Princípios de Processo Civil da U.R.S.S. e das Repúblicas Federadas, de V. Terebilov, V. K. Poutchinski e V. Tadevosián - Por Marcelo Pichioli da Silveira

27/10/2017

 Confira a análise no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=ii2wk_oDkHg&feature=youtu.be 

Encontrei este pequeno livro (148 páginas) num sebo e, imediatamente, fiquei interessado em seu conteúdo. Como seria o processo civil soviético? Foi com a pretensão de responder essa pergunta — ainda que em “cognição sumária” — que decidi comprá-lo. Hoje é dia de expor suas ideias centrais em nossa coluna do Empório do Direito.

O livro é escrito por três autores (V. Terebilov, K. Poutchinski e V. Tadevosián), tendo três partes (a 1.ª para a “evolução dos Princípios da Justiça Socialista”; a 2.ª para os “princípios de Processo Civil da URSS e das Repúblicas Federadas”; e a 3.ª para o “Processo Civil Soviético”) e dois anexos, um sobre o “Sistema Judicial Soviético” e seu Ministério Público; outro intitulado “Notas sobre o Processo Civil Soviético” (extraída da obra Poderes e Deveres do Juiz na conciliação Judicial, de Pessoa Vaz).

“Imediatamente após a revolução”, como consta no começo da obra, os princípios de justiça socialista “foram-se plasmando nos primeiros decretos do Poder Soviético, como, por exemplo, no Decreto n.º 1 sobre os tribunais e nos sucessivos decretos referentes a esses princípios promulgados em 1917 e 1918”, sendo que “o Programa do Partido Comunista da União Soviética aprovado pelo XXII Congresso do PCUS, constituiu um novo guia da vida de desenvolvimento e aperfeiçoamento da Justiça socialista”[1]. De seu conteúdo, poder-se-ia concluir que o caractere principal da justiça soviética seria a “crescente participação das organizações sociais na administração da justiça”[2]. Em dezembro de 1958, “o Soviete Supremo da U.R.S.S. aprovou os novos Fundamentos da legislação sobre o sistema judicial da União das RSS e das repúblicas federadas” [3]. Posteriormente, os princípios foram fixados na então Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, assim como nas constituições das repúblicas federadas e autônomas da época[4].

Ao estudar os tais “princípios”, notei muito rapidamente o caráter hiperpublicista, totalitário e estatolatário inerente à processualística soviética. Antes da leitura da obra, Eduardo José da Fonseca Costa já me havia adiantado o naipe do viés totalitarista da URSS sobre seu processo, advertindo, aliás, que esse adjetivar do processo (um processo civil; um processo penal; e um processo trabalhista) é comum, justamente, nos países totalitários. Sem a pretensão de reduzir a historiografia à legislação vigente da época, a leitura do art. 2.º do Código de Processo dos soviéticos sugere este perfil “super-estatal”:

 

Redação traduzida (por Eduardo José da Fonseca Costa)

Redação original

“Art. 2.º. São o conhecimento justo e a rápida resolução das causas civis, a fim de proteger o sistema social da URSS, o sistema socialista econômico, a propriedade socialista, os direitos e liberdades socioeconômicos, políticos e pessoais garantidos pela Constituição, os interesses dos cidadãos protegidos por lei, bem como os direitos e interesses legítimos das empresas estatais, instituições, organizações, fazendas coletivas e outras organizações cooperativas, suas associações e outras organizações públicas. O processo civil deve contribuir para o reforço da legalidade socialista e a prevenção de infracções, educar os cidadãos para a execução constante das leis soviéticas e o respeitar às regras das relações socialista”.

Статья 2. Задачи гражданского судопроизводства Задачами советского гражданского судопроизводства являются правильное и быстрое рассмотрение и разрешение гражданских дел в целях охраны общественного строя СССР, социалистической системы хозяйства и социалистической собственности, защиты социально-экономических, политических и личных прав и свобод граждан, гарантированных Конституцией СССР и советскими законами, и охраняемых законом интересов граждан, а также прав и охраняемых законом интересов государственных предприятий, учреждений, организаций, колхозов, иных кооперативных организаций, их объединений, других общественных организаций. Гражданское судопроизводство должно способствовать укреплению социалистической законности, предупреждению правонарушений, воспитанию граждан в духе неуклонного исполнения советских законов и уважения правил социалистического общежития

 

