direito de requerer, se manifestar, produzir, participar, desistir e, até mesmo, quedar-se inerte. O juiz que age desempenhando papel como se parte fosse (mesmo imbuído das melhores intenções do mundo) “é partial, parcial em sentido objetivo-funcional”[35]. Da mesma forma viola a imparcialidade em seu sentido “subjetivo-psíquica” ao agir de modo tendencioso quando “consciente de que a sua atitude pode beneficiar apenas uma parte desde sempre identificada”[36].
O processo, pela compreensão teórica jurídico-dogmática aqui esposada, é definido como instituição de garantia contrajurisdicional de liberdade das partes, cuja finalidade, portanto, consiste em frear o poder jurisdicional e não em servir à jurisdição-poder[37].
Por essa razão é que “enquanto para o instrumentalista o processo serve à jurisdição, para o garantista o processo serve ao indivíduo; enquanto que para o instrumentalista o processo é pró-jurisdicional, para o garantista o processo é contrajurisdicional; enquanto que para o instrumentalista o ponto de partida constitucional é a jurisdição, para o garantista o devido processo é o único ponto de partida constitucional possível”[38].
O garantismo prestigia a imparcialidade como ponto fulcral da atividade processual, deslocando para as partes a realização da mais ampla e possível atividade probatória (liberdade probatória na defesa dos seus interesses), mitigando ao máximo os poderes do órgão julgador.
Para a teoria garantista, o resultado/solução do processo dependerá do efetivo debate entre as partes e de sua diligência em melhor manejar a respectiva atividade. Assim, toda a discussão relativa ao direito controvertido se restringe tão somente às partes (plano horizontal), sendo certo que, por isso mesmo, elas possuem a maior liberdade para exporem e demonstrarem seus argumentos, assumindo os riscos inerentes a sua atuação.
Ao órgão julgador compete atuar como expectador, terceiro imparcial, não podendo criar ou modificar sponte propria as regras do processo, tampouco produzir provas como investigador ou senhor dos fatos, sob pena de promover (i) desequilíbrio na sua imparcialidade (funcional e/ou psíquica) em relação ao(s) objeto(s) da demanda e (ii) dilações inúteis e impertinentes.
Nesse sentido:
“Realmente, quando o juiz ordena prova à mingua de requerimento da parte, só pode haver cinco resultados possíveis: 1) prova de fato constitutivo do direito do autor; 2) prova de fato impeditivo do direito do autor; 3) prova de fato extintivo do direito do autor; 4) prova de fato modificativo do direito do autor; 5) prova de nada. Ora, se o juiz tem dúvida somente sobre a existência do fato constitutivo do direito do autor, o único beneficiário real da prova de ofício é o autor, porquanto os resultados (2), (3), (4) e (5) revelam dilação probatória inútil: posto que favoreçam o réu. Há tempos a demanda já poderia ter sido rejeitada por ausência de provas. Esse mesmo raciocínio se aplica à hipótese em que o juiz tem dúvida geral (ou seja, dúvida tanto sobre o fato constitutivo quanto sobre o fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor). Por sua vez, se o magistrado tem dúvida sobre a existência do fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito do autor, o único beneficiário real da prova de ofício é o réu, uma vez que os resultados (1) e (5) revelam dilação probatória inútil: embora favoreçam o autor, há tempos a demanda já poderia ter sido julgada procedente. Em suma: a prova ex officio iudicis sempre favorece a parte que tinha o ônus de provar, mas não provou”[39].
As iniciativas probatórias, portanto, são exclusivas das partes, estando preservada a liberdade individual para trazerem aos autos do processo os fatos que realmente lhes interessam para a solução do conflito. A outorga de poderes instrutórios fere o espírito democrático do processo. O poder instrutório (oficioso/ope judicis) não está de acordo com a garantia do devido processo legal, por impor às partes uma providência não requerida ferindo-lhes a liberdade individual de participação no processo e a sua faculdade de disposição, assumindo o ônus da sua escolha, de parcela de seu direito derivado da pretensão ou reação (produção de prova).
A propósito, referindo-se expressamente à iniciativa probatória dinâmica, Araken de Assis é categórico em alertar que referida teoria “baseia-se em premissa claramente irreal: o juiz e a juíza brasileira, encarregados de processar e julgar milhares de processos, não têm vagares e os instrumentos necessários à ponderação dos interesses em jogo. Não é por outra razão que só se dão conta da conveniência da mudança das regras do ônus na oportunidade do julgamento. Em realidade, a distribuição dinâmica constitui um enorme perigo ao processo garantista” e prossegue advertindo: “Esquece-se o melhor princípio: ´O arbítrio do juiz em liberdade total e não condicionado a determinados parâmetros legais que balizem a sua atuação não é um bom princípio`”[40].
