Os entusiastas dos enunciados produzidos em “Jornadas”, “Fóruns” ou “Congressos” costumam salientar que eles não teriam o atributo da vinculatividade. Mas a preocupação deste que vos escreve não se apega apenas ao espectro dogmático-jurídico da questão, e visa sugerir aos estudiosos uma pauta metodológica mais abrangente, capaz de enfrentar dois pontos: i) a força semiótica ou simbológica dos enunciados “doutrinários”; e ii) um grave problema de teoria do conhecimento (mais precisamente o papel do sujeito na interação com o seu objeto de estudo) que demonstraremos abaixo.
Esses dois pontos costumam ser prontamente rechaçados com o chavão segundo o qual tais enunciados “doutrinários” não seriam capazes de vincular os tribunais (eles teriam mera papel interpretativo). Mas há uma força semiótica escondida por trás dos enunciados: eles, mais e mais, ingressam no teor da fundamentação das decisões das cortes superiores, fomentando a criação de precedentes (com força vinculante) ou repercutindo, isoladamente, sobre o convencimento do colegiado ou do juízo responsável pela decisão monocrática.
Primeiro ponto – a força simbológica e a metalinguagem dos enunciados
É impossível negar que os enunciados das jornadas gozam de inegável força (ou “prestígio”). Os mais conhecidos decorrem de eventos organizados pelo Conselho da Justiça Federal, expressamente previsto pela Constituição Federal como órgão integrante do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, parágrafo único, inciso II). Essa informação não consta desse texto sem uma razão específica: é corrente, entre os estudiosos de semiótica, a utilização da expressão “semiosfera” para indicar, ao menos no âmbito teórico de Iuri Lótman, o “espaço cultural habitado pelos signos”[1]. Neste sentido, a biosfera está para a biologia do mesmo modo que a semiosfera está para o jogo valorativo dos objetos culturais (ou daquilo que Miguel Reale chamava de ser enquanto dever ser[2]).
Quando o próprio Superior Tribunal de Justiça chancela eventos dessa natureza, é praticamente automática a inserção de forças culturais sobre o teor dos enunciados. A repercussão dada por parte da doutrina aos 107 enunciados da I Jornada de Direito Processual Civil (pomposamente divulgada pelo website do STJ[3]) é, justamente, a força da metalinguagem quase-vinculante por trás desses enunciados.
Não há espaços, aqui, para divulgar um estudo empírico exauriente da questão, mas é de se sugerir à comunidade jurídica uma análise causal-explicativa (processologia[4]) de como esses enunciados migram para o dia a dia forense dos tribunais e dos juízes. Uma pesquisa livre da “Jurisprudência do STJ”, em seu website, com as palavras “enunciado” e “jornada”, até o dia 04.10.2017, resulta no encontro de 4 Acórdãos de “recursos repetitivos”, 183 Acórdãos; e 5.886 decisões monocráticas. Em muitos casos, os enunciados não constam das ementas, mas eles são arrolados no corpo da “referência legislativa” do julgado.
Esses enunciados doutrinários convivem num sério e tenso paradoxo: não pretendem vincular, mas atuam, na prática, como elementos normativos por conveniência. Veja-se, e. g., o enunciado n.º 76 do FONAJE: “a ação penal relativa à contravenção de vistas de fato dependerá de representação”. Para além dos problemas por trás da divulgação desses enunciados pelo website Conselho Nacional de Justiça[5] (em outro exemplo de chancela semiótica), é de se questionar a legitimidade de se fundamentar decisões apenas com base em enunciado que, claramente, afronta o art. 22, inciso I, do Constituição Federal (é de competência privativa da União a legislatura sobre direito processual).
O verdadeiro problema dos enunciados é que eles nascem com a pretensão de não vinculatividade, mas descambam, muitas vezes, como elementos estruturantes de decisões judiciais ou, o que é pior, como justificativas “doutrinárias” para chancelar teses escancaradamente contra legem. Exemplo: o enunciado n.º 341 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, o FPPC, prevê que “o prazo para ajuizamento de ação rescisória é estabelecido pela data do trânsito em julgado da decisão rescindenda, de modo que não se aplicam as regras dos §§ 2.º e 3.º do art. 975 do CPC à coisa julgada constituída antes de sua vigência”. Ora, o próprio CPC/2015 é claro em asseverar que a contagem se dá do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo, não do trânsito em julgado da decisão de mérito que se quer rescindir... E, talvez, pesquisa jurisprudencial aponte que determinado órgão jurisdicional resolveu “acolher” o enunciado (e não a lei) – afinal, é pomposa (mas invisível) a força semiótica dos enunciados.
