Valeu a pena aprovar o Projeto de Lei nº 3792, de 2015, sem nenhuma Audiência Pública? Notas sobre os discursos do presidente para o rei e a rainha da Suécia

22/04/2017

Por Esther Maria de Magalhães Arantes – 22/04/2017

Permitam-nos iniciar fazendo breve histórico da tramitação na Câmara dos Deputados do PL nº 3792, de 2015, sem o qual não se compreenderá o título deste pequeno texto. Análise mais exaustiva deste PL já foi anteriormente divulgada[1].  Assim:

Deu entrada na Câmara dos Deputados, no final de 2015, o Projeto de Lei nº 3792, de 2015[2], que “Estabelece o sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, e dá outras providências”.

Em que pese grande consideração que temos pela Deputada Maria do Rosário, autora do PL juntamente com outros deputados, por sua indiscutível militância a favor dos direitos humanos de crianças e adolescentes, sempre afirmamos que o PL incorria em equívocos e incorreções conceituais, principalmente porque buscava, a qualquer custo, colocar a criança como responsável pela produção de prova judicial nos casos em que ela figura como vítima ou testemunha de crimes.

Em nossas considerações sobre este PL, sempre tentamos deixar claro que não se tratava de criticar projetos que ampliem e garantam os direitos de crianças e adolescentes. Muito ao contrário, somos favoráveis a tais projetos. No entanto, no que concerne especificamente ao PL 3792/2015, divergimos quanto ao sentido do que seja a proteção de crianças e adolescentes nas situações em que são chamadas a prestarem esclarecimentos sobre os fatos em que comparecem como vítimas ou testemunhas de crimes. Daí que sempre advogamos a necessidade de debates e Audiências Públicas sobre este PL, seja para endossá-lo, modificá-lo ou mesmo para retirá-lo de pauta – o que fosse o caso.

Ademais, conforme a lista apresentada ao final do PL, onde se agradece a participação de renomados peritos no “Grupo de Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças e Adolescentes”, verifica-se a ausência de representantes das Políticas Públicas nas áreas de Saúde, Assistência e Educação, bem como representantes dos Conselhos Profissionais de categorias envolvidas nas atividades previstas pelo PL, como é o caso de psicólogos e assistentes sociais – profissionais estes que geralmente compõem as equipes técnicas dos diversos serviços da chamada Rede de Proteção, e também, a ausência de representantes do próprio Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA).

Assim, ao recebermos convite para participar da 252ª Assembleia Ordinária do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), no dia 15 de junho de 2016, para tratar do PL 3792/2015, prontamente aceitamos, ainda mais porque o referido PL havia sido retirado das Comissões onde tramitava, para ser votado no Plenário da Câmara dos Deputados, em caráter de urgência, sem nenhuma Audiência Pública.

Na oportunidade em que estivemos no CONANDA lembramos aos conselheiros a “Manifestação da Comissão da Infância e Juventude da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP)[3], documento que faz severas críticas ao PL, lembrando, também, que a própria Relatora do PL, deputada Laura Carneiro, considerou que o PL pecava contra a técnica legislativa, não podendo ser levado à votação no Plenário da Câmara da forma como estava redigido – tanto que decidiu apresentar um Substitutivo. Para elaborar o Substitutivo – que ao nosso ver ficou melhor do que o PL original, corrigindo-se muitos de seus problemas – a Relatora preferiu discussões com representantes de algumas entidades, em reuniões que se deram na própria Câmara dos Deputados, não acatando a proposta de uma Audiência Pública sugerida por nós. Cabe lembrar que participamos de algumas destas reuniões, a convite do Conselho Federal de Psicologia.

Também mencionamos para os conselheiros o “Manifesto coletivo de entidades e profissionais das áreas de Serviço Social, Psicologia e Direito sobre a temática do Depoimento Especial de crianças no Judiciário – Dilemas e controvérsias”[4], divulgado no “XXVI Congresso Nacional da ABMP”, realizado em maio de 2016, na cidade de Curitiba.

Ainda em nossa fala nesta 252ª Assembleia Ordinária do CONANDA, fizemos um histórico da questão e pontuamos os principais problemas do PL mas, principalmente, tentamos mostrar aos conselheiros o quanto o PL ignorava o que a sociedade brasileira vinha construindo desde a Constituição de 1988, e o quanto se estava utilizando da comoção nacional causada pelo estupro coletivo da adolescente, ocorrido no Rio de Janeiro no mês de maio de 2016[5], para tentar votar o PL em caráter de urgência, sem nenhum debate e/ou Audiência Pública.

É importante lembrarmos aqui, que desde o término da Ditadura civil-militar de 1964, o Brasil vem reconhecendo todos os tratados internacionais de Direitos Humanos, construindo assim, uma Política de Estado de Direitos Humanos. A construção desta política vinha se dando com a participação, contribuição e protagonismo da sociedade em suas diferentes organizações e movimentos sociais, através tanto dos Conselhos de Direitos como das Conferências, em níveis nacional, estadual e municipal (Direitos Humanos, Criança e Adolescente, LGBT, Pessoa com Deficiência, Pessoa Idosa, Juventude, Políticas para as Mulheres, Povos Indígenas, Promoção da Igualdade Racial, Saúde, Educação, Assistência Social, dentre outras). Assim, nada mais coerente com os valores democráticos que solicitar Audiência Pública para discutir o PL, o que não foi acatado pela autora do PL original e nem pela Relatora e autora do Substitutivo. As razões? Uma que nos foi dada é que não havia necessidade, uma vez que a Relatora estava se colocando disponível para discutir o PL e a construir um Substitutivo. Outra razão? Não foi dito. Talvez o próprio funcionamento conturbado do país, dividido em ódios, onde não há mais oponentes e sim inimigos, e do Congresso Nacional, fracionado pelos interesses das diversas bancadas e às voltas com o processo de impeachment da presidente Dilma e da situação do deputado federal Eduardo Cunha. Se assim, porque a pressa em aprovar o PL? Porque legislar em águas turbulentas?

Finalmente, o Substitutivo foi aprovado em Plenário em 21/02/2017 e enviado ao Senado por meio do Ofício nº 173/17/SGM-P, em 07 de março de 2017[6].

A nossa esperança era que, uma vez no Senado, o PL fosse debatido em Audiência Pública, o que também não ocorreu. Ao que tudo indica, foi solicitado urgência para sua aprovação, não mais levando-se em consideração a situação de comoção nacional pelo estupro coletivo da adolescente no Rio de Janeiro, mas tendo-se em vista a visita ao Brasil do rei Gustavo e da rainha Silvia da Suécia. Era o presente a ser dado ao casal real pelo presidente Temer, em um momento em que sua popularidade despenca para menos de 10% de aprovação[7].  Vejamos:

Em 03-04-2017 a TV NBR transmitiu o discurso do presidente durante o jantar oferecido pelo Governo de São Paulo ao casal real. Neste discurso[8], foi dito que a visita do casal real ao Brasil comportava três dimensões: política, comercial/empresarial e social. Quanto a esta última:

“e uma dimensão social, na medida em que amanhã se instala no Brasil o Fórum Internacional em Defesa da Criança[9], já programas exitosos na Suécia e em outros países. Eu quero até comunicar às Suas Majestades e a todos, que a Marcela, minha mulher, na semana passada para cá, insistiu enormemente para que eu desarquivasse um projeto, buscasse desarquivar um projeto que já estava no Senado Federal, que trata precisamente ... é, que Estabelece um Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Crimes. E conseguiu! Porque, ainda ontem, o projeto, ou melhor dizendo, antes de ontem, este projeto no Senado Federal recebeu o que se chama regime de urgência e foi votado no mesmo dia. Eu quero dizer que, em homenagem às Suas Majestades, eu sancionarei publicamente, aqui em São Paulo, durante o Fórum, este projeto[10].

Ao ouvirmos este discurso, imediatamente pensamos em perguntar: valeu a pena ter aprovado este PL sem Audiência Pública, sendo os créditos por sua aprovação atribuídos ao esforço pessoal da esposa do presidente - no que parece uma tentativa de volta ao chamado primeiro-damismo, já superado no Brasil? Mas não apenas por este motivo. Também porque sabemos que várias entidades como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), a Associação de Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça de São Paulo (AASPTJSP), a Comissão da Infância e Juventude da Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), o Conselho Nacional da Criança (CONANDA), dentre outras entidades, incluindo representantes das Políticas Públicas de Saúde, Assistência e Educação, teriam muito a dizer sobre este projeto.

