Você sabe o significa Padrão Daubert? A questão da Junk Science no depoimento de especialistas no processo

05/08/2015

Muitas vezes além das testemunhas presenciais ou dos fatos, especialistas são convocados a emitir opiniões técnicas, bem assim prestar depoimentos em processos judiciais. A pergunta, então, é: quem é qualificado para ser testemunha pericial? Que peso deve ser dado ao depoimento de uma testemunha pericial? O que significa Junk Science?

Para que possamos iluminar a compreensão da questão, vale invocar o caso americano conhecido como dos Daubert. Tratava-se de uma ação de ressarcimento pelo uso de um medicamento anti-náusea por mulheres nos primeiros meses de gravidez, acarretando, com isso, malformações nos fetos. A comunidade jurídica foi chamada a debater a problemática da falta de controle de produção das provas periciais e buscou estabelecer critérios objetivos de admissibilidade da prova advinda do testemunho científico e do testemunho psicológico.

As atenções ao testemunho científico de especialistas começaram a se focar na admissão da Junk Science, ou seja, o depoimento de peritos em temas e pesquisas que não eram acolhidos/consagrados pela comunidade científica, mas que eram úteis para o sistema legal de alguma maneira. Por exemplo, o testemunho de representantes das companhias de tabaco sugerindo que fumar cigarros não causa câncer foi usado como um exemplo de junk science fora do campo da psicologia.[1]

O caso foi Daubert vs. Merrell Dow Pharmaceuticals, julgado em junho de 1993, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, merece ser aprofundado, já que ditou um novo modo de enfrentamento da questão. A Sra. Daubert fez uso do medicamento prescrito (Bendectin) para aliviar a náusea durante a gravidez, sendo que os filhos nasceram com problemas congênitos e o fabricante, o laboratório Merrel Dow, foi processado[2].

Os advogados dos Dauberts foram armados com uma pesquisa que concluía ser o remédio Bendectin causador dos defeitos congênitos. Entretanto, o juiz decidiu que a pesquisa não satisfazia os critérios para admissibilidade e acabou excluindo o testemunho dos especialistas que tentavam provar a ligação entre o uso do medicamento e os defeitos das crianças, proferindo decisão desfavorável aos autores. Os Dauberts apelaram para um tribunal superior, e este, também decidiu em favor do Merrell Dow. Mais uma vez os Dauberts recorreram, desta vez, à Suprema Corte dos Estados Unidos – sob a questão de se o juiz na corte original agiu de maneira adequada ao não permitir que a pesquisa fosse admitida como prova.

Para resolver a delicada questão, a Suprema Corte americana se baseou na regra 702 da “Federal Rules of Evidence”, que trata especificamente do “expert testimony”, nada regendo sobre o “general acceptance test”, o qual foi considerado pela Suprema Corte como uma exigência rígida para produção da prova científica[3].

O réu (laboratório Merrel Dow) argumentou que o juiz tinha decidido de forma correta e que os altos padrões de admissibilidade da prova eram necessários para proteger os jurados dos “xamãs científicos que, sob o disfarce de uma suposta experiência, estão dispostos a atestar quase qualquer conclusão para atender às necessidades dos litigantes com recursos suficientes para pagar sua caução.[4]

A Suprema Corte decidiu que o caso fosse julgado novamente e que fosse concedido ao juiz amplo poder discricionário para se decidir o que se qualifica e não se qualifica como prova científica. Na verdade, a decisão da Suprema Corte em Daubert deu aos juízes uma ampla margem de manobra para decidir o que os jurados seriam autorizados a ouvir. A Corte identificou o papel do juiz como de um guardião em relação a todo o testemunho científico, e indicou, que para que as evidências científicas sejam relevantes elas devem estar relacionadas ao assunto em questão.

Para tentar superar esses obstáculos, a Suprema Corte norte americana utiliza, hoje em dia, uma padronização de critérios para determinar se é ou não admissível uma nova tecnologia nos Tribunais, conhecida como “Padrão Daubert”. Esta norma possui cinco pontos que buscam cercar a nova técnica do maior grau de certeza possível antes que as provas produzidas por ela tenham efeito legal (Garland, 2004). Os cinco pontos são:

  • Teste empírico: é mandatário que a técnica seja testável, segundo os padrões científicos vigentes.
  • Publicações científicas: ela já deve ter sido alvo de publicação em revistas científicas, passando pelo processo de revisão por pares.
  • Conhecimento das taxas de erro: deve haver informações conhecidas sobre níveis de significância, graus de certeza, acurácia e precisão.
  • Padronização e controles: para ser utilizada, a nova tecnologia deve já ser padronizada e controlável.
  • Aceita pela comunidade científica – embora sempre possa haver controvérsia, de forma geral, a comunidade científica deve já reconhecer a técnica.[5]

Não são critérios infalíveis, mas constituem um caminho no sentido de incorporar uma padronização e segurança aos avanços teóricos nos Tribunais, suplantando a chamada “Frye – aceitação geral”, que o Congresso tinha adotado em 1975, sobre a qual muitos Tribunais tinham confiado por anos.

