Violência e natureza humana (Parte 4) - Por Atahualpa Fernandez

24/11/2017

Leia também: Parte 1, Parte 2, Parte 3

“-Hija, te quiero explicar el libre albedrío.
-Vale, cuando acabe los deberes.
-Es que luego tengo que arreglar la lámpara.
-Pues mañana.

-Ok.” 

Aparição dos grandes cérebros e o livre-arbítrio (2)

Livre-arbítrio é a liberdade para eleger outra coisa e isso não o podemos fazer nem psicopatas nem não-psicopatas. A um psicopata não se lhe pode pedir que responda ao castigo ou que mostre as condutas morais próprias de um cérebro moral, porque não o tem. Da mesma forma, a uma pessoa com cérebro moral normal tampouco se lhe pode pedir que tenha as condutas de um psicopata. Eu não posso sair à rua e violar a primeira mulher que desperte minha atenção, roubar o relógio de um indivíduo simplesmente porque me encaprichei com ele (e de passagem dar-lhe um tiro se mostra resistência) ou roubar um banco [estamos caricaturizando um pouco; mas, se o sofrido leitor (a) suspeita que os exemplos utilizados tratam de situações extremadamente adornadas ou extravagantes, intente, em um domingo qualquer, atuar como um verdadeiro psicopata por algum shopping de sua cidade]. Simplemente eu faço o que está em minha natureza fazer e um psicopata faz o que está na sua, naturezas que nem ele nem eu elegemos. Ter livre-arbítrio seria poder tomar o outro caminho, eleger a outra opção; ter as duas opções (e poder efetivamente levar a cabo a elegida), não ter somente uma.

Em resumo, a conduta do ser humano, para bem ou para o mal,  evolucionou da mesma maneira que a do resto dos animais: “tendremos más algoritmos, más lineas de código de programación si se quiere, pero no dejamos de ser criaturas programadas por la selección natural”. O próprio autocontrole (a capacidade de esperar, de inibir determinadas condutas) de que tanto presumimos e nos orgulhamos tampouco nos situa à margem da natureza. De fato, se podemos exercer esse autocontrole é porque temos umas fibras nervosas que vão desde o córtex cerebral ao sistema límbico e que cumprem uma função inibidora de nossos instintos básicos (e o controle que temos é só parcial). “Y esas fibras las ha puesto ahí la selección natural y lo ha hecho por una buena razón, porque en animales sociales como los humanos inhibir esos instintos en situaciones grupales hace que pasen más copias de genes a las generaciones futuras” (P. Malo).

Assim as coisas, a ideia de livre-arbítrio fundada na capacidade de autocontrole ou controle volitivo (embora selecionada pela seleção natural porque é adaptativa) não somente não se salta as leis da evolução (e nem provém de Céu), senão que, apesar de todas as nossas esperanças e intuições acerca da liberdade de eleição e decisão, na atualidade não existe prova alguma, não há nenhum argumento, que demonstre sua existência de maneira convincente (D. Eagleman)[1]. O que nos leva a inferir que a forma como enfocamos a valoração das questões do livre-arbítrio, da culpabilidade, da responsabilidade e o funcionamento do sistema legal a este nível não é compatível com os descobrimentos da boa neurociência, das ciências do comportamento e da cognição, isto é, de que já não é possível sustentar-se à vista das provas existentes.

Cedo ou tarde terá que cambiar para dar lugar a este tipo de “sorte moral” (B. Williams & T. Nagel) que provoca alterações em funções que afetam a responsabilidade desses indivíduos. O que não se pode mais tolerar são decisões cegas às evidências, decisões judiciais (e legislativas) baseadas no que as estamos fundamentando atualmente, em que determinados sujeitos (por exemplo, os  psicopatas) são livres para atuar de outro modo ou de que essa espécie de “suerte moral, más allá de la voluntad” é claramente absurda.

Quer dizer, decisões tomadas por juízes que atuam como zelosos servidores de uma legalidade sem alma, devotos da necedade e da submissão normativa descerebrada, convencidos da infalibilidade do que consideram legal ou ilegal (lícito ou ilícito, “normal” ou “anormal”[2]), que cumprem suas tarefas sem questionar nunca o sentido de seus atos, e que idolatram a autoridade e o exibicionismo moral até o ponto de identificar-se com a lei, os valores e os princípios para pervertê-los melhor.  E todos sabemos que não há fracasso maior na vida que não conseguir evitar ver-nos confrontados com nossa própria estupidez.[3] 

 

[1] Nada obstante, que não sejam responsáveis não quer dizer, evidentemente, que não se lhes possa aplicar nenhum castigo. As visões teóricas do castigo legal se agrupam principalmente em dois tipos de teorias: as retributivas e as utilitaristas. A visão retributiva mira ao passado e se centra no agente do ato e em sua relação com esse ato. Para castigar desde o ponto vista retributivo o indivíduo tem que merecê-lo e, por essa razão, atribuir-lhe liberdade e possibilidade de atuar de outra maneira. Este princípio se fundamenta na ideia intuitiva de que é “injusto” que uma pessoa seja julgada ou castigada pelo que não depende dela, pelo que não está baixo seu controle (“princípio de controle”). Mas a visão utilitarista mira ao futuro, às consequências para a sociedade e aos indivíduos do castigo, sem necessidade de que o castigo seja merecido. Desde uma ótica utilitarista, por exemplo, é possível castigar a um psicopata pelo perigo que supõe para a sociedade. Como explica Chris Frith, o sentimento de tomar decisões livres é uma parte fundamental de nossa experiência consciente. Sejamos livres ou não, o importante é que nos experimentamos como agentes livres; também experimentamos as outras pessoas como agentes livres. E esta experiência tem uma função muito importante ou, no pior dos casos, é uma ilusão útil. Tanto é assim que o sistema legal supõe que todos somos igual de capazes de controlar nossos impulsos e de tomar decisões livres. A justiça, o Estado de direito e a sociedade em seu conjunto nos tempos modernos se erigiram sobre o suposto do livre-arbítrio e a responsabilidade das pessoas sobre atos que podem ser premiados ou castigados. É um mito admirável em espírito (necessário, inclusive), mas simplesmente não é certo: não há distinção entre a biologia e a pessoa com sua capacidade de tomar decisões, são a mesma coisa; se a biologia (ou a química cerebral) cambia, cambiam nossos desejos, impulsos, condutas e a capacidade de controlá-los e de tomar decisões livres.

[2] Recordemos que “anormal” é simplesmente um conceito estatístico; ou seja, a maneira não normal de comportar-se. Nas palavras de David Eagleman: “El hecho de que casi todo el mundo se comporte de cierta manera no nos dice nada acerca de si la acción es correcta en un sentido moral más amplio. Es solo una afirmación acerca de las leyes, costumbres y convenciones de un grupo de gente en un momento concreto, exactamente las mismas imprecisas restricciones con las que siempre se define el delito”. É este o sentido que emprego aqui.

[3] “La necedad, una vez más la necedad tan bien denunciada por Flaubert”.(E. Roudinesco)

 

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