A dinamicidade da distribuição do ônus probandi, conclui o processualista gaúcho, tem por objetivo uma “extravagante ´técnica` de julgamento transparente, embora raramente enunciado”, qual seja: “favorece uma das partes que, segundo o critério fixo e prévio, não lograria êxito, por razões nem sempre – permita-se a metáfora – próprias do ofício de fazer justiça`”[41], o que, sem medo de errar, implica na quebra da garantia da imparcialidade do órgão julgador.
Eduardo José da Fonseca Costa extrai, como consequência direta das garantias arquifundamentais da não criatividade[42] e imparcialidade (em especial da pressuposição de inocência civil e penal), a necessidade de preservação da distribuição estática do ônus da prova e da improcedência na hipótese de ausência ou insuficiência de provas. Veja-se:
“GARANTIA FUNDAMENTAL DA «PRESUNÇÃO» [RECTIUS: PRESSUPOSIÇÃO] DE INOCÊNCIA [deve-se pressupor a inocência penal ou civil do réu, não a sua culpabilidade; dessa pressuposição decorrem dois importantes corolários: i) a GARANTIA DA DISTRIBUIÇÃO ESTÁTICA DOS ÔNUS PROBATÓRIOS, por força da qual é ônus do autor destruir a barreira pressupositiva mediante prova do fato constitutivo da ação material objeto do processo e do réu reforçar a barreira mediante prova do fato extintivo, impeditivo ou modificativo da ação material, evitando o risco de que o juiz surpreenda a parte criando-lhe ônus probatório invencível; ii) a GARANTIA DA IMPROCEDÊNCIA POR AUSÊNCIA OU INSUFICIÊNCIA DE PROVAS, que obriga o juiz em dúvida a declarar infundada a existência da ação material, evitando o risco de que escolha o resultado do julgamento em favor de uma das partes]”[43].
A falsa premissa que motivou a permanência no atual Código de Processo Civil das iniciativas probatórias oficiosas (arts. 370/373, § 1º), atribuindo poderes aos órgãos julgadores, é incompatível com regimes democráticos. A história repele todos os regimes autoritários do séc. XX demonstrando que todos editaram Códigos para adaptar o processo aos seus valores e, sobretudo, majorar os poderes dos juízes para “descobrirem a verdade” e “fazer justiça”. Exemplos: no BRASIL (era Vargas), na ITÁLIA (Fascista), em PORTUGAL (Estado novo), na ALEMANHA (Socialista), na EX-URSS e na POLÔNIA (pós-guerra 1945)[44].
O processo é, nos dizeres de Eduardo José da Fonseca Costa, “uma garantia de liberdade em si salpicada de alguns poderes jurisdicionais”, jamais “um instrumento do poder jurisdicional salpicado de algumas garantias de liberdade”[45], portanto, o equívoco não é retirar o órgão julgador da sua “posição de inércia desinteressada, como se a boa prestação jurisdicional não lhe dissesse respeito, nem valorizar os mecanismos para a apuração dos fatos alegados pelas partes. O problema é supor que a verdade descoberta pelo órgão julgador é mais verdade ou mais legitima do que a verdade construída democraticamente e paritariamente no processo pela atuação das partes. O viés autoritário faz parecer que a parcialidade das partes e de seus procuradores contamina os seus comportamentos processuais, sendo imprescindível a angelical intervenção do juiz estatal para definir o justo, o bom e o verdadeiro”[46].
Os sistemas autoritários atribuíram mais poderes aos juízes para a busca da verdade material. A defesa de que o juiz deve buscar a verdade material, “independentemente do que foi alegado pelas partes e dos consensos por elas estabelecidos, invariavelmente, evolui para teorias que significam o fim do processo civil (penal e demais), seja pela substituição do processo contencioso por procedimentos de jurisdição voluntária (Baumbach), seja pela extinção do Poder Judiciário e a integração de todos os processos em um único procedimento instruído oficiosamente (Menger)”[47].
Portanto, a regra de que o órgão julgador detém poderes instrutórios a serem exercidos voluntariamente ao seu bel-prazer visando “auxiliar”[48] as partes em suas dificuldades, ou mesmo insuficiências, no desincumbir[49] de seus encargos ou ônus probandi, não passa de um (mais um) resquício autoritário e incompatível com o processo enquanto garantia instituído em 1988 pela Constituição Federal, a qual procurou estabelecer e concretizar um Estado Democrático de Direito.
5 – À Guisa de conclusão
Processo é “método de trabalho para que o Estado desenvolva, com racionalidade e previsibilidade, a sua função jurisdicional com o objetivo primário de estabelecer normas que legitimem a sua intervenção na esfera jurídico-patrimonial do indivíduo”[50].
