O celular do preso em flagrante pode ser vasculhado? O caso do matador incauto e o STF

27/09/2015

Por Alexandre Morais da Rosa e Danielle Mariel Heil - 27/09/2015

O aparelho celular do sujeito preso em flagrante pode ser vasculhado, ou seja, as ligações efetuadas, as mensagens nele constantes, bem assim a lista de contatos? O conteúdo do aparelho celular estaria sob a proteção do art. 5º, X, XI e XII, da Constituição da República, exigindo-se, para respectiva verificação, ordem da autoridade judiciária, nos termos da Lei n. 9.296/96? Seria aplicável o art. 11 do Pacto de São José da Costa Rica: Artigo 11 - “Proteção da honra e da dignidade. 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas.”

Pois bem, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Habeas Corpus n. 91.867 estabeleceu que: “Ilicitude da prova produzida durante o inquérito policial - violação de registros telefônicos de corréu, executor do crime, sem autorização judicial. 2.1 Suposta ilegalidade decorrente do fato de os policiais, após a prisão em flagrante do corréu, terem realizado a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos. Não ocorrência. 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo , XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. 2.3 Art. do CPP.” (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 24/04/2012 SEGUNDA TURMA, HABEAS CORPUS 91.867 PARÁ. RELATOR : MIN. GILMAR MENDES)[1]

Do inteiro teor da decisão extrai-se que os pacientes foram denunciados pela suposta prática dos crimes previstos no art. 121, § 2º, II e IV, e art. 288, c/c o art. 29, todos do CP, na medida em que teriam contratado os serviços do corréu F. L. S., conhecido pistoleiro da região, para matar a vítima S. J. L, fato consumado em 27 de novembro de 2004, em plena praça pública, na qual a vítima fora alvejada por disparos de arma de fogo na presença dos que ali se encontravam. A defesa impetrou habeas corpus no Tribunal de Justiça do Estado do Pará pleiteando o trancamento da ação penal, mas o certo é trancar o processo, porque ação não se tranca, ou, subsidiariamente, o desentranhamento das provas obtidas por meios ilícitos. A ordem foi denegada.

No caso, a defesa sustentou a ilicitude de provas obtidas ao argumento de indevida “quebra de sigilo telefônico”, porquanto os policiais responsáveis pelo flagrante teriam verificado o registro das últimas chamadas efetuadas e recebidas dos dois celulares apreendidos com o corréu, executor do crime, responsável pelos disparos de arma de fogo. Ao analisar os dados contidos no celular, ter-se-ia chegado a números de telefones pertencentes aos pacientes.

Segundo o voto vencedor, os números, registros de ligação no aparelho — estavam acessíveis à autoridade policial, mediante simples exame do objeto apreendido, circunstância que, de fato, diferencia do acesso a informações registradas na empresa de telefonia. O exame do objeto — aparelho celular — indicou apenas o número de um telefone. Vale sublinhar, “abstraindo-se do meio material em que o dado estava registrado (aparelho celular), fora indagado: e se o número estivesse em um pedaço de papel no bolso da camisa usada pelo réu no dia do crime, seria ilícito o acesso pela autoridade policial? E se o número estivesse anotado nas antigas agendas de papel ou em um caderno que estava junto com o réu no momento da prisão?

No debate realizado pelo STF, além dos dispositivos constitucionais, “ponderou-se” a partir da nova redação do art. 157, do CPP, inserida pela Lei n. 11.690/08 - com franca inspiração no tratamento dado pela Corte Suprema dos Estados Unidos da América – acolhendo-se: (a) Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada (Fruit of the poisonous tree doctrine); (b) Teoria da Fonte independente (independent source); (c) Teoria da Exceção da Descoberta Inevitável (inevitable Discovery); e (d) Teoria do Nexo Causal Atenuado.

Cabe lembrar que o privilégio contra a auto-incriminação forçada – privilegie aganist compelled self-incrimination - nasceu com o caso Boyd vs United States, 116 UF 616 de 1886) conforme explica Garcez: “Em Boyd desenvolveu-se a ideia de que uma prova produzida licitamente, mas oriunda da infração de alguma das regras ou cláusulas, ou com violação de algum dos direitos garantidos pela Constituição, deveria ser excluída do processo, a fim de que não tivesse qualquer efeito na determinação do fato criminoso e de sua autoria.[2] A regra da exclusão (exclusionary rule) surgiu com o julgamento do caso Weeks vc United States, 232 US 383 de 1914, em que o processo não é ilícito, mas sim as provas. Continua Garcez: “Um terceiro julgado, Silverthone Lumbe Co. vc United States, 251 US 385 (1920), consolidaria a doutrina dos frutos da árvore envenenada e a formularia em termos célebres, ao escrever que ‘a essência da norma que proíbe a aquisição de uma prova de uma certa maneira não se limita a dizer que ela não pode ser utilizada em juízo, mas reza que ela não pode ter efeito algum.’”[3]  Entretanto, a regra sofreu mitigação com (a) a ‘doutrina da atenuação’ (attenuation doctrine), (b) a ‘doutrina da fonte independente’ (independent source doctrine) e (c) a ‘doutrina da descoberta inevitável’ (inevitable discovery doctrine).

