ABDPRO #128 - Entre o direito e a justiça, lute pelo direito!

06/05/2020

Coluna ABDPRO

Motivação: um jargão ainda forte na academia...

Normalmente, os juristas começam a trajetória acadêmica impulsionados pelo sentimento de fazer justiça e contribuir efetivamente com o bem-estar social. Esse nobre sentimento - que não deve ser perdido com o passar do tempo e com a convivência com as instituições jurídicas - é traduzido por um dos mais célebres jargões da área, que diz que “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”, de Eduardo Juan Couture. Assim, passa-se a discutir e aplicar o direito com base no sentimento de justiça. Afinal, de que adiantaria a Constituição e as leis se não for para serem justas?

Contudo, a experiência vai nos mostrando que a equação que envolve direito e justiça nem sempre é exata ou decorre de lógica simples... A aplicação da norma jurídica, muitas vezes, desperta em nós um angustiante sentimento de injustiça.

 

Direito x Justiça

Apesar de a justiça ser um valor nobre e necessário à vida no Estado Democrático, não é por toda e qualquer justiça que devemos lutar - sob pena de malferir a própria democracia! A justiça que devemos buscar, sobretudo na aplicação do direito, é a justiça que decorre da Constituição Federal, nossa lei maior, e da legislação a ela subordinada. Não a que as precedem. Caso contrário, inevitavelmente, estaremos tão somente atuando com base num senso pessoal. E nossas opiniões, sentimentos, desejos, concepções, não podem prevalecer sobre a ordem jurídica pré-estabelecida pelos Poderes institucionalmente constituídos - lembrando que, via de regra, o poder de criar o direito é exercido mediante representantes escolhidos de modo livre e universal pelo povo, nas urnas.

Tema que, vira e mexe, ganha manchete de jornais e passa a ser alvo de discussões é o do linchamento - tortura ou execução pública de pessoas. Trata-se de uma prática vedada pela Constituição, ao dispor, em seu rol de direitos fundamentais que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III). A prática viola nossa Carta Magna ainda que o linchado tenha, efetivamente, cometido um crime, e ainda que, no âmago do sentimento de justiça de muitos, essa seja a melhor solução para punir um delito.

Outra situação tem se observado sobremaneira com a Reforma Trabalhista e aprovação do Novo Código de Processo Civil, na qual, alguns juízes, simplesmente por discordar das novas normas, deixam de aplicá-las.

 

Falando de processo...

Falando de processo civil, inclusive, dediquei minha dissertação de mestrado, no PPGD da Universidade Católica de Pernambuco, ao estudo das razões que vinham levando juízos de varas cíveis de minha cidade, Recife-PE, a não designarem as audiências previstas no art. 334 do CPC, mesmo não sendo o caso de nenhuma hipótese de exceção prevista em nosso ordenamento (dispensa da audiência por ambas as partes, direito insuscetível de autocomposição, realização de negócio jurídico processual prévio – ou “cláusula opt-out” –, incompatibilidade do ato, que eventualmente ocorre diante de alguns procedimentos especiais, dentre outras)[1]. A pesquisa, de natureza quantitativa, cujos números serão divulgados na ocasião de sua publicação, identificou alguns fatores que influenciam na não marcação da audiência, a exemplo de valor da causa mais elevado e da presença de um litigante habitual no polo passivo.

Isso revela o que estamos discutindo aqui: um “drible hermenêutico”[2] na norma jurídica para, no fim das contas, utilizar um rito processual já revogado (afinal, era o CPC/73 que previa que, “Estando em termos a petição inicial, o juiz a despachará, ordenando a citação do réu, para responder”).

Ainda na seara processual, tocamos em outro tema, este muito caro a nós, da ABDPRO: o garantismo processual. De acordo com essa corrente, o processo é, sem demagogias ou relativizações, verdadeira instituição de garantia, ou, “contrapoder” de todo indivíduo face a função jurisdicional do Estado[3]. O garantismo milita, sobretudo, contra a ideia de que o processo é um instrumento a serviço da jurisdição para realizar, a todo custo, o direito material, ou ainda “fazer justiça”, ideais defendidos pela corrente instrumentalista, que pode ser bem expressada na passagem de seu maior precursor no Brasil, Cândido Rangel Dinamarco, com grifos nossos:

Examinar as provas, intuir o correto enquadramento jurídico e interpretar de modo correto os textos legais à luz dos grandes princípios e das exigências sociais do tempo –, eis a grande tarefa do juiz, ao sentenciar. Entram aí as convicções sócio-políticas do juiz, que hão de refletir as aspirações da própria sociedade (DINAMARCO, 1987, p. 274).

E o perigo disso (que vem sendo alertado praticamente toda semana nesta coluna), é que essa postura vai abrindo espaço para o ativismo judicial.

Em caso de formar-se um valo entre o texto da lei e os sentimentos da nação, muito profundo e insuperável, perde legitimidade a lei e isso cria clima para a legitimação das sentenças que se afastem do que ela em sua criação veio ditar. (DINAMARCO, 1987, p. 274).