O que importa para o processo não é a decisão ser justa ou injusta; o que importa é que o seu resultado decorra de um procedimento legal, lógico, previsível, conduzido por um sujeito imparcial e dotado de garantias mínimas de participação aos interessados que possibilite uma decisão substancialmente “justa” (adequada ao ordenamento) e efetiva. Esse é o sentido do devido processo legal[51].
Com efeito, nosso sistema processual é dispositivo e não inquisitivo. o princípio dispositivo é a matriz das regras e sistemas pelos quais ao órgão julgador não competem iniciativas probatórias.
O exercício dos poderes instrutórios retira do juiz a garantia da imparcialidade, na medida em que o transforma em um potencial procurador de uma das partes, privilegiando ou direcionand\o o resultado do processo.
Quem tem o ônus da alegação tem o ônus de provar; se o juiz supre eventuais omissões de uma das partes, estará obviamente beneficiando-a em detrimento da outra.
Portanto, o argumento de que o juiz não sabe a quem favorecerá a prova que ele determinou de oficio é falaciosa na medida em que, se por um lado, se desconhece a quem favorece certa prova, por outro, é rigorosamente certo que conhece a quem desfavorece a correspondente falta[52].
Não existe nada mais fora de qualquer análise séria no âmbito do processo do que a tentativa de sustentar um “agir bom” do órgão julgador ao defender uma oficiosidade positiva ou “parcialidade positiva do juiz” [53], como vem sustentando a doutrina.
Processo, para os garantistas, é liberdade que traduz a ideia de que cabe à parte “decidir pelo que entende e pelo que lhe convém perante a jurisdição. A parte tem o poder de autodeterminar-se pela própria vontade e, a partir daí escolher autonomamente os seus comportamentos”. Somente a ela caberá a liberdade de provar os fatos alegados como fundamento no convencimento do juiz, afinal de contas, o órgão julgador deve postar-se “alheio, não-parte, im-parte, impartial, neutro. É iniciativa exclusiva da parte manejar os fatos, os fundamentos jurídicos, os pedidos, as provas, as indagações, as inquirições, as estratégias de persuasão, as impugnações e os recursos que lhe amparam a ação e a defesa”. Sua missão no processo é de garantidor daquele, de “um dux [=comandante, chefe, guia, diretor]”[54], disso resulta a sua imparcialidade na condução do processo.
Afinal, por meio da aplicação da regra estática de atividade do ônus da prova, caberá “ao autor o ônus de provar o fato constitutivo do seu direito (art. 373, I, CPC) e ao réu o de provar o fato extintivo, impeditivo ou modificativo do direito do autor (art. 373, II, CPC). Além disso, esses mesmos dispositivos, para o juiz, definem regras de julgamento, ou seja, o sentido em que ele deve julgar em caso de inexistência ou insuficiência de provas, pois é vedado o non liquet”[55].
Não é por outra razão que, para a teoria do garantismo processual, as posturas probatórias oficiosas (arts. 370 e 373, § 1º, segunda parte, do Código de Processo Civil) são inconstitucionais, sendo certo que o primeiro dispositivo é nulo de pleno direito e o segundo merece declaração de inconstitucionalidade com redução de texto (§ 1º, segunda parte)[56], uma vez que em ambos há violação da garantia do devido processual legal[57] (art. 5º, LIV), no seu viés da imparcialidade originada tanto diretamente da referida cláusula do due process, quanto derivada da supralegalidade dos tratados internacionais sobre Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10)[58], Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14.1)[59] e Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8.1.)[60].
Notas e Referências
[1] Carlos Alberto Alvaro de Oliveira propugnava uma espécie de relatividade na obtenção da verdade, partindo da premissa equivocada de que “atividade judicial é naturalmente tolhida, contida ... que haveria sempre um potencial não explorável e apreensível de conhecimento”. Do formalismo no processo civil. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 178.
[2] “Parece claro que julgadores devam domar seu impulso de estabelecer a veracidade histórica: eles não podem tornar-se buscadores da verdade independentes e enérgicos sem pôr em perigo a imparcialidade essencial ao seu papel de solucionador de conflitos. Ainda que eles observem os limites impostos pelas alegações das partes, sua procura determinada pela verdade pode levar à descoberta de provas que criem turbulências, agravando ao invés de absorver, as dificuldades do processo”. DAMASKA, Mirjan R. Evidence law adrift. New Haven: Yale University Press, 1997, p. 121.
[3] ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro. Vol. II: parte geral. Institutos fundamentais. Tomo II. 2 ed. São Paulo: RT, 2016, p. 193; AROCA, Juan Montero. La prueba en el proceso civil. 4 ed. Navarra: Thomson. Civitas, 2005, p, 115.