Por outro lado, sabemos do empenho do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e da Childhood Brasil[11] na aprovação deste PL, constando as duas entidades do “Grupo de Trabalho sobre o Marco Normativo da Escuta de Crianças e Adolescentes”, já mencionado, tendo esta última sido criada justamente pela rainha da Suécia. Vejamos:

Criada em 1999 pela Rainha Silvia da Suécia com o objetivo de proteger a infância e “garantir que as crianças sejam crianças”, a Childhood Brasil é uma organização brasileira que faz parte da World Childhood Foundation (Childhood), instituição internacional que conta com mais três escritórios: Estados Unidos, Alemanha e Suécia. O trabalho nos outros escritórios, no entanto, é diferente do realizado no Brasil. Os escritórios estrangeiros concentram suas atividades no apoio financeiro a projetos de organizações locais em mais de 16 países.

A Childhood Brasil influencia políticas públicas, trabalha junto ao setor privado e estimula a sociedade civil a olhar para a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Talvez o presidente tenha sido alertado posteriormente por alguém ou por sua assessoria sobre o impacto negativo de seu discurso, como ocorreu com a inauguração da transposição do Rio São Francisco, onde se omitiu a importância dos ex-presidentes Lula e Dilma para a realização desta transposição.

Assim, no jantar oferecido ao casal real, em Brasília, no dia 06-04-2017, o discurso foi outro. Ao dizer que em São Paulo havia sancionado a Lei que amplia a proteção da criança vítima e testemunha de violência, concluiu:

E para fazer justiça devo dizer que a autora deste projeto é a deputada Maria do Rosário, a Relatora na Câmara dos Deputados foi a deputada Laura Carneiro, e a Relatora no Senado Federal foi a Senadora Martha Suplicy[12].

E aí, valeu?


Notas e Referências:

[1] Arantes, Esther. É suficiente recorrer à Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança em detrimento da legislação nacional? Notas a propósito do Projeto de Lei nº 3792, de 2015.  Disponível:

Empório do Direito: http://emporiododireito.com.br/e-suficiente-recorrer-a-convencao-da-onu-sobre-os-direitos-da-crianca-em-detrimento-da-legislacao-nacional-notas-a-proposito-do-projeto-de-lei-no-3792-de-2015-por-esther-arantes

Revista da EMERJ - V. 19 - N. 76 – Outubro/Novembro/Dezembro - 2016 (Edição Especial):http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista76/revista76_sumario.htm

Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - AASPTJSP:http://www.aasptjsp.org.br/artigo/%C3%A9-suficiente-recorrer-%C3%A0-conven%C3%A7%C3%A3o-da-onu-sobre-os-direitos-da-crian%C3%A7a-em-detrimento-da-legisl

[2] Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1422633.pdf

[3] http://www.aasptjsp.org.br/sites/default/files/Nota%20da%20ANADEP%20sobre%20PL.pdf

[4] http://www.aasptjsp.org.br/noticia/depoimento-especial-de-crian%C3%A7as-no-judici%C3%A1rio-dilemas-e-controv%C3%A9rsias

[5] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/05/vitima-de-estupro-coletivo-no-rio-conta-que-acordou-dopada-e-nua.html

[6] http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1529070&filename=Tramitacao-PL+3792/2015

[7] http://www.redebrasilatual.com.br/politica/2017/03/reprovacao-a-temer-dispara-popularidade-despenca

[8] https://www.youtube.com/watch?v=8aLaM73Ehz8

[9] Programação do Fórum Global da Criança na América do Sul, 4 de abril de 2017, São Paulo, Brasil:

http://www.globalchildforum.org/wp-content/uploads/2017/02/Programme-at-a-glance_PORT_170326.pdf

Site do Fórum:

https://www12.senado.leg.br/institucional/programas/primeira-infancia/destaques-noticias/forum-global-da-crianca-na-america-do-sul

[10] Nossa transcrição.

[11] http://www.childhood.org.br/quem-somos

[12] Nossa transcrição

https://www.youtube.com/watch?v=3uknkSeDY94


Esther Maria de Magalhães Arantes

Esther Maria de Magalhães Arantes é Normalista, pelo Instituto de Educação de Goiás (1967); Bacharel em Psicologia, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1971); Formação de Psicólogos, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1972), Mestrado em Educação, pela Boston University (1976); Doutorado em Educação, pela Boston University (1981) e Pós Doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2011). Professora do Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/3876442600525617


Imagem Ilustrativa do Post: Michel Temer recebe Rei da Suécia no Palácio do Itamaraty // Vídeo de: TVNBR // Sem alterações Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3uknkSeDY9 Licença de uso: Licença padrão do YouTube

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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