O STF e a superlotação dos centros de internação de adolescentes: é possível impor limites ao absurdo?

06/08/2019

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou, em maio deste ano, a tramitação do julgamento sobre a superlotação do sistema socioeducativo, no âmbito do Habeas Corpus Coletivo n. 143.988/ES, cujo relator é o Ministro Edson Fachin[1].

Esta ação judicial traz um debate interessante acerca dos limites de superlotação dos centros de internação. Há quase um ano atrás, o Ministro-relator determinou “que na Unidade de Internação Regional Norte (UNINORTE) em Linhares/ES, onde há execução de medida socioeducativa de internação, a delimitação da taxa de ocupação dos adolescentes internos em 119%, procedendo-se a transferência dos adolescentes sobressalentes para outras unidades que não estejam com capacidade de ocupação superior à taxa média de 119%[2]. Em maio de 2019, o Ministro Edson Fachin ampliou esta determinação para outras unidades de internação dos estados do Bahia, Ceará, Pernambuco e Rio de Janeiro, tornando de repercussão nacional.

A segunda parte da decisão foi destacada porque define um limite “objetivo” à superlotação: 119%. Os poderes Judiciário e Executivo, nos termos da decisão, devem utilizar alternativas (transferência de unidade, colocação em programas de meio aberto, conversão em internação domiciliar, entre outras a serem definidas pelo magistrado) para atenuar a situação vivenciada na unidade que contava com 202 internos, quando sua capacidade máxima era de 90. Porém, é fundamental refletir sobre os fundamentos dessa decisão, em especial, a definição do percentual “objetivo” de 119% de lotação.

Um dos principais fundamentos foi a adoção do princípio “numerus clausus”, sendo, na decisão, definido como “aquele no qual a cada entrada em unidade prisional há, ao menos, uma saída, permitindo-se, assim, a estabilização ou diminuição da população reclusa, de modo a evitar a superlotação de cadeias, penitenciárias e unidades de internação (...) uma vez ultrapassada a capacidade máxima do estabelecimento, deveriam ser escolhidos os presos com melhor prognóstico de adaptabilidade social, impondo-lhes a detenção domiciliar com vigilância eletrônica.”[3]

É mencionada decisão anterior proferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski, na Suspensão de Liminar n. 823/ES em que o princípio foi aplicado para evitar que haja uma ocupação acima da capacidade máxima de estabelecimento penitenciário. O STF já havia adotado o princípio “numerus clausus” no julgamento da Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 347, reconhecendo que a superlotação carcerária torna muitas vezes as condições de cumprimento da pena mais gravosas que o próprio crime cometido, daí a adoção do princípio “numerus clausus” progressivo ou sistema de transferência em cascata das pessoas encarceradas”[4]. Desta feita “uma vez ultrapassada a capacidade máxima do estabelecimento, deveriam ser escolhidos os presos com melhor prognóstico de adaptabilidade social, impondo-lhes a detenção domiciliar com vigilância eletrônica[5].

 A discussão acerca da aplicação do princípio “numerus clausus” não é nova, tendo, inclusive, sido objeto de Projeto de Lei[6]. A par de resistência de alguns, que a acusam especialmente de ativismo judicial, é também apontada por outros como um relevante mecanismo para se impedir a superlotação e para se criar mais mecanismos de contenção do ambiente carcerário[7].

Chama, contudo, atenção no presente caso a fixação do percentual de 119%. O Ministro-relator Edson Fachin indica que a mensuração foi extraída “da taxa média de ocupação dos internos de 16 estados, aferido pelo CNMP, em 2013.”[8] Há três problemas principais no uso desta quantificação. O primeiro, o da distância temporal, pois é de um levantamento feito em 2013, usado numa decisão judicial em 2018 e 2019. Isso gera uma defasagem diante da real dimensão da situação, principalmente ao levarmos em conta que as taxas se alteram ano a ano. Há levantamentos mais atuais, por exemplo, que identificam uma taxa média de ocupação de 100,72%[9].

O segundo problema seria na determinação geográfica dos dados. O relator afirmar utilizar uma média de ocupação de 16 estados, sendo que o Brasil possui 27, além do Distrito Federal. Na verdade, o relatório “Um olhar atento às unidades de internação e semiliberdades para adolescentes”, elaborado, em 2013, pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), trabalha a taxa média de ocupação das unidades de internação abrangendo todos 27 estados e o Distrito Federal, frisando que há superlotação em dezesseis.[10] O cálculo contempla assim todos os estados. Aliás, se a taxa média fosse calculada só com base nestes, o valor seria de 184,9% de ocupação.

