Psicologia tutelada? Considerações sobre participação democrática e pauta da criança e do adolescente

01/04/2020

Vamos iniciar este texto por breves considerações históricas: viemos de um processo de colonização extremamente duro, pelo qual ainda pagamos um preço muito alto. Os povos indígenas que aqui viviam e os africanos que para cá foram trazidos, só foram incluídos no empreendimento colonial português como escravos - nunca como iguais.[1]

Dos indígenas se dizia que eram povos “sem lei, sem rei, sem fé”.  Este, certamente, é um pensamento etnocêntrico, que não reconhece o outro na sua diferença. É claro que os povos indígenas e também os povos africanos tinham chefia, organização social e grande espiritualidade. Mas, reconhecer isto seria admitir a humanidade destes povos, o que teria impedido a sua escravização.

A República (1889), proclamada um ano após a Abolição da Escravatura (1888), não fez muito diferente, pois incorporou o povo negro, mestiço, pobre, apenas como trabalhador subalternizado ou como classe perigosa. Abolimos a escravatura, mas não promovemos a igualdade. Não fizemos a reforma agrária, não fizemos programas de moradia, não abolimos o trabalho infantil, não universalizamos o ensino básico, além de proibirmos o voto aos analfabetos, dentre outras mazelas. Em compensação, superlotamos os internatos, os reformatórios, as casas de correção, os asilos, os manicômios e as prisões.

A partir da década de 1970, ainda que com certa defasagem em relação ao que se passava em outros países, fomos capazes de questionar o modelo asilar correcional e repressivo destinado aos chamados menores, loucos, infratores e deficientes. E fomos capazes de iniciar este questionamento, mesmo na vigência da Ditadura empresarial-militar de 1964, pela qual também ainda pagamos um alto preço.

Este período, simbolizado pelo Maio de 68 na França, foi vivido como um grande momento utópico e libertário, onde a diferença poderia ser experimentada sem ser desqualificada como doença, anormalidade, deficiência ou inferioridade. Eram propostas ético-estéticas e também movimentos de reivindicação de direitos: o de existir como mulher, negro, louco, indígena, LGBTQI, sem que isto implicasse em tutela médica ou jurídica e desqualificação social.

Embora voltados para as questões específicas de suas militâncias, esses diversos grupos minoritários encontravam-se unidos em torno da luta pelo fim da Ditadura e pela democratização do Brasil. Tal o entusiasmo vivido naquele momento que muitos diziam estarmos refundando a República, ou fundando uma Nova República. 

De lá para cá, e tendo como norte a Constituição de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, fomos forjando a nossa ainda muito frágil democracia, com avanços, retrocessos e muitas dificuldades.

Dentre as conquistas de direitos deste período podemos citar - sem pretendermos ser exaustivos -, a diminuição da mortalidade materno infantil, a universalização do ensino básico, a retirada de milhões de brasileiros da situação de fome e extrema pobreza, a entrada de pessoas negras e pobres nas universidades, a carteira assinada da empregada doméstica, a valorização do salário mínimo, a demarcação de terras indígenas, dentre outras. E não devemos negar ou minimizar estas conquistas apenas porque foram insuficientes, ou porque faziam parte de um projeto de estado de bem estar social, apontado na Constituição de 1988, que nunca chegamos a construir inteiramente.

Assim, embora não devamos negar ações que tenham trazido pequenas melhorias na qualidade de vida da população - dado o caráter absolutamente excludente, cruel e desigual da nossa sociedade, fazendo com que cada uma delas deva ser comemorada -, é preciso dizer que a inclusão cidadã pretendida pelos movimentos sociais deixou muito a desejar, na medida em que o caráter libertário das lutas que emergiram a partir das décadas de 1960/70 em vários países do mundo e também no Brasil, foi se perdendo ou sendo capturado por formas de controle que fazem parte de novas estratégias biopolíticas.

Neste sentido, os anseios por igualdade e liberdade, pensados em termos de lutas por direitos, que deveriam ser garantidos por políticas públicas emancipatórias foram, pouco a pouco, caminhando na direção de uma cidadania tutelada, particularmente quando dirigidas aos mais pobres.

Em função dessa situação, muitos profissionais de saúde, educação e assistência foram experimentando um grande mal estar no trabalho, divididos entre fornecer atenção e cuidados à população mais pobre, de acordo com critérios técnicos e éticos de suas profissões e, ao mesmo tempo, responder às demandas para exercerem tutela sobre os usuários, como contrapartida dos serviços prestados. Muitos foram e ainda são os profissionais que adoecem ou pedem demissão, em função desse conflito.

Por exemplo, a simples consulta médica de uma gestante em situação de rua pode resultar em notificação ao Conselho Tutelar, ao Ministério Público e/ou ao Juiz da Infância e Juventude, ocasionando, muitas vezes, a separação da criança da mãe no próprio hospital, por ocasião do parto, por considerar-se que a mãe não apresenta condições física, psíquica ou moral para cuidar do bebê. Busca-se proteger o bebê, o que é correto, desprotegendo totalmente a mãe, o que é incorreto. Por acaso não somos capazes de construir um caminho diferente?

Quando nos reportamos a situações como esta, fica mais fácil compreender porque muitas gestantes em situação de rua não desejam fazer o exame pré-natal a que supostamente têm direito, afirmando que o exame no hospital serve apenas “para roubarem seus filhos”; ou a recusa, de moradores em situação de rua, de prestarem quaisquer informações que venham a compor alguma ficha ou cadastro. Ao responder à repórter porque frequentava uma determinada instituição caritativa para fazer as refeições, diz uma moradora das ruas: “É que aqui não me perguntam nada”. Não lhe exigem que mude de vida para obter a sopa, não lhe demandam que tome banho ou que apresente documentos, que diga seu nome e endereço, ou que confesse seus desejos íntimos[2].

Este atrelamento das Políticas Públicas ao sistema criminal e de segurança não se reduz à Assistência e à Saúde. Nada mais preocupante do que o que vem acontecendo nas escolas: desde o ensino religioso de natureza confessional em escolas públicas até a colocação de policiais fardados e armados em seu interior, incluindo a gestão militar de escolas públicas do ensino fundamental e médio. Isto sem nos reportarmos às inúmeras propostas legislativas em andamento, como o projeto Escola Sem Partido, que mesmo antes de ser votado já produz os seus efeitos de intimidação.

Preocupante, também, são as intervenções cada vez mais precoces, inclusive medicamentosas, a partir de avaliações nem sempre bem estabelecidas, transformando supostos problemas de comportamento, dificuldades de aprendizagem e indisciplina escolar das crianças em transtornos, como nos mostra o impactante documentário “Infância sob controle: medicalização na infância”[3].

Estudos têm indicado que o Brasil é, hoje, um dos maiores consumidores da substância metilfenidato, considerada uma verdadeira “droga da obediência” ou “palmatória química”. Dados do Instituto de Defesa de Usuários de Medicamentos nos informam, por exemplo, que no ano de 2000, foram vendidas no Brasil 70 mil caixas de metilfenidato, droga controlada, tarja preta, que tem a finalidade de melhorar os sintomas do chamado Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade, TDAH. Em 2010, este número passou para 2 milhões de caixas, colocando o Brasil como o segundo maior consumidor mundial desta droga[4]. E nós sabemos que os destinatários desta medicação, em grande parte, são crianças, adolescentes e jovens. 

Desta forma, nas atuais sociedades de controle, termo utilizado por Gilles Deleuze[5] em contraposição às sociedades disciplinares, não é mais necessário a existência de meios fechados para se aprisionar a vida – embora tais meios fechados devam ainda perdurar por algum tempo.

E, obviamente, nem a Psicologia e nem outras profissões estão imunes a estas forças e movimentos de aprisionamento da vida. Ao contrário, estamos todos sendo convocados não só a reconhecer como a colaborar ativamente com estes processos, que se apresentam, em grande parte, com a roupagem da própria proteção da vida e dos direitos.

Como nos alerta Michel Foucault, na magistral aula de 17 de março de 1976 do curso Em defesa da sociedade[6], embora o Estado nazista tenha sido aquele que levou ao extremo o jogo entre poder soberano e biopoder, este jogo encontra-se efetivamente inscrito no funcionamento de qualquer Estado moderno. Desta forma, no regime do biopoder, que se ocupa de “aumentar a vida, de prolongar sua duração, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências” (p.304) - não se pode exercer o velho direito soberano de matar, ou seja, de “multiplicar para alguns o risco de morte”, ou decretar “a morte política, a expulsão, a rejeição” (p.306) -, sem passar por algum tipo de racismo, ou seja, sem demonstrar, por exemplo, a monstruosidade do inimigo, do criminoso ou do infrator, sua anormalidade, sua periculosidade, sua inferioridade biológica, sua degeneração, sua incorrigibilidade.

Assim, na medida em que teorias racistas são requeridas quando se deseja invocar o velho direito soberano à morte, cabe a todos nós colocarmos em análise as implicações das ciências, particularmente das humanas e sociais, na produção desses racismos.

Não creio ser tarefa simples para a categoria dos psicólogos, bem como para as demais categorias profissionais, se posicionar diante da complexidade dessas questões, principalmente quando se tem a pressioná-la um mercado de trabalho restrito e contratos de trabalhos precarizados, e o predomínio, nas atividades científicas e no ensino, da razão instrumental. Por outro lado, a não ser que consideremos a Psicologia como sendo uma prática meramente adaptativa, que atende de maneira acrítica às demandas advindas das engrenagens postas em funcionamento pelo capital, não podemos deixar de pensar as experiências que fazemos de nós mesmos no contemporâneo e os movimentos de resistência e criação que possibilitam.

A partir destas referências, como pensar as nossas lutas e os nossos horizontes?

Particularmente, nas últimas décadas, o Sistema Conselhos de Psicologia tem se esforçado muito para colocar na pauta da Psicologia brasileira a questão dos Direitos Humanos, para construir referências e estratégias de qualificação para o exercício profissional, para ampliar o diálogo com os movimentos sociais e com as diversas categorias profissionais, e para problematizar o mal estar dos psicólogos face às suas condições de trabalho, face às condições de vida da população brasileira e face à própria contemporaneidade.

Mas não tem sido tarefa fácil.  Há um movimento de captura muito grande na sociedade brasileira, também em consonância com o que vem acontecendo em outros países. Cito o exemplo da Escola Experimental de Bonneuil-sur-Marne, na França, uma instituição libertária, dedicada a crianças e adolescentes com transtornos mentais graves, criada pela psicanalista Maud Manoni em 1969, e que esteve prestes a fechar as portas, uma vez que as novas regulamentações da saúde e da segurança da França dificultam e mesmo impedem propostas como a de Bonneuil[7].

Neste sentido, é preocupante o modo como as políticas de Educação, Saúde e Assistência estão sendo chamadas a se constituir como meros braços do Judiciário ou da Política Criminal e de Segurança, numa visão reducionista e autoritária do que seja a interdisciplinaridade e a intersetorialidade.

No entanto, por outro lado, na medida em que a Psicologia no Brasil foi se abrindo às lutas da população indígena, quilombola, ribeirinha, cigana, idosos, crianças e adolescentes, mulheres, LGBTQI, população de rua, usuários dos serviços de saúde mental etc, foi também angariando oposição de grupos contrários a estas lutas - em uma tentativa de mantê-la em seu histórico conservadorismo.

Mais recentemente, um novo cenário se anuncia em relação à Psicologia no Brasil. Ou seja, ao lado das demandas para que os psicólogos tutelem sua clientela, estamos vendo emergir movimentos que almejam tutelar a própria Psicologia, na medida em que ela esboça movimentos de resistência em relação a estas demandas, buscando construir caminhos outros junto à população.

Isto pode ser constatado em diversas investidas contra as decisões do Sistema Conselhos de Psicologia, na suspensão de algumas de suas Resoluções e na tentativa de tornar os psicólogos e as psicólogas meros consumidores de teorias e técnicas, particularmente norte-americanas, destituindo a Psicologia brasileira de singularidade e autonomia.

Mas este movimento de tutela não parece estar restrito ao Sistema Conselhos de Psicologia, senão que busca se estender a tudo o que pode ser visto como oposição, diferença e resistência ao projeto já em curso de desmonte dos direitos já conquistados na história deste curto período pós Constituição de 1988 - projeto constituído pela aliança entre o fundamentalismo religioso, o conservadorismo e o autoritarismo moral e político, e o ultra  liberalismo econômico[8]

A título de exemplificação destas tentativas de tutela - que no caso do CFP já vem sendo buscada há algum tempo -, tomamos aqui para análise a Resolução CFP nº 010/2010, que “Institui a regulamentação da Escuta Psicológica de Crianças e Adolescentes envolvidos em situação de violência, na Rede de Proteção”[9], indagando sobre o que há nela de  preocupante, cuja suspensão[10] foi objeto de grande empenho por parte de setores do Judiciário?

É que esta Resolução, ao diferenciar escuta psicológica de inquirição judicial ou tomada de depoimento, veda ao psicólogo o papel de inquiridor no atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência.  Em suas “Considerações iniciais”, a Resolução afirma:

A escuta de crianças e de adolescentes deve ser - em qualquer contexto -   fundamentada no princípio da proteção integral, na legislação específica da profissão e nos marcos teóricos, técnicos e metodológicos da Psicologia como ciência e profissão. A escuta deve ter como princípio a intersetorialidade e a interdisciplinaridade, respeitando a autonomia da atuação do psicólogo, sem confundir o diálogo entre as disciplinas com a submissão de demandas produzidas nos diferentes campos de trabalho e do conhecimento. Diferencia-se, portanto, da inquirição judicial, do diálogo informal, da investigação policial, entre outros.

Vejamos como se manifestou o CFP em relação à Suspensão desta Resolução:

O Conselho Federal de Psicologia ao editar a Resolução CFP nº 010/10 buscou proteger a criança e o adolescente de uma possível revitimização, razão pela qual regulamentou a escuta psicológica de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência, criando, portanto, uma rede de proteção às vítimas, testemunhas em situação de vulnerabilidade.

No entanto, o ato normativo editado vem sendo questionado judicialmente em vários Estados, por supostamente haver um vício formal, ou seja, somente lei poderia prever tal limitação.

Assim, no Estado do Rio de Janeiro, o  Ministério Público Federal bem como o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro ajuizaram Ação Civil Pública nº 2012.51.01.008692-4, em tramitação na 28ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro em desfavor da regulamentação em debate. O juízo da 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro deferiu o pedido de antecipação dos efeitos da tutela, e, portanto, a Resolução CFP nº 010/10 encontra-se suspensa em todo o território nacional.

Noutro momento, no Estado do Ceará, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contrária ao Conselho Federal de Psicologia e ao Conselho Federal de Assistência Social a fim de suspender, respectivamente, a Resolução CFP nº 010/10 e a Resolução CFESS nº 554/2009 em todo território nacional. Razão pela qual, o juízo da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará, após manifestação e defesa do Conselho Federal de Psicologia e do Conselho Federal de Serviço Social acerca da validade dos atos normativos questionados, julgou procedente a ação civil pública e determinou a suspensão das resoluções em todo o território nacional, bem como a abstenção dos conselhos de fiscalização de aplicar penalidades éticas aos profissionais que atuam na escuta psicológica da criança e do adolescente.

Portanto, a Resolução CFP nº 010/2010 encontra-se suspensa, em todo o território nacional, e o sistema conselhos, em razão da determinação judicial, se absterá de fiscalizar profissionais em razão da inobservância do ato normativo questionado.

Considerando a importância da matéria e identificadas violações de direitos durante a realização de inquirição de crianças e adolescentes, o Sistema Conselhos mantém esse assunto em pauta e continua empenhando todas as medidas cabíveis a fim de preservar a autonomia do profissional de Psicologia e efetiva garantia dos direitos da criança.

É importante que se esclareça que as Resoluções aprovadas pelo CFP não são frutos de decisões autoritárias de grupos dentro do Sistema Conselhos de Psicologia, mas o resultado de um longo processo de debates dentro e fora da categoria, respeitando-se todas as instâncias decisórias estabelecidas e vigentes que regulamentam o funcionamento do CFP e dos CRPs.

Assim, a Resolução CFP nº 010/2010 foi o resultado de amplo debate da categoria sobre o tema, a partir do entendimento que o psicólogo, no procedimento denominado inicialmente de Depoimento sem Dano (DSD) e posteriormente Depoimento Especial, não é chamado a desenvolver propriamente um exercício profissional, mas a atuar como um mediador do inquiridor (juiz), supostamente mais humanizado, procurando ganhar a confiança das supostas vítimas para que venham a falar e a constituir a prova contra os acusados, possibilitando, assim, a produção antecipada dessa prova no processo penal, antes mesmo do ajuizamento da ação[11].

Também não é o resultado de posições beligerantes e intransigentes em relação aos que pensam de maneira diferente, conforme posicionamento do CFP em Audiência no Senado, em 2008, que discutiu o Substitutivo ao Projeto de Lei da Câmara nº 4.126 de 2004 e foi enviado ao Senado Federal por meio do Ofício nº 218/07/PS-GSE. Vejamos: 

Boa tarde senhoras e senhores senadores. Demais presentes.

Estamos aqui para um debate difícil, porque o que vamos aqui discutir são diferentes entendimentos do que seja a Proteção Integral à criança e ao adolescente. É um debate difícil não apenas pela importância e complexidade do tema, como também pelo respeito e admiração que temos por todos aqueles que não pensam como nós. Não estamos aqui combatendo inimigos, mas divergindo democraticamente de companheiros - pessoas que, como nós, estão interessadas e comprometidas com a implementação da Lei Federal 8.069/1990 - o Estatuto da Criança e do Adolescente. [12]

A participação do CFP nos debates deste tema começou quando, em abril de 2006, o Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRP-RS) solicitou ao CFP orientação a respeito do procedimento em andamento no Juizado da infância e Juventude de Porto Alegre desde 2003.

Este procedimento foi pensado para a oitiva de crianças e adolescentes apontados como vítimas ou testemunhas de abuso sexual ou maus-tratos. Tal depoimento seria tomado por psicólogos ou assistentes sociais em local conectado por vídeo e áudio à sala de audiência. O juiz e os demais presentes à audiência veem e ouvem, por um aparelho de televisão, o depoimento da criança ou do adolescente. O juiz, por comunicação em tempo real com o psicólogo ou o assistente social, faz perguntas e solicita esclarecimentos. Tal inquirição é gravada e passa a constituir prova nos autos[13].

Desde então, diversas discussões sobre o tema foram organizadas pelos Conselhos Regionais de Psicologia (CRPs) e pelo CFP. Nacionalmente, além da Audiência Pública no Senado, o CFP participou de um seminário promovido pelo Conselho Federal de Serviço Social (CEFFES) e de debate no Fórum Nacional de Defesa da Criança e do Adolescente (FNDCA). O CFP também compareceu a todos os eventos sobre o tema para os quais foi convidado. Em agosto de 2009 promoveu, juntamente com os CRPs, um Seminário Nacional, realizado no Rio de Janeiro, denominado “A Escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situações de violência e a rede de Proteção” [14].

A partir da Audiência Pública no Senado[15], tal Projeto de Lei não teve mais andamento. No entanto, mesmo na ausência de pesquisas consistentes sobre o impacto de tal metodologia na vida de crianças e adolescentes, e de uma legislação disciplinando a matéria, a implantação do dispositivo chamado “Depoimento Sem Dano” e/ou “Depoimento Especial” não retrocedeu[16]. Ao contrário, contando com o protagonismo da Childhood Brasil[17], o DSD tomou proporções nacionais, angariando também a adesão do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

De acordo com informações disponibilizadas em sua página eletrônica, a Childhood Brasil, embora reconhecendo o trabalho pioneiro da 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre (RS), chama para si a autoria do projeto Depoimento Especial:

Para tornar o testemunho de violência sexual menos traumático para crianças vítimas ou testemunhas de violência sexual, a Childhood Brasil criou o Projeto Depoimento Especial[18]. Essa metodologia de escuta de depoimentos evita que as crianças e os adolescentes sejam revitimizados, ou seja, que tenham que recontar e reviver diversas vezes a violência que sofreram.

Foi através do trabalho pioneiro da 2ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre (RS), iniciada em 2003, que o depoimento especial ganhou espaço no Brasil.

O Projeto Depoimento Especial, da Childhood Brasil[19], tem por objetivo desenvolver e disseminar metodologias não revitimizantes para escuta de crianças e adolescentes (vítimas ou testemunhas de abuso sexual) nos sistemas de segurança e de justiça, assim como nos órgãos encarregados da proteção de crianças e adolescentes no Brasil[20].

No entanto, em que pese a instalações de inúmeras salas pelo Brasil e dos cursos de formação para a tomada do depoimento, era necessário que tais iniciativas ganhassem legitimidade através de uma legislação que disciplinasse a matéria. Assim, no final de 2015, deu entrada na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3792, de 2015[2], que “Estabelece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, e dá outras providências”.

