ENCARCERAMENTO EM MASSA E O PRINCÍPIO DO NUMERUS CLAUSUS NA EXECUÇÃO PENAL  

28/06/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

O encarceramento em massa é uma realidade no sistema prisional brasileiro. De acordo com os dados do último Infopen publicado, são mais de 700 mil pessoas presas no Brasil, com um crescimento da população carcerária que apresenta cada vez mais acentuado e uma quantidade de pessoas sem condenação que chega a 40% (quarenta por cento)[1]. Diante do contexto caótico, a aplicação do numerus clausus (ou  número fechado) aparece como uma tentativa de amenizar o problema da superlotação.

O Supremo Tribunal Federal -  STF - reconheceu que, diante da quantidade da população carcerária para o número de vagas e dos outros incontáveis problemas que perpassam o sistema carcerário, o Brasil enfrenta o que foi denominado Estado de Coisas Inconstitucional, na decisão da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) nº 347, proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

A ementa da referida ADPF nº 347 já evidencia o problema, esclarecendo que a superlotação carcerária e as condições desumanas dentro do cárcere provocam a “violação massiva de direitos fundamentais”, conforme se observa:

CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIÁRIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO. Cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciárias no Brasil. SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como “estado de coisas inconstitucional”. FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTINGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão.
(ADPF 347 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 18-02-2016 PUBLIC 19-02-2016)

Antes disso, a autora Maria Lúcia Karam e outros autores, bem como vários atores do sistema judiciário, vinham insistentemente denunciando a situação violadora de direiitos do sistema carcerário brasileiro. A autora evidencia que “a violência produzida pelas penas é mais impiedosa e provavelmente quantativamente maior do que a violência produzida pelos crimes; o conjunto de penas cominadas ao longo da história produziu, para a humanidade, um custo em sangue, vidas e mortificações incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos os crimes” (KARAM, 2010, p. 24).

Considerando a situação de obviedade da violação legal, em razão da população carcerária que ultrapassa o número de vagas e de outros motivos, o Ministro Ricardo Lewandowski, também na ADPF nº 347, afirma que:

Eles [os juízes] têm que observar estritamente o espaço físico das prisões, porque senão, se o juiz determinar a prisão para uma penitenciária, uma cadeia pública, para uma cela onde cabem vinte pessoas e já existem cem pessoas, evidentemente este mandado será cumprido em uma situação muito mais gravosa do que a própria sentença determina. (ADPF 347 MC, Relator(a): Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 09/09/2015, Processo eletrônico DJe-031 Div.: 18-02-2016, pub. 19-02-2016 p. 111)

Portanto, trata-se de um reconhecimento de que é impossível e ilegal que uma quantidade de pessoas superior ao número de vagas ocupe o cárcere.

Diante do contexto, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais recentemente publicou uma portaria[2] que prevê a possibilidade de adiantar a progressão do regime semiaberto para o aberto em seis meses e de transferir aqueles que se encontram no espaço destinado ao regime fechado para as vagas do regime semiaberto.

Tal forma de lidar com a superlotação do sistema carcerário é o que se classifica como numerus clausus progressivo ou sistema de transferência em cascata (em cadeia)[3]. Há, ainda, a previsão do modo classificado como direto, em que há previsão e deferimento de prisão domiciliar ou indulto às pessoas que se encontram mais próximas de alcançar a liberdade. 

Apesar das medidas que consideram o numerus clausus parecerem ser criadas para tentar solucionar o quadro caótico em que o sistema carcerário brasileiro se encontra, a teoria teve origem na França, em 1989, com proposta do deputado francês Gilbert Bonnemaison[4]. Na época e mesmo diante do contexto atual dos países que consideraram a aplicação da mesma, a situação era evidentemente menos gravosa que a do Brasil.

A título de exemplo, a juíza Adeline Hazan aplicou a teoria em uma época que haviam 69.375 pessoas presas para 58.311 vagas no sistema carcerário francês. Nesse contexto, a reclamação era porque o número populacional excedente estava dormindo em colchões, no chão das penitenciárias. Tanto quanto à quantidade quanto à intensidade de violações, a situação do sistema brasileiro é evidentemente mais grave[5], embora o STF tenha demorado a reconhecer e os magistrados, em regra, insistam em tratar a situação como normal. Evidentemente que é corriqueira, mas normal não pode ser, em razão da quantidade de violações legais e inconstitucionais estabelecidas.