Ora, Karl Marx e Friedrich Engels previram que o surgimento “final” do comunismo resultaria no fim do Estado; o direito sucumbiria junto com ele: “na fase final do comunismo em que cada um trabalhará segundo as suas possibilidades e receberá segundo as suas necessidades — uma produção bem organizada permitirá satisfazer as necessidades legitimas de todos”[5].  Logo após a revolução de 1917, havia entre bolcheviques e socialistas revolucionários um “sentimento revolucionário da Justiça”: as regras envolvendo provas e processo formuladas pelas leis antigas “só deveriam ser observadas desde que não contrariassem «o sentimento de justiça das classes trabalhadoras»”, surgindo inclusive os chamados “Tribunais de consciência proletária”, supostamente “libertos [...] do direito antigo e dos seus apertados formalismos”[6]. No bojo dessa jurisdição renovada, começou a pregação doutrinária de que os “tribunais populares” teriam de julgar “de acordo com os interesses e vontade «da consciência popular» segundo «a consciência socialista da justiça»”[7], num direito que eduque os cidadãos:

 

[...] o poder soviético apressou-se por reconstruir um Estado que, longe de se estiolar, se tornou cada vez mais forte e que teve assim de recorrer ao instrumento tradicional que é o direito. Foi assim no campo da organização judiciária e no direito processual civil. Em 7 de julho de 1923, depois de um amplo período de liberdade processual, promulga-se um novo Código de Processo Civil ampliado pela Reforma Processual de 1936. Estava-se num período dominado pelo seguinte discurso de Estaline: «Nós somos pelo definhamento do Estado mas ao mesmo tempo somos por um reforço da ditadura do proletariado a qual representa, entre todas as formas de Estado que existiram até aqui a mais poderosa e forte autoridade. Desenvolver ao máximo o poder do Estado, tendo em vista realizar as condições em que ele possa desparecer: eis a fórmula marxista. É uma contradição, dir-se-á! Sim, aí existe uma contradição. Mas esta contradição é a própria via e reflecte completamente a dialética marxista» (Estaline, Relatório ao 18 Congresso do Partido)[8].

 

Neste sentido, as leis processuais da URSS asseveraram que os tribunais deveriam consolidar a legalidade, sempre “desenvolvendo entre os cidadãos a consciência comunista”[9].

Aí o papel educativo da jurisdição, hábil ensinar os cidadãos que, numa “sociedade comunista, sociedade de iguais, o direito, instrumento de coacção e opressão, não deveria existir”[10].

Esse aspecto pedagógico da jurisdição é exaustivamente mencionado durante a obra, sendo ela um “instrumento de educação” (inspiração em Vladimir Ilyich Ulyanov, o Lenin[11]), uma “escola de educação no espírito da disciplina social desconhecida e impossível nos países capitalistas” (como comentou Pessoa Vaz[12]), numa verdadeira concepção de “propaganda”, baseada no “interesse social”, na “justiça” e na “moral”[13], no incessante “respeito pelas regras da vida em comum socialista” (art. 3.º da Lei sobre Organização Judiciária de 1938), com uma espécie de extensão subjetiva da coisa julgada, ao ponto de o art. 15 dos “Princípios” ter estabelecido que as decisões dos tribunais vinculariam “os elementos, individuais ou colectivos, da sociedade soviética: organizações, empresas, Kolkhozes[14], funcionários e cidadãos”[15]. O “caráter educador” ou “pedagógico” da justiça da URSS é mencionado, ainda, nas páginas 43, 44, 67 e nas notais finais de Pessoa Vaz.

Os juízes soviéticos eram eleitos, exigindo a Constituição de 1936 um caráter popular da justiça soviética. O coletivismo, assim, migrava ao Judiciário. Isso explica, p. ex., a naturalidade com a qual se dizia que o tribunal poderia, oficiosamente, “tomar a iniciativa de reunir as provas nos processos que lhe são submetidos”[16]. Tudo visava resolver o clamor popular, e os juízes tinham de “realizar periodicamente reuniões nas fábricas, Kolkhozes” etc[17]. As partes não poderiam celebrar negócios jurídicos processuais: era nula a renúncia ao direito de recorrer[18]; os tribunais não se vinculariam aos pedidos, já que poderiam “estatuir ultra petita”[19], as decisões eram tomadas para “fortalecer a legalidade socialista”[20], tendo os juízes que “prestar ajuda activa aos cidadãos”[21], e a renúncia de direitos não era um ato jurídico stricto sensu, pois o efeito só se completaria com a chancela do tribunal[22] (que, aparentemente, avaliaria o “justo do socialismo” por trás da negociação das partes) — com efeito, “as partes [até] têm o direito de pôr fim à causa por transacção [...], contanto que não cometam actos ilegais ou a transacção conciliatória não vise prejudicar os interesses do Estado, das organizações sociais e dos cidadãos”[23].

O direito probatório se guiaria “pela lei e pela consciência jurídica socialista”[24]. A arbitragem também era estatal, especificamente constituída para “litígios de natureza patrimonial entre as empresas e instituições do Estado assim como entre as organizações cooperativas (excepto os kolkozes) e organismos sociais não constituem objeto de exame jurisdicional”, de maneira que “a arbitragem do Estado resolve os litígios patrimoniais de forma a assegurar o fortalecimento da disciplina contratual e do plano, assim como da autonomia econômica socialista”, e essa arbitragem estatal poderia ter início oficioso, sendo muito austera por não admitir recursos[25].