Conforme a lista apresentada ao final do PL, onde se agradece a participação de renomados peritos no “Grupo de Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças e Adolescentes”, verifica-se a ausência de representantes das Políticas Públicas nas áreas de Saúde, Assistência e Educação, bem como representantes dos Conselhos Profissionais de categorias envolvidas nas atividades previstas pelo PL, como é o caso de psicólogos e assistentes sociais, e também, a ausência de representantes do próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).

Ao analisarmos este PL, consideramos que ele incorria em graves equívocos e incorreções conceituais, principalmente porque buscava, a qualquer custo, colocar a criança como responsável pela produção de prova judicial nos casos em que ela figura como vítima ou testemunha de crimes. Além do mais, baseava-se quase que inteiramente na legislação internacional sobre os direitos da criança, citando apenas o art. 227 da nossa Constituição Federal: não mencionava o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente; não mencionava as Resoluções do CONANDA, em especial a Resolução 113/2006, que dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e o fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, bem como a Resolução 169/2014, que dispõe sobre a proteção dos direitos de crianças e adolescentes no atendimento realizado por órgãos e entidades do SGD. Também não mencionava nenhum Plano Nacional de defesa dos direitos de criança e adolescente, entre os quais, o Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária; o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil; bem como a Lei Nacional de Atendimento Socioeducativo-SINASE; dentre outros. Ao assim, proceder, desconhecia os princípios e as diretrizes da Política Nacional de Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e os eixos e os objetivos estratégicos do Plano Nacional Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Finalmente, não mencionava as diversas Políticas Públicas que envolvem o atendimento, o cuidado e a proteção da criança e do adolescente como Saúde e Assistência, que possuem objetivos específicos e não se destinam à produção de prova judicial, não podendo ser consideradas como braços do judiciário[21].

É bom que se esclareça que não somos contrários à legislação da ONU sobre os direitos da criança. No entanto, a própria Convenção sobre os Direitos da Criança[22], Ratificada pelo Brasil sem nenhuma Cláusula de Reserva, em inúmeros de seus artigos remete sua regulamentação às legislações nacionais.

Em função de nossos estudos sobre este PL 3792/2015, fomos convidados a participar da 252ª Assembleia Ordinária do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), no dia 15 de junho de 2016, representando o CFP. Em nossa fala apresentamos o que considerávamos ser os principais problemas do PL  e, principalmente,  ressaltamos o quanto o PL ignorava o que a sociedade brasileira vinha construindo desde a Constituição de 1988, e o quanto se estava utilizando da comoção nacional causada pelo estupro coletivo da adolescente, ocorrido no Rio de Janeiro no mês de maio de 2016[23], para tentar votar o PL em caráter de urgência, sem nenhum debate.

É importante lembrarmos, aqui, que desde o término da Ditadura empresarial-militar de 1964 o Brasil reconheceu todos os tratados internacionais de Direitos Humanos, construindo assim, uma Política de Estado de Direitos Humanos. A construção desta política vinha se dando com a participação, contribuição e protagonismo da sociedade em suas diferentes organizações e movimentos sociais, através tanto dos Conselhos de Direitos como das Conferências, em níveis nacional, estadual e municipal (Direitos Humanos, Criança e Adolescente, LGBT, Pessoa com Deficiência, Pessoa Idosa, Juventude, Políticas para as Mulheres, Povos Indígenas, Promoção da Igualdade Racial, Saúde, Educação, Assistência Social, dentre outras). Assim, nada mais coerente com os valores do Estado Democrático de Direitos que solicitar uma Audiência Pública para discutir o PL, o que não foi acatado pela autora do PL original, deputada Maria do Rosário[24], e nem pela Relatora e autora do Substitutivo ao PL, deputada Laura Carneiro. As razões? Uma que nos foi dada é que não havia necessidade, uma vez que a Relatora estava se colocando disponível para discutir o PL e a construir um Substitutivo. Caso tivéssemos alguma coisa a dizer, que disséssemos diretamente a ela. Outra razão? Não foi dito. Talvez o próprio funcionamento conturbado do país, dividido em ódios, onde os oponentes são considerados inimigos, e do próprio funcionamento do Congresso Nacional, fracionado pelos interesses das diversas bancadas e às voltas com o processo de impeachment da presidente Dilma e da situação do deputado federal Eduardo Cunha. Se assim, porque a pressa em aprovar o PL? Porque legislar em águas turbulentas?

Finalmente, o Substitutivo foi aprovado em Plenário da Câmara dos Deputados em 21/02/2017 e enviado ao Senado por meio do Ofício nº 173/17/SGM-P, em 07 de março de 2017.

