Leia também a Parte 1 e a Parte 2
“No te dimos un lugar fijo, ni faz propia, ni un oficio peculiar, ¡Oh Adán!, porque el lugar, la imagen y los empleos que desees para ti, estos los tengas y poseas por tu propia decisión y elección [...] Ni celeste, ni terrestre te hicimos, ni mortal ni inmortal, para que tú mismo como modelador y escultor propio, más a tu gusto y honra te forjes la forma que prefieras para ti.” Giovanni Pico della Mirandola
A violência de interesse ético
Somos capazes de entender o sentido de tal ameaça ao nosso bem-estar social? Onde começa a violência e quem são os violentos?[1] Poderemos explicá-la mais além dos modelos de sentido comum, ao que os anglo-saxões chamam de folk psychology, para decidir em que medida a “violência ética” — a de nossos filhos repreendidos no colégio — depende da “violência biológica” — a que seus genes promovem como consequência da história adaptativa da humanidade? Quer dizer, está a conduta antissocial também nos genes? E já que estamos: Dado que o ser humano não é uma «tabula rasa» na qual se pode escrever qualquer coisa ao nascer, não é sempre recomendável (necessário, inclusive), para poder estabelecer uma relação de causalidade e não apenas de correlação, que todo estudo sobre a violência também controle a possível influência dos genes por meio de um desenho que seja geneticamente informativo?
A cadeia explicativa parece em princípio fácil de estabelecer. As pressões adaptativas levaram, durante a filogênese humana, até condutas muito complexas e faculdades cognitivas de ordem social que aparecem graças aos cérebros grandes e capazes, necessários para levá-las a cabo. O binômio violência/agressividade pode entender-se, pois, como um recurso adaptativo essencial para estabelecer as hierarquias, limites territoriais e possessões que nossa vida em comum exige, um recurso cuja chave reside em determinadas conexões cerebrais. Frans de Waal, por exemplo, já advertiu acerca do erro que supõe associar somente consequências negativas a uma agressividade que a seleção natural fixou de forma muito extensa nos primatas.
Mas também caberia pensar que, em alguns casos ao menos, as condutas que são violentas em excesso poderiam dever-se a certas anomalias aparecidas no transcurso da aparição filogenética de nossos cérebros. De tal forma, se consideramos o tipo de cérebro do que nos dotou a evolução por seleção natural talvez demos com as respostas que buscamos. Dito de outro modo, se fôssemos capazes de identificar as conexões “corretas” que regulam os comportamentos morais poderíamos estar em condições —teóricas ao menos— de detectar as anomalias e ver em que medida são as responsáveis pela violência indesejável.
Aparição dos grandes cérebros e o livre-arbítrio (1)
Talvez seja razoável intercalar um parêntese antes de seguir em nossa busca de respostas. Como estabelece a hipótese do tecido custoso enunciada pela antropóloga Leslie Aiello, o incremento do tecido dos neurônios que formam o cérebro é uma operação evolutiva nada trivial. Supõe um alto custo em termos de inversão de recursos biológicos. Não é possível, pois, uma expansão azarosa, caprichosa ou arbitrária do cérebro: qualquer aumento que se produza deve estar justificado porque proporciona vantagens adaptativas muito notórias.
Quais poderiam ser essas vantagens quando falamos de seres com tantas capacidades cognitivas como os hominídeos (símios e humanos) é uma questão a que respondeu Nicholas Humphrey já há quase trinta anos: nosso cérebro (e, por certo, o dos chimpanzés) evolucionou para gerar e entender as regras sociais. Chegar-se-ia assim à chamada “inteligência maquiavélica” que permite, entre outras coisas, levar a cabo muito sutil e sofisticadas atribuições de estados mentais aos demais membros do grupo, na linha sugerida por Daniel Dennett ao falar dos sistemas intencionais.
O esquema de explicação estabelece, pois, que o cérebro foi evoluindo, dentro da linhagem comum com os demais hominídeos primeiro e em solitário mais tarde, até chegar, há uns duzentos mil anos, o nosso córtex cerebral. Neste transcurso se estabeleceram o que Noam Chomsky chama “órgãos” da mente: o da linguagem, o da capacidade numérica, etc...etc. Há um “órgão da moral” que pudesse converter-se por culpa das anomalias em um “órgão da violência”?
A resposta parece ser afirmativa. As evidências de todos os tipos de estudos neurobiológicos sugerem que existe uma rede “neuromoral” no cérebro: um “órgão” ou “hardware” dedicado à moralidade. Esta rede, seguindo a lei de Murphy, pode avariar-se e dar lugar a umas respostas emocionais atenuadas ante a possibilidade de fazer dano aos demais e realizar condutas antissociais, agressivas ou delitivas. Dito de outro modo, se a moralidade é inata no ser humano, se existe um “sentido moral”, deve haver uns mecanismos cerebrais, um assento no cérebro, para essa moralidade inata.
Por isso que não se pode julgar no mesmo plano a conduta de alguém que tem seu cérebro moral intacto com a de alguém com transtornos cerebrais que tem seu cérebro moral danificado. A razão é simples: não é o mesmo o comportamento de uma pessoa com o sistema moral (pré-frontal) ileso e uma que não o tem (nos referimos, por exemplo, a certos quadros clínicos e a estudos de fMRI em sujeitos normais, em psicopatas, em psicopatias adquiridas por lesões cerebrais, e na demência fronto-temporal). As pessoas com lesões na rede “neuromoral” têm a bússola moral rota, uma incapacidade para controlar seus impulsos e demais déficits morais. Para ser considerado responsável o indivíduo tem que ter a capacidade de poder atuar de outra maneira; e quando o cérebro moral está lesionado, atuar de modo alternativo não é possível.
E dito seja incidentalmente e de passagem que inclusive quando não sofremos nenhuma lesão cerebral ou transtorno mental tampouco temos a (plena) capacidade de eleger atuar de outra maneira. Sem pretender ingressar no eterno dilema do livre-arbítrio[2], pensemos no exemplo da psicopatia. Cada vez mais os autores estão sugerindo que os psicopatas não são livres e que não podem atuar de outra maneira (e propõem alternativas aos fundamentos morais e legais que utilizamos para condenar-lhes e castigar-lhes). A verdade é que nem os psicopatas nem os não-psicopatas têm livre-arbítrio porque nenhum deles pode eleger.
[1] Virtous Violence é um livro de Alan Page Fiske e Tage Shakti Rai em que expõem uma tese que a muitos pode parecer insólita: os autores mostram que a gente, a maioria das vezes, é violenta porque sente genuinamente que a violência é o correto, o que devem fazer (de fato, não são poucos os autores que nos vêm avisando já faz tempo - como Roy Baumeister - de que é a gente boa a que comete as maiores barbaridades: a gente normalmente tem razões para utilizar a violência, “es decir, la violencia suele ser instrumental; rara vez la violencia es gratuita”). Segundo os perpetradores da violência, esta é moralmente necessária e é a maneira correta de regular umas relações sociais de acordo com o que mandam os preceitos e normas culturais. Detrás da violência haveria ideais culturais que a motivam e/ou “circunstancias de las que resulta imposible o que casi les impiden saber, sentir o intuir que realizan actos de maldad o que están haciendo el mal” (H. Arendt). Fiske e Rai argumentam que a maior parte da violência é motivada por razões morais: a moralidade trata de regular as relações sociais e a violência é uma forma de regular essas relações. Para os efeitos do livro, os autores definem a violência como ações em que o ator considera que infligir dor, sofrimento, medo, feridas ou a morte é um meio necessário e desejável para os fins que se buscam. A violência é virtuosa quando o sujeito, seu grupo de referência ou a audiência consideram que o ato é o que há que fazer, ainda que seja difícil e duro de levá-lo a cabo. Por exemplo, se um pai castiga a um filho por não fazer o que deve, ou por alguma má ação que tenha cometido, o pai crê que está fazendo o que deve fazer segundo suas normas morais. Por fim, Fiske e Rai consideram que para reduzir a violência o que devemos conseguir é convertê-la em imoral.
[2] C. J. Clark, R. F. Baumeister e P. H. Ditto (Making punishment palatable: belief in free will alleviates punitive distress. Consciousness and cognition, 2017, 51:193-211) propõem que o livre-arbítrio serve para justificar os impulsos de castigar ao fazer aos que infringem as normas moralmente responsáveis, e assim justificar seu castigo sem sofrer o stress que fazer dano a um semelhante implica. Segundo os autores do artigo, há que fazer o castigo mais aceitável e que o livre-arbítrio serve precisamente para isso, para facilitar o castigo e para aliviar o mal-estar que produziria fazer dano a outro ser humano. Sobre o livre-arbítrio: https://www.researchgate.net/publication/306893761_Aspectos_da_experiencia_neurojuridica_livre-arbitrio_responsabilidade_e_racionalidade_Parte_3; https://www.researchgate.net/publication/307565847_Aspectos_da_experiencia_neurojuridica_livre-arbitrio_responsabilidade_e_racionalidade_Parte_4
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