[4] Tratado de las pruebas judiciales. Trad. Manuel Ossorio Florit: Buenos Aires. EJEA, 1971, v. 2, p. 149.
[5] Peyrano evidencia um modelo subsidiário ao modelo estático, a qual visa “formular una pauta excepcional que sólo puede funcionar allí donde aquéllas manifestamente operan mal porque fueron elaboradas para supuestos normales y corrientes que no son los correspondientes all caso”. Nuevos Lineamentos de las cargas probatorias dinámicas. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni Ed., 2004, p. 19.
[6] La carga de la prueba. Buenos Aires: IBdeF, 2002, p. 86.
[7] La carga de la prueba. op. cit., p. 86.
[8] Por todos: “Linhas gerais, trata-se da possibilidade do juiz modular o ônus da prova de acordo com a situação das partes frente às provas necessárias para instrução do processo, não ficando estritamente vinculado à distribuição apriorística estabelecida na cabeça do artigo 373. Logo, o § 1º possibilita novo arranjo do ônus da prova por decisão do juiz (ope iudicis), afastando, episodicamente, a distribuição legal (ope legis). Verificando que a produção de determinada prova para uma das partes se faz impossível ou excessivamente difícil, o juiz poderá transferir tal ônus para a outra parte, desde que essa impossibilidade ou excessiva dificuldade não seja compartilhada pela última. A redistribuição do ônus da prova não pode servir para premiar o ócio, mas sim para premer contra omissão probatória (GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte. Processo de conhecimento e cumprimento de sentença: comentários ao CPC de 2015. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016. p. 270). A maior facilidade na demonstração do fato contrário também permite a modulação do ônus da prova. A atribuição do ônus da prova aqui recai não sobre a proposição factual apresentada pela parte adversa, mas sim sobre fato diverso, que logicamente exclui a ocorrência do primeiro. De toda forma, o juiz não pode redistribuir o ônus da prova quando o reposicionamento da incumbência probatória importar em encargo para o novo onerado impossível ou excessivamente difícil de ser realizado (artigo 373, § 2º) (prova diabólica). A decisão que modula o ônus da prova deve ser cabalmente motivada, apontando os requisitos que permitem a providência, bem como indicar a inexistência de óbices a sua dinamização. A fase de saneamento e organização é o momento próprio para a decisão de dinamização do ônus da prova (artigo 357), mas o juiz pode modular o ônus da prova noutra fase processual. Ainda assim, qualquer que seja o momento da decisão, o juiz tem que permitir que a parte onerada pela redistribuição se desincumba do encargo (artigo 373, § 1º, parte final). A decisão que analisa a redistribuição do ônus da prova desafia agravo de instrumento (artigo 1.015, inciso XI)”. OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte. Comentários ao art. 373 do CPC. in RIBEIRO, Sérgio Luiz de Almeida et al (COORD). Novo código de processo civil comentado. Tomo II (art. 318 ao art. 770). São Paulo: Editora Lualri, 2017, p. 113.
[9] DIAS, Luciano Souto. Poderes instrutórios do juiz na fase recursal do processo civil: em busca da verdade. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 281; BEDAQUE, José Roberto do Santos. Poderes instrutórios do juiz. 7. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 99; GRINOVER, Ada Pellegrini. Verdade real e verdade formal? Um falso problema. In Verdade e prova no processo penal. Coord. PEREIRA, Flávio Cardoso. Brasília: Gazeta jurídica, 2016, p. 08/09 e CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Poderes instrutórios do juiz no processo de conhecimento. Brasília: Gazeta jurídica, 2012, p. 184.
[10] DIAS, Luciano Souto, op. cit., p. 281.
[11] DIAS, Luciano Souto. op. cit., p 284.
[12] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 8 ed. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 664.
[13] A função social do processo civil moderno e o papel do juiz e das partes na direção e na instrução do processo. Temas de Direito Processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 52.
[14] Os poderes do juiz. In MARINONI, Luiz Guilherme (Org.). O processo civil contemporâneo. Curitiba, Juruá, 1994, p. 95. No mesmo sentido: “El órgano jurisdicional cuando decide llevar a cabo la citada actividad, no se decanta a favor o em contra de una de las partes, infringiendo de esta manera su deber de imparcialidade, pues antes de la práctica de la prueba no sabe a quien puede beneficiar o prejudicar; sino que su único objetivo es poder cumplir eficazmente la función de tutela judicial que la constitución le assigna”. JUNOY, Joan Picó i. La iniciativa probatoria del juez civil. A proposito de um caso. In Los Poderes del juez civil em materia probatoria. Coord. LLUCH, Xavier Abel e JUNOY, Joan Picó i. Barcelona: JM Bosch Editor, 2003, p. 169.
[15] O neoprivatismo no processo civil. Temas de direito processual: nova série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 95.
[16] Curso de direito processual. V. 1, 54 ed. Rio de Janeiro: GEN, 2013, p. 458.
[17] Verdade real e verdade formal? Um falso problema. In Verdade e prova no processo penal. Coord. PEREIRA, Flávio Cardoso. Brasília: Gazeta jurídica, 2016, p. 06.
[18] Provas: atipicidade, liberdade e instrumentalidade. São Paulo: RT, 2015, p. 43.
[19] PEREIRA, Mateus Costa; COSTA, Eduardo José da Fonseca. Processo não pode sufocar os direitos que nele são discutidos. Disponível em: https://bit.ly/2WAykon.
[20] Técnica processual e teoria do processo. 2 ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 160.
[21] O instrumentalismo processual à luz de críticas dogmáticas, filosóficas e epistemológicas: do não respondido ao irrespondível. In PEGINI, Adriana Regina Barcellos; FERREIRA, Daniel Brantes; SOUSA, Diego Crevelin; MALAFAIA, Evie Nogueira e.; RAMOS, Gláuco Gumerato; DELFINO, Lúcio. PEREIRA, Mateus Costa e FILHO, Roberto P. Campos Gouveia (Orgs.). Processo e liberdade: estudos em homenagem a Eduardo José da Fonseca Costa. Londrina: Thoth, 2019, p. 364.
[22] ROSSI, Júlio César. Neoconstitucionalismo e o pós-positivismo à brasileira. Disponível em: https://bit.ly/2N8DJjk.
[23] Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 279.
[24] DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 157.
[25] O neoconstitucionalismo e o fim do estado de direito. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 307/308.
[26] A observância das garantais fundamentais do processo cedem à justiça da decisão. Desconsidera-se, deliberadamente, o fato de que “as garantias constitucionais do processo são garantias da própria sociedade, enquanto se coloca como comunidade de jurisdicionados perante o Estado, que detém a sanção em sua universalidade. São garantias de que o Estado não invadirá o domínio dos direitos individuais e coletivos, se não for chamado a protege-los, (...), de que a provação dos bens da vida que o Direito assegura não se dará sem as formas de um processo devido e de que não se dará sem a participação e controle dos destinatários do provimento em sua própria formação, de que não se dará sem a devida explicação aos jurisdicionados sobre os fundamentos de uma decisão que interfere em seus direitos e nas liberdades pelo Direito asseguradas”. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2 ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 161).
[27] GALVÃO. Jorge Octávio Lavocat. op. cit. p. 310.
[28] RODRIGUES JR, Otavio Luiz. Direito civil contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2019, p. 237.
[29] “Num determinado reino, vivia um monarca extremamente vaidoso, preocupado com sua aparência e com a observância das últimas imposições da moda. Assim, acorria ao reino um grande número de estilistas e alfaiates, que sabiam ter no Rei o cliente ideal. Eis que, certo dia, chegam ao país dois supostos modistas dispostos a obter vantagens dessa característica da personalidade do soberano. Em linhas gerais, esse é o começo do conto A Roupa nova do Rei de Hans-Christian Andersen. Seguindo a narrativa, Andersen conta que os recém-chegados - travestidos de estilistas renomados - apresentaram ao Rei um tecido excepcional, cuja principal qualidade era a de ser invisível aos olhos dos incompetentes e dos dissimulados. Ou seja, o tecido - de beleza extrema e preço incalculável - seria somente perceptível pela visão dos inteligentes, dos competentes e dos sinceros. A partir daí cônscios de sua inteligência, competência e sinceridade, várias autoridades da Corte passaram a descrever com detalhes a beleza do tecido, que na verdade não existia, que não passava de uma invenção para tirar do Rei as mais altas quantias. O final do conto é conhecido: estando todo o povo do Reino avisado das qualidades extraordinárias da nova roupa do monarca, aglomerou-se nas ruas para ver, maravilhado com a beleza do traje, o desfile de Sua Majestade, até que uma criança, numa simplória constatação, despertou a todos para a realidade: ´O Rei está nu!`”. (HORBACH, Carlos Bastide. A nova roupa do direito constitucional: neo-constitucionalismo, pós-positivismo e outros modismos. Revista dos Tribunais. São Paulo, RT 859:91, maio 2007.
[30] No ponto, vale a lição de Jorge Octávio Lavocat Galvão: “Ao se perguntar quais os valores alimentam a concepção neoconstitucional, contudo, encontra-se um vazio. Não há uma agenda definida. Às vezes o viés é liberal, outras vezes é social. De vez em quando se valoriza a eficiência, em outras a redistribuição de renda. O neoconstitucionalismo encontra-se, então, em uma encruzilhada”. O neoconstitucionalismo e o fim do estado de direito. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 310.
[31] ROSSI, Júlio César. “(...) aquela que antes de se manifestar sobre qualquer tema sempre espera e depois reproduz, ipsis litteris, em pretensos textos doutrinários, os julgamentos das Cortes de forma acrítica e autômato, desempenhando as funções dos órgãos de assessoria dos tribunais, com a vantagem ser mais eficaz, honesta, clara e, sobretudo, parcial”. A (Des)motivação per relationem: uma espécie non liquet na era do processo tecnocrático”. Disponível em: https://bit.ly/2r7jrOx.
[32] GALVÃO. Jorge Octávio Lavocat. op. cit., p. 40.
[33] TESHEINER, José Maria Rosa. Elementos para uma teoria geral do processo. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 12.
[34] Eduardo Jose da Fonseca Costa, partindo do plano pré-positivo ao positivo catalogou ao menos 12 sentidos para o conceito de imparcialidade judicial: “(...) i) o juiz deve ser im-parcial, não-parte, alheio ou terceiro ao conflito [GARANTIA FUNDAMENTAL DA TERCEIRIDADE]; ii) o juiz não pode ter objetivamente qualquer interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa [GARANTIA FUNDAMENTAL DO DESINTERESSE]; iii) o juiz da causa não deve ter conexões fortes de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer das partes (ascendente, descendente, cônjuge, companheiro, noivo, namorado, amigo íntimo, inimigo, sócio etc.) [GARANTIA FUNDAMENTAL DO DISTANCIAMENTO]; iv) o juiz deve lutar contra eventual predisposição, preferência, antipatia ou preconceito que nutra subjetivamente por qualquer das partes - em razão de raça, cor, religião, sexo, orientação sexual, idade, estado civil, ideologia político-social, status socioeconômico, grau de escolaridade etc. -, ainda que na prática seja impossível um grau absoluto de neutralidade ou um nível zero de contaminação psicológica [GARANTIA FUNDAMENTAL DO ESFORÇO PELA NEUTRALIDADE PSICOLÓGICA]; v) o juiz não se deve enviesar cognitivamente pelas heurísticas de confirmação (ex.: o juiz da liminar tende a confirmá-la na sentença; o juiz de garantias na investigação criminal tende a receber a denúncia), representatividade (ex.: o juiz da prova oral tende na sentença a valorar nervosismo como mentira e tranquilidade como verdade), ancoragem (o juiz da prova ilícita excluída tende a perseguir nos autos o mesmo resultado prático da reinclusão; o juiz da sentença terminativa nulificada tende a rejulgar pela improcedência), etc. [GARANTIA FUNDAMENTAL DO NÃO-ENVIESAMENTO COGNITIVO]; vi) o juiz não deve, mediante iniciativas oficiosas, favorecer ou perseguir funcionalmente qualquer das partes, devendo agir somente por provocação [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INÉRCIA FUNCIONAL] (obs.: um dos seus corolários é a GARANTIA DA DISPOSITIVIDADE ou DA AUTORRESPONSABILIDADE PROBATÓRIA DAS PARTES, a qual evita o risco de que o juiz favoreça uma das partes ordenando ex officio provas que a auxiliem; outra derivação é a GARANTIA DA AÇÃO PROCESSUAL, que atribui à parte a provocação do exercício da função jurisdicional, evitando o risco de que o juiz o faça sponte sua com a intenção de favorecer ou prejudicar alguém); vii) o juiz não deve sofrer interferências nem pressão interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica, para beneficiar ou prejudicar qualquer das partes; sofrendo, não deve curvar-se em hipótese alguma [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INDEPENDÊNCIA]; viii) o juiz não deve externar em público predisposição, preferência, antipatia ou preconceito por qualquer das partes, mesmo que essa condição íntima jamais redunde em privilegiamento ou perseguição funcional [GARANTIA FUNDAMENTAL DA APARÊNCIA DE NEUTRALIDADE]; ix) o juiz deve manter a sua imparcialidade absolutamente incorruptível e aparentar em sua conduta pública essa incorruptibilidade [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INTEGRIDADE E DA CORREÇÃO]; x) o juiz deve tratar as partes com urbanidade e lhaneza, evitando atritos que o indisponham contra elas e que lhe inquinem, consequentemente, a imparcialidade [GARANTIA FUNDAMENTAL DA URBANIDADE E DA LHANEZA]; xi) o juiz da causa deve integrar órgão cuja competência haja sido definida ex ante facto por critérios impessoais e objetivos estabelecidos em lei, impedindo-se com isso nomeações ad hoc que visem deliberadamente favorecer ou prejudicar qualquer das partes [GARANTIAFUNDAMENTAL DO JUIZ NATURAL]; xii) o juiz que não queira, não possa ou não consiga ser imparcial deve ser substituído por iniciativa sua ou a requerimento da parte interessada [GARANTIA FUNDAMENTAL DA SUBSTITUIBILIDADE]”. As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade). Disponível em: https://bit.ly/2oCwnv0.