A nossa esperança era, que uma vez no Senado, o Substitutivo fosse debatido em Audiência Pública, o que também não ocorreu. Foi solicitada urgência para sua aprovação, não mais levando em consideração a situação de comoção nacional pelo estupro coletivo da adolescente no Rio de Janeiro, mas tendo em vista a visita ao Brasil do rei Gustavo e da rainha Silvia da Suécia. Acreditamos que este era o presente a ser dado ao casal real pelo presidente Temer, em um momento em que sua popularidade despencava para menos de 10% de aprovação.

No dia 03-04-2017, a TV NBR transmitiu o discurso pronunciado pelo presidente Temer durante o jantar oferecido pelo Governo de São Paulo ao casal real. Neste discurso, foi dito que a visita do casal real ao Brasil comportava três dimensões: política, comercial/empresarial e social. Quanto a esta última:

(...) e uma dimensão social, na medida em que amanhã se instala no Brasil o Fórum Internacional em Defesa da Criança, já programas exitosos na Suécia e em outros países. Eu quero até comunicar às Suas Majestades e a todos, que a Marcela, minha mulher, na semana passada para cá, insistiu enormemente para que eu desarquivasse um projeto, buscasse desarquivar um projeto que já estava no Senado Federal, que trata precisamente... é, que Estabelece um Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Crimes. E conseguiu! Porque, ainda ontem, o projeto, ou melhor dizendo, antes de ontem, este projeto no Senado Federal recebeu o que se chama regime de urgência e foi votado no mesmo dia. Eu quero dizer que, em homenagem às Suas Majestades, eu sancionarei publicamente, aqui em São Paulo, durante o Fórum, este projeto[25].

Já dissemos do empenho do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e da Childhood Brasil na aprovação deste PL, constando as duas entidades do “Grupo de Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças e Adolescentes”, tendo a Childhood sido criada justamente pela rainha da Suécia.

Criada em 1999 pela Rainha Silvia da Suécia com o objetivo de proteger a infância e “garantir que as crianças sejam crianças”, a Childhood Brasil é uma organização brasileira que faz parte da World Childhood Foundation (Childhood), instituição internacional que conta com mais três escritórios: Estados Unidos, Alemanha e Suécia. O trabalho nos outros escritórios, no entanto, é diferente do realizado no Brasil. Os escritórios estrangeiros concentram suas atividades no apoio financeiro a projetos de organizações locais em mais de 16 países. 

A Childhood Brasil influencia políticas públicas, trabalha junto ao setor privado e estimula a sociedade civil a olhar para a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes[26].

Nada contra o ativismo do UNICEF e da Childhood  em defesa dos direitos de crianças e adolescentes brasileiros, muito ao contrário, desde que esta participação esteja bem dimensionada, não podendo, por mais importantes que sejam estas duas entidades, ocupar o lugar da sociedade.

Tendo sido aprovada no Senado, o PL transformou-se na Lei 13.431 de 04 de abril de 2017, dando início a novas disputas, agora pela interpretação e implementação da Lei , uma vez que aprovada sem debates em Audiências Públicas, a Lei deixou em aberto inúmeras questões.

Que as pessoas, grupos e entidades que militam em prol dos Direitos Humanos de crianças e adolescentes possamos entender que a pauta da criança e do adolescente não é propriedade de nenhuma entidade em particular, e sim uma construção coletiva, democraticamente construída, exigindo debates, reflexões e a criação de consensos.                                                                               

 

Notas e Referências

[1] Publicado no livro Discussões sobre Depoimento Especial no Sistema Conselhos de Psicologia. CFP/CRPs: Brasília, 2019.

 https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/12/CFP_DepoimentosEspeciais_web-FINAL-.pdf

[2] É bom que se diga que não somos contra o banho ou as roupas limpas. Apenas reconhecemos que as Políticas de Assistência e Saúde não devem ser conduzidas como blocos monolíticos, comportando diferentes abordagens e estratégias conforme as situações específicas de vida dos grupos que atendem.