A decisão Daubert provocou uma avalanche de processos judiciais e decisões sobre o testemunho de especialistas. Supremos tribunais de apelação e numerosos estaduais têm seguido o seu raciocínio para determinar a admissão de prova pericial em seus tribunais de primeira instância. No entanto, os tribunais supremos ou apelação de pelo menos sete Estados, incluindo Califórnia, Nova York, Illinois e Flórida se recusaram a abandonar as suas próprias formulações da norma Frye[6], tema ainda em debate.

Ao decidir o complexo caso “Daubert”, a Suprema Corte americana dividiu opiniões. Entretanto concordou que o “general acceptance test” não poderia ser o único critério para admitir ou excluir a evidência científica. A corte não discordou de que se pode admitir somente provas científicas válidas, no entanto, afirmou que a validade científica deve levar em consideração vários critérios como:

1) a controlabilidade e falsificação da teoria ou da técnica que estão à base das provas;

2) o percentual de erro notório ou potencial e o respeito pelos padrões relativos à técnica empregada;

3) a circunstância que a teoria ou a técnica em questão são objetos de publicação científica;

4) se há controle da parte e de outros profissionais; e,

5) o consenso geral da comunidade científica interessada.[7]

Embora estejamos em sistemas processuais distintos, cada vez mais é importante discutir-se os padrões probatórios, ou seja, o standarts que serão utilizados como critério de valorização dos depoimentos de “especialistas” no contexto probatório. Aliás, no Brasil despontam algumas pesquisas sobre a problemática, como se pode apurar em Geraldo Prado, Manuel Monteiro Guedes Valente, Nereu Giacomolli, Edson Damas da Silveira (aqui) e Zulmar Vieira Coutinho (aqui), dentre outros.

O que importa sublinhar é que devemos, cada vez mais discutir não só a possibilidade de se ouvir especialistas, mas também a base teórica manejada para se valorar a credibilidade de suas assertivas. O que o “Padrão Daubert” pode auxiliar é o de traçar mecanismos aptos para evitar que junk sience possa ser instrumentalizada com fins retóricos e inverificáveis, problemática potencializada em julgamentos perante o Júri.


Notas e Referências

[1] HUSS, T. Matthew. Psicologia Forense: pesquisa, prática clínica e aplicações. Porto Alegre: Artmed, 2009.

[2] COHEN, Ronald Jay; SWERDILIK, Mark E; STURMAN, Edward D. Testagem e Avaliação Psicológica: Introdução a testes e medidas. McGraw-hill, Obra originalmente publicada sob o título Psychological Testing and Assessment: An introduction to tests and measurement, 8th edition. 2012.

[3] Regra 702 da US Supreme Court: “If scientific, technical, or other specialized knowledge will assist the trier of fact to understand the evidence or to determine a fact in issue, a witness qualified as an expert by knowledge, skill, experience, training, [509 U.S. 579, 8] or education, may testify thereto in the form of an opinion or otherwise.”

[4] COHEN, Ronald Jay; SWERDILIK, Mark E; STURMAN, Edward D. Testagem e Avaliação Psicológica: Introdução a testes e medidas. McGraw-hill, Obra originalmente publicada sob o título Psychological Testing and Assessment: An introduction to tests and measurement, 8th edition. 2012.

[5] GARLAND, B. (2004). Neuroscience and the law: brain, mind and the scales of justice: a report an on invitational meeting convened by the American Association for the Advancement of Science and the Dana Foundation. New York: Dana Press.

[6] LYONS, Thomas. Frye, Daubert and Where Do We Go From Here? Disponível em: http://www.sfandllaw.com/Articles/Frye-Daubert-and-Where-Do-We-Go-From-Here.shtml.

 [7] TARUFFO, Michele. Le prove scientifiche nella recente esperienza statuniense. RFDPC, ano L, n.1, março de 1996, Itália: Milano, p. 233.

 

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