Diante da possibilidade apresentada pela teoria, há críticas negativas, citando a mesma como expressão de ativismo judicial. Entretanto, de acordo com o magistrado e autor Luis Carlos Valois, “ativismo judicial é o judiciário encarcerar pessoas, mesmo sabendo que estão presas em situação ilegal, em nome da segurança pública”[6], posição que achamos mais coerente com os princípios constitucionais.

Em 1989, Nilo Batista já escreveu que “a  adoção do princípio numerus clausus, a par dos óbvios benefícios para a convivência penitenciária, deslocaria os investimentos estatais da infecunda construção de mais e mais presídios para programas de controle e auxílio aos egressos” (BATISTA apud ROIG)[7].

Dessa maneira, a teoria do numerus clausus não se apresenta como uma ideia absurda, mas, ao contrário, como a proposta lógica dentro do que a lei propõe e do que a Constituição estabelece como diretrizes básicas para o nosso ordenamento, ainda que o sistema penal, por si só, traga consequências devastadoras e que perpassam o estabelecido legalmente.

Nesse sentido, segundo Valois, “o que temos não é uma teoria complexa, mas uma conclusão de que o sistema prisional, com a superlotação carcerária é violador da lei. O numerus clausus é uma ideia amenizadora desse caos”[8].

Diante do que foi exposto até agora, não há dúvidas de que o princípio ora abordado apresenta-se como forma de amenizar os problemas trazidos pelo encarceramento em massa que, ao contrário do que é abordado, não soluciona o problema da criminalidade e sequer é capaz de trazer qualquer benefício que seja à sociedade. Ao contrário, uma política de encarceramento que desrespeita valores essenciais ao Estado Democrático de Direito, como o da não culpabilidade ou da presunção de inocência, estabelece-se como inimigo do ordenamento interposto e, por consequência, de toda a sociedade.

 

Sendo assim, o numerus clausus, é uma forma de tentar reverter o problema que assola o sistema carcerário de todo o país, apresentando-se como movimento contra a corrente imposta do encarceramento em massa. Diante dos quadros de superlotação que se instalam nas unidades carcerárias, é lógico e coerente com os princípios inclusive da matemática e da física, que o sistema só possa aceitar uma pessoa dentro do cárcere caso promova liberdade à outra, liberando, assim, uma vaga.

O sistema penal, dentro ou fora do cárcere, estabelece uma série de violações que ultrapassam o estabelecido por lei. No meio do caos, contudo, a teoria do numerus clausus surge com um respiro dentro do sistema carcerário, que não soluciona, mas ameniza os problemas diariamente evidenciados.

 

Notas e Referências

[1] BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: INFOPEN. Atualização – Junho de 2016. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pùblica. Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Sítio eletrônico. Disponível em <http://depen.gov.br/DEPEN/noticias-1/noticias/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias-2016/relatorio_2016_22111.pdf> Acesso em 20 mar. 2019, p. 13.

[2] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS. Portaria 834/PR/2019.  Publicada em 02 de maio de 2019. Disponível no sítio < http://www8.tjmg.jus.br/institucional/at/pdf/pc08342019.pdf> Acesso em 20 jun. 2019.

[3] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Um princípio para a execução penal: numerus clausus. Publicação do Instituto Brasileiro das Ciências Criminais, nº 15, janeiro/abril de 2014, ISSN 2175-5280.

[4] Ibdem.

[5] VALOIS, Luis Carlos. Processo de Execução Penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019.

[6] Ibdem, p. 42

[7] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Um princípio para a execução penal: numerus clausus. Publicação do Instituto Brasileiro das Ciências Criminais, nº 15, janeiro/abril de 2014, ISSN 2175-5280

[8] VALOIS, Luis Carlos. Processo de Execução Penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2019, p. 36.

 

 

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