Leia também a Parte 1
“«No lo juzguéis, es su forma de vida». Disse a bióloga Amelia Brand, encarnada por Anne Hathaway em Interstellar, quando lhe preguntam se crê que a natureza pode ser malvada: «No. Imponente, aterradora, pero malvada, no. ¿Es un león malvado porque haga trizas a una gacela?»”.
Balada para a «continuidade»: animais desde e para sempre
Charles Darwin relegou aos seres humanos a um ramo mais do vasto reino animal. Em seu Caderno de notas Darwin nos deu uma de suas primeiras ideias sobre a natureza humana. Em referência ao ser humano, e uma vez assumida a ausência de Deus, Darwin escreveu: “Es un mamífero —su origen no queda indefinido— no es una deidad, su fin bajo la forma actual vendrá (o qué terriblemente engañados estamos) así que no es ninguna excepción. Posee algunos de los mismos instintos generales y sentimientos morales que los animales —que por otra parte no pueden razonar— pero el hombre tiene capacidad de razonamiento en exceso. En lugar de instintos definidos —esto es, un remplazo en la maquinaria mental— tan análogo a lo que vemos en la física, que no me pasma”. Como sinalou Darwin, nossa maquinaria mental nos faz diferentes: permite perguntar acerca de nós mesmos, o que é ser humano; permite questionar o que somos, de onde viemos e a maneira em que chegamos a nossa atual natureza.
Uma das coisas que descobrimos é que os humanos possuem certos traços mentais únicos. A autorreflexão e os valores éticos constituem uma parte essencial do que chamamos a condição humana. A evolução, estrutura e funcionamento do cérebro humano levou nossa espécie a ter consciência de si mesma e, ao mesmo tempo, a um sentido da justiça que nos faz estar dispostos, por exemplo, a controlar nossa agressividade e a castigar as ações injustas. Ademais disso, Darwin mostrou com sumo detalhe que há continuidade entre os seres humanos e os animais, não somente no relativo à anatomia e a fisiologia, senão também à vida mental[1]. Hoje, somente os que habitam no “epicentro de la necedad que roe a la sociedad moderna“ (Flaubert)[2] são incapazes de admitir o paradigma darwiniano da animalidade.
Agora, ter boas razões para rechaçar a ideia de uma separação taxativa, um “abismo ontológico” entre o animal e o humano implica, entre outras coisas, que a violência humana também possui um profundo substrato biológico que arraiga em nossa evolução paralela com outras espécies de primatas. Por que é assim? Qual é o significado de nossa tendência, entre outras particularidades, a cometer atos violentos, a defender e compartir valores, a levar a cabo juízos de valor e avaliar a retitude de nossas ações? Somos maus por natureza ou é que ao ser humano não se pode caracterizar unicamente como “rousseauniano” ou como “hobbesiano”? O que nos faz naturalmente distintos de nossos parentes mais próximos símios e primatas? Em que medida somos diferentes no que se refere aos comportamentos comparáveis de outros primatas? Que mecanismos genéticos e cerebrais se correlacionam com o “instinto” ou a capacidade humana para atuar de forma agressiva? Pode a violência estar unida a um único gene, exclusivamente ao ambiente ou mais bem é produto da natureza e da cultura, onde colaboram e interagem os genes e o mundo exterior, sendo este último o que modela aos genes? Dado que não há uma distinção significativa entre biologia e tomada de decisões (porque são inseparáveis), tem algum sentido continuar perguntando “até que ponto foi a biologia e até que ponto foi o indivíduo”? E já que estamos: Não é possível que ao pretender negar ou erradicar o lado escuro da natureza humana corremos o risco de destruir a ideia de uma possível distinção entre o bem e o mal, que se acha na base mesma da civilização?
Violência e adaptação
O estudo da violência e a agressão entre os seres humanos, e inclusive entre os primatas não humanos, é algo mais que uma querela científica. Com frequência a discussão põe em jogo visões morais e concepções ideológicas em conflito desde há vários séculos. Poucas áreas da investigação ilustram melhor o que Daniel Kahneman chama “o mito da ciência perfeita”.
Por quê? Porque a violência ou a agressão não são um único traço ou comportamento que se possa descrever facilmente, senão que constituem um conjunto de comportamentos que tem um rango dinâmico e expressões complexas. Daí que para quem pretenda falar de violência e adaptação, como é o caso, o mínimo que cabe exigir ao que toma a palavra é que saiba tratar do tema de uma forma o bastante precisa no que se refere a estes dois conceitos.