Um terceiro ponto é a busca de uma solução tendo-se como parâmetro uma situação problemática. Na prática legitima-se uma lotação 19% acima do permitido, inclusive em unidades que estão no limite de sua capacidade. O foco principal não parecer ser “resolver o problema”, mas criar uma solução que supostamente possa ser cumprida pela Administração Pública e pelo Poder Judiciário de cada localidade, em uma aplicação limitada do princípio da reserva do possível[11].

Essa lógica naturaliza o absurdo e reifica a violação de direitos dos adolescentes que permanecem nesta condição. Autoriza-se que o Estado possa operar ilegalmente, mas com autorização judicial para tanto. O Judiciário passa a legitimar a negligência estatal em resolver não apenas o problema da superlotação do sistema socioeducativo, mas o que leva a que tenhamos cada vez mais adolescentes ingressando nele.

Não se quer, de forma alguma, desmerecer a preocupação com a situação de superlotação das unidades que subjaz a decisão. Ocorre que ela, contraditoriamente, também se torna perigosa em tempos em que internação não é medida excepcional, como determina o Estatuto da Criança e do Adolescente, englobando 70% dos e das adolescentes cumprindo medida socioeducativa[12]. Assim, pode-se, na contramão do proposto, alimentar a flexibilização dos direitos de diversos adolescentes que cumprem medida pelo país para “melhor adequação” às condições do Estado brasileiro.

Vários estudos tem apontado como muitas vezes o sistema punitivo opera de forma muito mais cruel com os adolescentes do que com os adultos[13]. Não podemos permitir que, sob a esteira de discursos punitivistas crescentes, sejam os direitos destes, aos quais devemos preservar o melhor interesse, os mais sacrificados.

Por isso, e retornando ao princípio “numerus clausus”, diremos que o melhor critério objetivo deve seguir conforme certa jurisprudência tem caminhado no âmbito do sistema carcerário: a utilização inegociável da capacidade máxima do estabelecimento. Assim, para cada novo socioeducando que ingresse, que haja a definição de um, com melhor avaliação, para sair e continuar a cumprir seu tempo de medida socioeducativo em outra modalidade de meio aberto ou em outra unidade.

Ademais, o Estado deve ser responsabilizado não apenas pela melhoria dos estabelecimentos e pelas medidas de controle dos danos decorrentes do uso excessivo da privação de liberdade, mas por uma séria discussão, com a sociedade civil, do porquê chegamos nessa situação e como implantar soluções estruturais para ela.

 

Notas e Referências

[1] Cf. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 143.998 Espírito Santo. Min. Rel. Edson Fachin. Brasília, 16 ago. 2018, p. 1. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5189678

[2] Op. Cit., p. 11.

[3] Op. Cit., p. 3.

[4] Cf. Othero, Eduarda Couto Pessoa. Encarceramento em massa e o princípio do numerus clausus na execução penal. In: Empório do Direito, 28 jun. 2019. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/encarceramento-em-massa-e-o-principio-do-numerus-clausus-na-execucao-penal

[5] Op. Cit., p. 3.

[6] Projeto de Lei n. 513, de 2013, do Senado Federal.

[7] Cf. Roig, Rodrigo Duque Estrada. Um princípio para a execução penal: numerus clausus. In: Revista Brasileira das Ciências Criminais, n. 15, janeiro/abril de 2014.

[8] Op. Cit., p. 10.

[9] Cf. Folha de São Paulo. Onze estados têm sistema socioeducativo lotado, 8 jul. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/07/doze-estados-tem-sistema-socioeducativo-lotado.shtml

[10] Cf. Conselho Nacional do Ministério Público. Um olhar atento às unidades de internação e semiliberdades para adolescentes. Brasília: CNMP, 2013. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/Um_Olhar_mais_Atento_09.06_WEB.pdf

[11] Cf. Sarlet, Ingo Wolfgang; Figueiredo, Mariana Filchtiner. Reserva do possível, mínimo existencial e direito à saúde: algumas aproximações. In: Revista de Direitos e Justiça, 1, p. 188, 2007. Doi: 10.30899/dfj.v1i1.590

[12] Cf. Ministério dos Direitos Humanos. Levantamento Anual SINASE 2016. Brasília: MDH, 2018. Disponível em: https://www.mdh.gov.br/todas-as-noticias/2018/marco/Levantamento_2016Final.pdf

[13] Sobre o assunto, cf. Souza, Luanna Tomaz de; Albuquerque, Fernando da Silva; Aboim, Josilene Barbosa. Convenção da Criança e os Limites na Responsabilização de Crianças e Adolescentes no Brasil: Rupturas e Permanências. In: Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 02, 2019, p. 1356-1382. Doi: 10.1590/2179-8966/2019/39120

 

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