[3] Disponível em:  http://psicanaliseautismoesaudepublica.wordpress.com/2013/06/11/documentario-infancia-sob-controle-medicalizacao-na-infancia/

Ver também: http://psicanaliseautismoesaudepublica.wordpress.com/2013/04/11/do-dsm-i-ao-dsm-5-efeitos-do-diagnostico-psiquiatrico-espectro-autista-sobre-pais-e-criancas/

[4] Ver Carta Capital: A droga da obediência. Entrevista com Maria Aparecida Moysés. https://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental-arquivo/a-droga-da-obediencia

[5] Deleuze, G. Post-Scriptum sobre a sociedade de controle. In: Conversações. São Paulo: Editora 34, 2000.

[6] FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. Curso no Collège de France, 1975-1976. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

[7] Sobre o tema, ver a Dissertação de Mestrado, defendida na Universidade Federal Fluminense em 2012, de Augusto de Bragança Alves Neto: “A experiência de Bonneuil: vivendo na encruzilhada”.

[8]Segundo Breno Altman, Diretor Editorial do site Opera Mundi, esta lógica tutelar tenta hoje se impor a todos os poderes da república, causando uma ferida profunda na democracia brasileira. Ver: Altman explica o papel dos militares no governo Bolsonaro. TV 247. Publicado em 24 de novembro de 2018. https://www.brasil247.com/

[9]  Ver:  http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/07/resolucao2010_010.pdf

[10] Resolução nº 010/2010 [SUSPENSA]. Ver: https://site.cfp.org.br/resolucoes/resolucao-n-0102010/

[11] Ver: Manifestação do Conselho Federal de Psicologia e de sua Comissão Nacional de Direitos Humanos a respeito do PLC nº 35/2007 – que regulamenta a iniciativa denominada “Depoimento sem Dano (DSD)”. In: “Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. Propostas do Conselho Federal de Psicologia”. CFP: Brasília-DF, 2009: 147.

[12] Idem, p. 157.

[13] Ver: “Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. Propostas do Conselho Federal de Psicologia”. CFP: Brasília-DF, 2009: 7.

Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2009/08/livro_escuta_FINAL.pdf

[14] Disponível em:  https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2010/02/escutFINALIMPRESSO.pdf

[15] Ver: Considerações sobre o Substitutivo ao Projeto de Lei da Câmara nº 4.126 de 2004 (tramita no Senado Federal como PLC nº 35 de 2004).  Audiência Pública realizada em conjunto pelas Comissões de Constituição e Justiça, Assuntos Sociais e Direitos Humanos do Senado Federal em 1º de julho de 2008. Disponível em: “Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. Propostas do Conselho Federal de Psicologia”. Idem, p.

[16] Ver, por exemplo: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/61065-cresce-o-numero-de-experiencias-destinadas-a-coleta-de-depoimento-de-criancas-e-adolescentes

[17] Ver, por exemplo, o documentário (H)OUVE?

https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=mDMxTzwGDbg

[18] Negritos nossos

[19] Negritos nossos

[20]Como Protegemos. Childhood Brasil.

https://www.childhood.org.br/como-protegemos-depoimento-especial

[21] Para maior aprofundamento do tema, ver:

 https://emporiododireito.com.br/leitura/e-suficiente-recorrer-a-convencao-da-onu-sobre-os-direitos-da-crianca-em-detrimento-da-legislacao-nacional-notas-a-proposito-do-projeto-de-lei-n-3792-de-2015 https://emporiododireito.com.br/leitura/e-suficiente-recorrer-a-convencao-da-onu-sobre-os-direitos-da-crianca-em-detrimento-da-legislacao-nacional-notas-a-proposito-do-projeto-de-lei-n-3792-de-2015

https://emporiododireito.com.br/leitura/valeu-a-pena-aprovar-o-projeto-de-lei-n-3792-de-2015-sem-nenhuma-audiencia-publica-notas-sobre-os-discursos-do-presidente-para-o-rei-e-a-rainha-da-suecia

[22] A Convenção define criança como sendo a pessoa abaixo de 18 anos de idade.

[23] Ver:  http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/vitima-de-estupro-coletivo-no-rio-conta-que-acordou-dopada-e-nua.html

[24] Constam também como autores do PL, além da deputada Maria do Rosário - PT/RS ,  Eliziane Gama - REDE/MA ,  Josi Nunes - PMDB/TO Zé Carlos - PT/MA ,  Margarida Salomão - PT/MG ,  Tadeu Alencar - PSB/PE e outros.

[25] Nossa transcrição da fala do presidente Temer, a partir da matéria apresentada na TV.

[26] http://www.childhood.org.br/quem-somos

 

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