Nossa opinião: por alguma razão — e não nos atreveremos, aqui, a explorar todas essas questões —, os autores hiperpublicistas do processo civil brasileiro sustentaram, justamente, o “escopo educacional” da jurisdição, que “ensinaria” aos jurisdicionados sobre seus direitos e deveres. Assim, só para exemplificar, foram as conhecidas lições de Cândido Rangel Dinamarco[26]. Há quem defenda, abertamente, um suposto “escopo educativo” do processo: Celso Hiroshi Iocohama, Camila Kienen Bruno e Joice Duarte Gonçalves Bergamaschi, por exemplo, dizem — numa retórica completamente vazia de conteúdo — que teríamos de “reconhecer o relevante papel da função jurisdicional para a manutenção de uma sociedade em evolução, assegurando-se padrões de respeito dos direitos dos sujeitos como limites e contornos ético-jurídicos, viabilizando-se uma expectativa de segurança para a prática dos atos da vida”[27]. O problema desses discursos é que eles alçam o juiz ao “protagonismo heroico de ‘salvador da pátria’”, como escreveu Antônio Carvalho Filho[28]. Há várias estirpes publicistas, como aquela revelada por Ovídio Araújo Baptista da Silva (em seu Processo de Ideologia — obra, aliás, que examinaremos em breve nessa coluna), que costumam sustentar, com certa “naturalidade”, poderes ampliados aos juízes.

A Carta de Jundiaí, assinada por estudiosos preocupados com essas questões, condensa as denúncias que a processualística de matriz garantista começou a tecer contra esse pensar. “Não por outra razão”, consta do referido documento, que entidades como a Associação Brasileira de Direito Processual “tem sua missão institucional radicada em dois critérios materiais básicos: 1) combater o hiperpublicismo processual que tem alçado o juiz a um – excessivo – protagonismo, e 2) renovar a metodologia dogmático-processual a partir de recentes conquistas filosóficas, mormente nas áreas da lógica, epistemologia, hermenêutica e linguagem”.


[1] TEREBILOV, V.; POUTCHINSKI, V. K.; TADEVOSIÁN, V. Princípios de Processo Civil da U.R.S.S. e das Repúblicas Federadas. Trad. Soveral Martins. Coimbra: Centelha, 1978, p. 16-17.

[2] Idem, p. 18.

[3] Idem, p. 19.

[4] Idem, p. 22.

[5] Idem, p. 25-26.

[6] Idem, p. 26-27.

[7] Idem, p. 27.

[8] Idem, p. 28.

[9] Idem, p. 32.

[10] Idem, p. 33.

[11] Idem, p. 35.

[12] Idem, p. 35.

[13] Idem, p. 36.

[14] Segundo Circe Mary Silva da Silva Dynnikov e Vladimir Ivanocitch Dynnikov, “os kolkhozes (em russo, kollektivnoe khoziaistvo) formavam agremiações comunitárias para explorar os meios de produção que os geriam coletivamente e repartiam os lucros igualmente, mantendo a propriedade de todos. Os sovkhozes (em russo, sovietskoe khoziaistvo) eram instituições do Estado que empregavam seus funcionários com remuneração regulamentada” (DYNNIKOV, Circe Mary Silva da Silva; DYNNIKOV, Vladimir Ivanocitch. Ideologia em problemas matemáticos nos livros didáticos soviéticos da pré-revolução até 1960. Revista Brasileira de Educação, v. 19, n. 56, Rio de Janeiro, jan./mar. 2014).

[15] TEREBILOV, V.; POUTCHINSKI, V. K.; TADEVOSIÁN, V. Princípios de Processo Civil da U.R.S.S. e das Repúblicas Federadas. Trad. Soveral Martins. Coimbra: Centelha, 1978, p. 36-37.

[16] Idem, p. 40.

[17] Idem, p. 42.

[18] Idem, p. 49.

[19] Idem, p. 51 e 57

[20] Idem, p. 67.

[21] Idem, p. 68.

[22] Idem, p. 69.

[23] Idem, p. 102-103.

[24] Idem, p. 106.

[25] Idem, p. 125-128.

[26] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil (volume 1). São Paulo: Malheiros, 2001, p. 128-129.

[27] IOCOHAMA, Celso Hiroshi; BRUNO, Camila Kienen; BERGAMASCHI, Joice Duarte Gonçalves. O escopo educativo do processo e a educação da sociedade por meio da tutela jurisdicional. Revista Jurídica Cesumar, jan./abr. 2017, v. 17, n. 1, p. 13.

[28] CARVALHO FILHO, Antônio. Precisamos falar sobre o instrumentalismo processual. Empório do Direito, Florianópolis, 2017, disponível em goo.gl/yoxdmG. Acesso em 19 out. 2017.

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