[35] Nesse sentido: SOUSA, Diego Crevelin de. O Caráter Mítico da Cooperação Processual. Disponível em: https://bit.ly/2PzFHLk.
[36] SOUSA, Diego Crevelin de. Segurando o Juiz Contraditor pela Impartialidade: de como a ordenação de provas de ofício é incompatível com as funções judicantes. Revista Brasileira de Direito Processual - RBDPro. Vol. 96. p.70/71.
[37] Não é por outro motivo que o devido processo legal encontra fulcro no rol dos direitos fundamentais (art. 5º, LIV, da Constituição Federal).
[38] ANCHIETA, Natascha. O recurso como garantia do indivíduo e o recurso como instrumento do Estado: variações a partir do debate entre garantismo e instrumentalismo processual. Disponível em: https://bit.ly/327YQqi.
[39] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 169/172.
[40] ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro. Vol. II: parte geral. Institutos fundamentais. Tomo II. 2 ed. São Paulo: RT, 2016, p. 208/209.
[41] ASSIS, Araken de. op. cit., p. 208/209.
[42] Em sentido diametralmente oposto ao que defende, por exemplo, Fredie Didier Jr calcado na visão instrumentalista do processo: “A jurisdição é função criativa. Essa criatividade é ilimitada. Na verdade, mais se assemelha a uma atividade de reconstrução: recria-se a norma jurídica do caso concreto, bem como se recria, muita vez, a própria regra abstrata que deve regular o caso concreto”. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17 ed. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 157.
[43] As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. Disponível em: https://bit.ly/36sHdVl.
[44] O escorço histórico é da lavra de Rodrigo Ramina de Lucca, calcado em Girolamo Monteleone. Princípios e ideologias del processo civil. Impressiones de um ´revisionista`, p. 114. In LUCCA, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade processual: a liberdade das partes no processo. São Paulo: RT, 2019, p. 131.
[45] Liberdade e autoridade no direito processual: uma combinação legislativa em proporções discricionárias? (ou ensaio sobre uma hermenêutica topológico-constitucional do processo). Disponível em: https://bit.ly/33k6qiM.
[46] LUCCA, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade processual: a liberdade das partes no processo. São Paulo: RT, 2019, p. 134.
[47] LUCCA, Rodrigo Ramina de. op. cit., p. 135.
[48] Sobre o “dever de auxílio”, cabe aqui as lições certeiras de Diego Crevelin de Sousa ao esmiuçar tal conceito performático e concluir que esse dever não passa de um disfarce à atuação oficiosa do órgão julgador, in verbis: “Considero o dever de auxílio o mais problemático de todos. Primeiro, porque auxiliar significa ajudar, socorrer. É correto dizer que o juiz tem a função de ajudar ou socorrer a parte na realização de alguma atividade? Fala-se em auxiliar ainda no sentido de função secundária. Então, seria o juiz detentor de uma função secundária em alguma atividade de parte? Desnecessário dizer que nada disso cabe dentro dos limites semânticos do art. 5º, LV, CRFB. Portanto, a ideia de um dever de auxílio é problemática em si. Segundo, porque a doutrina oferece formulação incrivelmente vaga: “’o tribunal tem o dever de auxiliar as partes na superação das eventuais dificuldades que impeçam o exercício de direitos ou faculdades ou o cumprimento de ónus ou deveres processuais’. Cabe ao órgão julgador providenciar, sempre que possível, a remoção do obstáculo (SOUSA, 1997, p. 65; BARREIROS, 2013, 199-201)”. Ora, o que é “remoção” e a que “obstáculos” se refere? Como definir esse dever-poder do juiz com algum grau de previsibilidade e saber, v.g., se condiz ou não com a garantia da imparcialidade objetivo-funcional (se o juiz está exercendo função de parte)? Terceiro – e que deriva dos motivos anteriores, máxime do segundo –, porque tal dever não é unanimidade sequer entre os próprios cooperativistas. (....). Mas a doutrina portuguesa, menos acanhada porque bem resolvida, no ponto, vai direto ao ponto, como reporta Fredie Didier Jr: `para cumprir este dever, poderia o órgão julgador, por exemplo, sugerir a alteração do pedido, para torná-lo mais conforme o entendimento jurisprudencial para casos como aquele`. Impossível ser mais claro! O não-dito se fez dito. Escancaradamente. Indubitavelmente. Não falta uma letra aí. Dizendo sem peias: o dever de auxílio é uma autorização para o juiz ajudar a parte a vencer. Não se trata de simplesmente franquear a manifestação sobre questão conhecida de ofício para oportunizar influência e evitar surpresa. É muito mais que isso: o juiz se põe ao lado da parte e lhe dá toda a orientação necessária para vencer. Ele se torna advogado da parte. Deixa de ser juiz, ou de ser apenas juiz. Nada pode explicar com mais clareza o que significa a ideia de um “juiz paritário no debate”. Nada incorpora com tanta fidelidade a figura do juiz-contraditor. Com essa formulação, finalmente o dever de auxílio recebe um conteúdo normativo próprio, adquire status de instituto jurídico autônomo – mas não novo, como logo veremos –, ainda que visceralmente inconstitucional (desnecessário descer novamente aos porquês disso violar a imparcialidade, tanto em sentido subjetivo-psíquico quanto objetivo-funcional/impartialidade, e o contraditório). (...). Está mais do que evidente o caráter profundamente autoritário que subjaz o dever de auxílio. Ele assenta em tradição inautêntica ao Estado Democrático de Direito e não se mostra referencial teórico viável para quem busca uma divisão de tarefas verdadeiramente equilibrada entre os sujeitos processuais (i.é, hostil a qualquer proposta de hipertrofia das funções de qualquer deles, especialmente do juiz). Se não acende a luz vermelha da repulsa, deve acender ao menos a luz amarela do cuidado. Verdade seja dita, a doutrina brasileira ainda não chegou ao nível de Klein. Por enquanto, é não-dito entre nós (quando muito, é quase-dito). Se se tornará dito, o tempo dirá”. O caráter mítico da cooperação processual). Disponível em: https://bit.ly/336a4Ne.
[49] Defendendo esse desacerto, entre outros, destaca-se Daniel Mitidiero: “Juiz, portanto, além de desempenhar funções instrutórias (poder instrutório), teria deveres de cooperação para com as partes, destacando-se o dever de auxílio, consistente em ´auxiliar as partes na remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos ou faculdades ou do cumprimento de ônus ou deveres processuais`”. Colaboração no processo civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. 2 ed. São Paulo: RT, 2011, p. 141/142.
[50] LUCCA, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade processual: a liberdade das partes no processo. São Paulo: RT, 2019, p. 138.
[51] Nesse sentido: CARVALHO FILHO, Antonio. Desmistificando o processo justo: pela reconstrução do devido processo legal. Disponível em: https://bit.ly/2oIy4as.
[52] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Os poderes do juiz. In MARINONI, Luiz Guilherme (Org.). O processo civil contemporâneo. Curitiba, Juruá, 1994, p. 95.
[53] SOUZA, Artur César. A parcialidade positiva do juiz. São Paulo: RT, 2008, p. 211.
[54] COSTA, Eduardo Jose da Fonseca. Processo: garantia de liberdade ou garantia de livramento? Disponível em: https://bit.ly/2q9iCEH.
[55] CAZARIM, Andréa Cristina. Prova de ofício e imparcialidade do juiz: um embate entre o instrumentalismo processual e o garantismo processual. Monografia. Faculdades Integradas de Aracruz – FAACZ. Aracruz/ES, 2018, p. 78). Monográfico gentilmente cedido pela autora e que ainda, infelizmente para nós, não foi publicado.
[56] “(...) ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído”. Aqui cabe uma explicação quanto à primeira parte do parágrafo (Nos casos previstos em lei). É que, nesse caso, o legislador já estabeleceu previamente as denominadas “desigualdades materiais”, a exemplo das relações de consumo, em que a legislação de regência (art. 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor) já informa às partes a possibilidade de inversão do ônus probatório em razão do direito envolvido e da hipossuficiência ínsita à relação. Uma espécie de equalização legal visando equilibrar a relação jurídico processual e eliminado o arbítrio judicial na produção probatória. Nesse sentido: ROSSI, Júlio César. A distribuição do ônus da prova nas relações de direito privado: será preciso, mesmo, mudar? In NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. (Coords.). Revista de Direito Privado – RDPriv. nº 51. jul-set. São Paulo: RT, 2012, p. 87/111.
[57] Valiosa é a conclusão de Nelson Nery Junior ao estabelecer que “bastaria a Constituição Federal de 1988 ter enunciado o princípio do devido processo legal, e o caput e os incisos do art. 5º, em sua grande maioria, seriam absolutamente despiciendos”. Princípios do processo na Constituição Federal. 10 ed., São Paulo: RT, 2010, p. 87.
[58] “Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida”.
[59] “Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil. (...)”.
[60] “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.
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