Também se tem discutido sobre os perigos de uma outra modalidade de ativismo judicial, o voluntarismo:

O voluntarismo traz um plus ao ativismo judicial. Ele permite ao julgador a aniquilação das regras pelo simples fato delas serem ruins, de não servirem ao seu propósito, de não serem “justas” ou “adequadas” o bastante. Realiza-se um gerenciamento sanitário-legal, a partir da lente do julgador, desprezando a lei “imprestável” (CARVALHO FILHO; CARVALHO, 2019, p. 91).

Nesse ponto, recordo-me da fala do professor Bianor Arruda, que também é magistrado, num seminário no PPGD da Unicap, em 2019, no qual, com muito bom humor, falou que um juiz que nunca voltou triste para casa, após uma decisão que teve de proferir, provavelmente é um juiz voluntarista. Justifica: o ofício de julgar conforme a Constituição e as leis pode gerar (como já mencionado) um sentimento de injustiça ou de que poderia, de algum outro modo, ajudar uma pessoa de boa intenção. No entanto, não é permitido ao juiz colocar seus valore e sentimentos à frente das normas às quais está vinculado.

É preciso lembrar que, apesar de defender que o termo sentença vem do verbo latino sentire (do português sentir), nenhuma obra de cunho instrumentalista procurou enfrentar objetivamente questões como: “que sentimento é esse?” ou, “qual o parâmetro de justiça imbuído em termos como “devido processo justo”?”. Dividimos, a propósito, o incômodo expressado por Abboud e Lunelli (2015, p. 31): “a qual justiça os instrumentalistas se referem? Se a aposta está na discricionariedade de quem julga, muitas serão as justiças…”.

 

Conclusões

Por fim, não é possível defender uma posição, sob o mantra de que “a lei é injusta”, para afastar o cumprimento da própria lei. Trata-se de uma intentada que não compete aos juristas.

Mas lembremos, embora tenha de prevalecer - quando em conflito com a justiça - o direito pode sucumbir para o próprio direito. Isto é, tantas vezes a estrita aplicação de um direito fere outro, que deve prevalecer naquele caso. Aqui, não se trata de lutar pela justiça em detrimento do direito, mas pela melhor aplicação do próprio direito. E o nosso ordenamento jurídico traz diversas soluções para esses impasses, como a declaração de inconstitucionalidade (permitida, inclusive, aos juízes de primeira instância), declaração de nulidade parcial, resolução por antinomia (a regra de que prevalece a lei superior/específica/mais recente), ou simplesmente, a interpretação da norma conforme a Constituição Federal[4].

Precisamos urgente conscientizar os operadores do direito do perigo de apresentar jargões mal refletidos (que chegam a tornar-se lema de turmas de formatura), apresentando o direito como ele é - ou deveria ser - e onde, ao menos no Brasil ele está inserido: numa democracia constitucional. Mas essa missão precisa ser sobretudo assumida desde a base, isto é, no início da jornada acadêmica!

 

Notas e Referências

ABBOUD, Georges. LUNULLI, Guilherme. Ativismo judicial e instrumentalidade do processo. Revista de Processo (Repro), v. 242, p. 21-47, abr. 2015.

CARREIRA, Guilherme Sarri. ABDPRO #119 - Por que continuo tendo medo do STJ. Empório do Direito (online).04/03/2020. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-119-por-que-continuo-tendo-medo-do-stj. acesso em 15 mar. 2020.

CARVALHO FILHO, Antônio; CARVALHO, Luciana Benassi Gomes. Recuperação judicial e o voluntarismo judicial. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Belo Horizonte, ano 27, n. 106, p. 83-95, abr./jun. 2019.

COSTA, Eduardo José da Fonseca. ABDPRO #40 - Notas para um Garantística. Empório do Direito (online). 04/07/2018. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-40-notas-para-uma-garantistica. Acesso em 14 mar. 2020.

DI SPIRITO, Marco Paulo Denucci. Hipóteses objetivas de dispensa da audiência de conciliação e mediação. Empório do Direito (online). 23/07/2016. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/hipoteses-objetivas-de-dispensa-da-audiencia-de-conciliacao-e-mediacao. Acesso em 11 fev. 2020

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Ed. RT, 1987.

STRECK, Lenio Luiz. Uma ADC contra a decisão no HC 126.292 — sinuca de bico para o STF! Consultor Jurídico: 29 fev. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-fev-29/streck-adc-decisao-hc-126292-sinuca-stf. Acesso em: 11 dez. 2019.

 

 

[1] Recomendamos, neste ponto, a abordagem de Marco Paulo Di Spirito, acerca dessas e de outras hipóteses de dispensa da referida audiência (DI SPIRITO, 2016).

[2] Expressão alcunhada por Lenio Streck situações em que o judiciário dá a “volta” em um dispositivo legal válido, violando o que é elementar no direito: “uma lei ou dispositivo vigente e válido não pode ser contornada ou desviada” (STRECK, 2016).

[3] Garantia é muito bem explicada por Eduardo Costa, como sendo “toda e qualquer situação jurídica ativa, simples ou complexa, atribuída aos cidadãos por norma constitucional, cujo exercício tende a prevenir ou eliminar os efeitos nocivos do abuso de poder cometido pelo Estado, ou por quem lhe faça as vezes” (COSTA, 2018).

[4] Deixo ao leitor outro texto desta coluna, que enfrenta de modo magistral a questão, intitulado “Porque continuo tendo medo do STJ?” (CARREIRA, 2020).

 

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