No que concerne à adaptação não parece existir demasiados problemas. Trata-se de um termo técnico referido à maneira como se fixam, para cada determinado locus da bagagem genética, diferentes alelos dentro de uma população. Os fenômenos das mutações e recombinações primeiro e a seleção natural depois levam à conservação daqueles alelos que permitem a seus portadores procriar mais em virtude das condições do ecossistema.
Frente ao caráter técnico de adaptação, ao falar de violência o estamos fazendo de uma maneira coloquial. Usamos esse termo para descrever e valorar certos comportamentos que se consideram reprováveis. Se os professores nos dizem que nosso filho tem uma conduta violenta no colégio, o fazem dando por certo que não deveríamos cruzar-nos de braços ao respeito.
Mesclar conceitos técnicos e coloquiais não é boa ideia. Poderia levar-nos a realizar perguntas com pouco sentido, transladando a carga valorativa que se enfrenta com a violência ao terreno dos processos adaptativos. Ponhamos um exemplo: a seleção natural estabelece distintos níveis dentro da cadeia trófica, de tal maneira que os mais altos estão ocupados por predadores. Alimentam-se estes vigiando, acercando e matando a suas presas.
Pois bem, são “violentos” os predadores? Cabe qualificar assim a conduta de uma leoa quando rompe o pescoço a uma gazela antes de devorá-la? Certamente que não. Mas este exemplo é de todo alheio ao que fazem as crianças nos colégios. Outro mais próximo aparece ao considerar que muitos animais de vida social levam a cabo condutas dentro do grupo que recordam bastante as brigas nos pátios de recreio. Não se trata já de alimentar-se, senão de estabelecer hierarquias, e a forma comum de fazê-lo é mediante enfrentamentos violentos.
O caráter adaptativo do que, para apartar-se do terreno das expressões coloquiais, haveria de chamar “violência biológica” —ainda que o termo técnico correto é o de “agressividade”— foi analisado nos mesmos alvores da etologia pelo prêmio Nobel de medicina Konrad Lorenz através de um livro publicado em 1963, Das sogenannte bösse, que fazia referência de maneira particular ao comportamento humano. Neste livro Lorenz dava por demonstrado que nossa evolução por seleção natural nos fez agressivos — como a todos os demais primatas —, mas em umas circunstâncias que deveriam preocupar aos filósofos, sociólogos, politólogos, juristas e pedagogos, para não referir-me aos médicos, aos agentes de polícia e os políticos. Segundo Lorenz, “la raíz biológica del mal reside en el hecho de que el hombre es por instinto, y de forma innata, un animal psíquico violento y agresivo”.
As características de uma vida social muito intensa e presidida, ademais, pela evolução cultural acelerada, perturbaram ou transformaram o que a seleção natural haveria resolvido por si só — no dizer de Lorenz —, tanto com relação à conduta agressiva necessária para ordenar a vida em grupo como dos mecanismos inibidores encarregados de limitar seus efeitos de risco. Ao alterar-se a ordem - digamos - natural da agressividade aparece um fenômeno novo que conduz a comportamentos perigosos para o grupo. A “violência biológica” se transforma, assim, em “violência ética”.
[1] Sobre a questão da (des) continuidade entre animais humanos e não humanos dizia Claude Lévi-Strauss: “Se empezó por separar al hombre de la naturaleza y por hacer de él un reino soberano: se creía así borrar su carácter más irrecusable, el de ser, ante todo, un ser vivo. Y al cerrar los ojos a esta propiedad común se dio vía libre a todos los abusos. Nunca mejor que al cabo de los cuatro últimos siglos de su historia puede el hombre accidental comprender que, al arrogarse el derecho de separar radicalmente la humanidad de la animalidad, concediendo a una todo lo que le quitaba a la otra, abría un ciclo maldito, y que la misma barrera […] serviría para separar a unos hombres de otros, y reivindicar, en beneficio de una minorías cada vez más restringidas, el privilegio de un humanismo corrompido al nacer, por haber hecho del amor propio su principio y noción”.
[2] Nota bene: Flaubert define a necedade como o mal absoluto (um mal bestial), o pecado capital do advento da democracia burguesa, e por conseguinte o inimigo irredutível. Foi o primeiro em convertê-la em uma perversão ao identificá-la com o poder que sobre o povo exercem as ideias recebidas, a opinião pública, os ideais da falsa ciência e das crenças religiosas (E. Roudinesco). J. Lacan recuperará esta tese em uma fórmula inolvidável: “El psicoanálisis lo cura todo, menos la idiotez”.
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