Segundo ponto – um problema de teoria do conhecimento: a relação entre o sujeito cognoscente e o seu objeto de estudo... O enunciado é um sujeito cognoscente colegiado?
Costuma-se afirmar que texto e norma não se confundem. Em síntese, a norma seria o resultado da interpretação que se imputa ao texto. Já em 1957 – dois anos antes de seu falecimento –, Tullio Ascarelli publicou artigo no qual defendeu que a norma não seria um objeto da interpretação: na verdade, o texto é interpretado, e o produto disso é, justamente, a norma. Para Ascarelli, o intérprete vê-se obrigado a fazer escolhas, ora determinando a ratio do texto analisado, ora identificado a hipótese legal e abstrata em que o fato acertado se enquadra, “e a formulação concreta da norma nasce justamente do concurso dessas escolhas, mediante as quais o intérprete se insere na produção do direito e os princípios se positivam, tornando-se imperativos”[6].
Ora, a norma jurídica não tem vida própria por si mesma[7]. Neste sentido, o que seriam, então, enunciados “doutrinários”?
O problema é bastante delicado. Quando lemos a atividade hermenêutica da doutrina, temos condições de lidar com uma série de questões que não podem ser ignoradas. O leitor de Cândido Rangel Dinamarco saberá que lida com um tipo de discurso científico, uma escola, um meta-linguajar. O leitor de Ovídio Araújo Baptista da Silva, por outro lado, saberá que tem contato com viés de pensamento diverso, oxigenado outros caracteres, com outras balizas. A processualística da escola mineira, ainda, traz outras manifestações, outra episteme.
Mas ao lermos enunciados, lidamos exatamente com o que?! Um colegiado que não conhecemos? Se não se pretende vincular, qual é a verdadeiro objetivo da produção febril de enunciados? “Uniformizar entendimentos” com base em votos de quem?!
Já temos suficientes problemas com os “enunciados de súmula de jurisprudência dominante”, sendo angustiante encontrar a assim chamada ratio decidendi dos precedentes mesmo nos países historicamente enviesados ao sistema common law[8], sendo famosa a menção de Arthur Lehman Goodhart, ainda em 1931, de que essa é a expressão mais nebulosa no English Law[9].
Este texto não passa de um ensaio com algumas reflexões a respeito da repercussão cultural e semiótica dos enunciados “doutrinários”, aqui vistos como atalhos argumentativos que, em alguma medida, são perigosos por migrarem ao inconsciente coletivo e ao cotidiano forense.
[1] MACHADO, Irene. Semiótica da Cultura e Semiosfera. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2007, p. 16.
[2] Sobre o criticismo ontognoseológico de Miguel Reale, cf. REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010; REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. 1.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005; e REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
[3] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. I Jornada de Direito Processual Civil aprova 107 enunciados. Disponível em: https://goo.gl/M1oAxJ.
[4] Em texto recente, sugerimos o seguinte espectro epistêmico do processo: 1) a dogmática processual (estudo de viés normativo e analítico dos fatos jurídicos processuais); 2) a processologia (estudo causal-explicativo do fenômeno processual); e 3) a política legislativa processual (cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, ano 25, n. 98, abr./jun. 2017, p. 223-246).
[5] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Enunciados Fonaje. Disponível em: https://goo.gl/MDkV7T.
[6] Cf. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno – volume I. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 73-74.
[7] COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica – crítica ao realismo linguístico de Paulo de Barros Carvalho. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 43.
[8] Segundo Fiona Cownie, Anthony Bradney e Mandy Burton, o termo ratio decidendi continua a ser matéria muito controvertida na doutrina inglesa – “what we mean precisely by the term ‘ratio decidendi’ remains a matter of dispute” (COWNIE, Fiona; BRADNEY, Anthony; BURTON, Mandy. English Legal System in Context. 6. ed. Londres: Oxford University Press, 2013, p. 91).
[9] GOODHART, Arthur Lehman. Determining the ratio decidendi of a case. Yale Law Journal, v. 40, n. 2, dez. 1930, p. 162.
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