O contexto em que a mitigação acontece se dá porque a Constituição Americana, diferentemente da brasileira, não possui dispositivo expresso de exclusão da prova ilícita (CR, art. 5º LVI). No Brasil deveria prevalecer a lógica de que os atos ilícitos praticados por autoridades públicas contaminam a prova, dada a expressa disposição constitucional. Logo, duvidoso que se possa reconhecer a constitucionalidade do art. 157 do CPP, pois parte de um pressuposto ausente no contexto brasileiro, a saber, no EUA inexiste disposição constitucional sobre a prova ilícita.

Todos estes temas mencionados ligam-se diretamente à proteção da intimidade. Assim, tem-se a atração do art. 5º, X, da CF: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, já definiu que o art. 11 protege a intimidade contra indevidas ingerências por parte do Estado. Esta definição é afirmada em especial no Caso Escher, ao afirmar que “o artigo 11 da Convenção proíbe toda ingerência arbitrária ou abusiva na vida privada das pessoas, enunciando diversos âmbitos da mesma como a vida privada de suas famílias, seus domicílios e suas correspondências. Nesse sentido, a Corte sustentou que ‘o âmbito da privacidade caracteriza-se por estar isento e imune a invasões ou agressões abusivas ou arbitrárias por parte de terceiros ou da autoridade pública’” (Escher v. Brasil, sentença de 06.07.2009). É claro que no contexto americano fala-se na ausência de razoabilidade na proteção da residência para prática de ilícitos, mas estamos no território brasileiro, lembramos o leitor.

Apesar de tudo, com a finalidade de solucionar determinados casos específicos envolvendo as provas obtidas por meios ilícitos, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, vêm decidindo por admitir provas de cunho ilícito, através da utilização de “critérios de ponderação”: a razoabilidade e a proporcionalidade. Há ainda, a chamada “corrente intermediária” que, diante do caso concreto, o julgador deve realizar uma análise casuística a partir desses parâmetros. Ademais, impende lembrar que a Constituição da República excepcionou a inviolabilidade domiciliar somente na hipótese de flagrante delito (art. 5º, XI). A própria liberdade sofre restrição no flagrante delito.  Os dados do aparelho de celular recebem proteção diversa ou entram por carona no flagrante?

Nesse contexto fático, o habeas corpus foi denegado, por terem considerado não haver qualquer ilicitude no procedimento da autoridade policial, sobretudo porque essa verificação permitiu a orientação inicial da linha investigatória a ser adotada, bem como possibilitou concluir que os aparelhos seriam relevantes para investigação. Ou seja, a autoridade policial, ao se apossar do aparelho, tão somente procurou obter do objeto apreendido, porquanto razoável obtê-los, os elementos de informação necessários à elucidação da infração penal e da autoria, a teor do disposto no art. 6º do CPP.

Daí falar-se em existência de provas autônomas (independent source) e em descobertas inevitáveis (inevitable discovery) como exceções à proibição ao uso da prova derivada da prova ilícita. Logo, segundo o STF, nem sempre a existência de prova ilícita determinará a contaminação imediata de todas as outras constantes do processo, devendo ser verificada, no caso concreto, a configuração da derivação por ilicitude. Na hipótese, entendeu-se não haver se falar em prova ilícita por derivação. É que, nos termos da teoria da descoberta inevitável, construída pela Suprema Corte norte-americana no caso Nix x Williams (1984), é certo que o curso normal das investigações conduziria ao encontro de elementos informativos que vinculariam os pacientes ao fato investigado. A teoria da descoberta inevitável é um drible na prova ilícita e pressupõe que a imaginação prevaleça sobre os fatos.

Do todo exposto, considerando a decisão do STF e que a proteção da intimidade contra indevidas ingerências estatais encontra amparo tanto na Constituição da República quanto no Pacto de São José da Costa Rica, finaliza-se o presente artigo com duas indagações: o entendimento da Corte Suprema brasileira é o mais adequado? As teorias norte americanas introduzidas em nosso ordenamento jurídico são viáveis ao sistema civil law e com o art. 5º, LVI? A nossa resposta é a de que basta ler o art. 5º, LVI, da CR, para se rejeitar a solução do STF. Dito diretamente: a diferença fundamental entre os sistemas constitucionais (EUA e Brasil) reside no fato de que o pressuposto para discussão da mitigação é o de que a Constituição Americana não traz expressamente a garantia da exclusão a prova ilícita, situação diversa da brasileira que exclui a prova ilícita (CR, art. 5, LVI). Logo, promover-se a leitura pela relativização é desconsiderar o contexto constitucional diverso.


Notas e Referências:

[1] BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/ listarJurisprudencia.asp?s1=%2891867.NUME.+OU+91867.ACMS.%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl .com/qykv757.

[2] RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 122. [3] RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 123.


Livros Publicados pelos autores na Editora Empório do Direito: Compre as obras aqui! a-teoria-dos-jogos-aplicada10994062_1549001075350774_8142308690169324819_no-processo-eficiente-na-logica135 processo-penal-no-limite                                             


 

Alexandre Morais da Rosa é Professor de Direito Penal e Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui                                                                                                                                                    


Danielle Heil (1) .

Danielle Mariel Heil é advogada, atualmente Procuradora Adjunta do Município de Brusque-SC, especialista em Direito Constitucional pela Fundação Educacional Damásio de Jesus e em Direito Penal e Processual Penal pela Escola do Ministério Público de Santa Catarina. Mestranda em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.                                                                                                                                                        


Imagem Ilustrativa do Post: Masificación de telefonía celular // Foto de: Ministerio TIC Colombia // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ministerio_tic/6812385049 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura