O ano de 2020 foi, certamente, um ano atípico para todos. Em meio a uma pandemia, a sociedade global precisou adaptar o modo de viver, nos mais variados aspectos, para conseguir conciliar suas rotinas familiares e laborais. Os desafios foram muitos, principalmente na tentativa de normalizar a vida cotidiana, enquanto todo o mundo estava “parado” em isolamento social, buscando formas de conter a propagação do vírus. Mas enquanto muitas coisas permaneciam paradas, estabelecimentos fechados, economias estagnadas etc., o universo tecnológico encontrou-se diante de um desafio diferente: permanecer em funcionamento e, preferencialmente, com um desenvolvimento mais acelerado.
Nas últimas décadas o desenvolvimento tecnológico se deu de forma muito rápida, em comparação com os anos anteriores, e em decorrência dos desafios impostos à sociedade no ano de 2020, houve uma maior dependência das tecnologias, permitindo que boa parcela das pessoas dessem continuidade às suas atividades, adequando seu dia a dia ao “novo normal”. Plataformas como Zoom, Hangouts, Teams, Skype, dentre outras, ocuparam papel central no desenvolver das atividades escolares, com as aulas na modalidade EAD; nas atividades laborais, com os expedientes realizados em homeoffice; e até mesmo nas relações pessoais, possibilitando uma aproximação, ainda que à distância, entre amigos e familiares.
Embora os desafios tenham sido numerosos, o último ano abarcou muitas novidades e importantes discussões envolvendo tecnologia, inovação e direito. Façamos, então, uma breve retrospectiva desse ano nada previsível.
Um acontecimento que podemos dizer que marcou o ano de 2020 foi a tão esperada entrada em vigor da LGPD (quer dizer, parte dela). A Lei, que teve sua vigência dividida em 3 partes, muito se assemelhando à uma trilogia de filmes, com direito a enredos complexos e problemas que, à primeira vista parecem não ter solução, pegou muitas empresas de surpresa. A parte da Lei que trata sobre à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) entrou em vigou em dezembro/2018 (primeira parte); ao passo que, as disposições que dizem respeito às sanções administrativas de competência da ANPD, entrarão em vigor apenas em agosto deste ano – 2021 (terceira parte). A novidade em torno da vigência da LGPD é referente a todo o resto da norma. A Lei tinha a segunda parte de sua vigência prevista para começar a vigorar no primeiro semestre de 2021, conforme a MP nº 959 de abril de 2020, que, dentre outras coisas, postergou a vigência da LGPD para essa data (03 de maio de 2021).
Em resumo, a Medida Provisória, que tinha vigência máxima de 120 dias, não foi convertida em Lei, acabando por perder sua eficácia. O resultado de uma saga estranha e de difícil compreensão, foi a entrada em vigor da LGPD com efeitos retroativos para o dia 16 de agosto de 2020. Em coluna anterior o assunto fora abordado, tentando, ao máximo, explicar essa complexa odisseia[1].
Outra interessante e importante novidade que 2020 nos trouxe, foi o reconhecimento pelo STF da proteção de dados pessoais como sendo um direito fundamental[2]. A MP 954/2020 fora criada com o objetivo de regular o compartilhamento dos dados pessoais da população brasileira (telefone, nome completo e endereço) com o IBGE a fim de que fosse possível a criação de estatística oficial sobre a pandemia, tendo em vista o isolamento social e a impossibilidade de realização da pesquisa de forma pessoal[3]. Após a MP ser alvo de inúmeras ADIs, no dia 12 de novembro de 2020 houve a publicação do acórdão que decidiu pela inconstitucionalidade da MP, entendendo não ser razoável e necessárias as medidas nela previstas, podendo o IBGE se valer de outros instrumentos para realização de suas pesquisas estatísticas continuadas. Os ministros entenderam que o cumprimento da MP ofereceria grande risco de se ferir o direito fundamental à proteção de dados pessoais, à privacidade e à autodeterminação informativa dos cidadãos brasileiros. Além deste marco, entenderam ainda, os ministros da necessidade de respeito aos princípios da finalidade, transparência e segurança, previstos na LGPD.
Ainda na linha de proteção de dados pessoais dados, o último ano evidenciou ainda mais o problema por trás do acúmulo de poderio por parte das Big Techs. Muitas foram as notícias e divulgações de investigações contra as principais e maiores empresas de tecnologia do mundo (Amazon, Apple, Google e Facebook) por concorrência desleal, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Em setembro de 2020, inclusive, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos divulgou um relatório que apresenta os resultados de investigação com início em 2019, a qual teve como objetivo analisar e entender o crescimento desenfreado dessas empresas, que tornaram-se invencíveis no mercado competitivo global.
De um modo geral, todas as discussões decorrem do fato dessas empresas terem um monopólio de dados, que as colocam em vantagem competitiva com outras empresas menores, valendo-se das informações estratégicas que detém, para se manterem no poder, e aniquilarem a concorrência. Tratamos sobre o assunto em colunas anteriores, elencando as principais manobras utilizadas pelas empresas, e algumas das apurações resultantes das investigações que essas empresas sofreram[4]. Ainda que esses gigantes se utilizem de um comportamento anticoncorrencial para se manter no poder há anos, o ano de 2020 certamente teve sua importância sobre o tema, por evidenciar o problema por trás das condutas dessas Big Techs, demonstrando, ainda mais, a importância emergente de criação de regulamentação para o funcionamento dessas empresas. Em meio às investigações e acusações de práticas desleais de concorrência, a UE apresentou uma proposta de alteração à sua Lei de Serviços Digitais - Digital Service Act, com um conjunto de medidas que visam regulamentar as Big Techs, buscando combater as práticas anticoncorrenciais, bem como controlar de forma a respeitar o mercado interno europeu suas atuações[5].
A União Europeia, ainda como forma de controlar o monopólio de dados, sancionou o Regulamento UE 1150/2019, que passou a vigorar em 12 de julho de 2020. O regulamento tem por objetivo trazer um rol de regulamentos para as plataformas de Marketplaces – shopping virtuais, que nos últimos anos vêm ganhando cada vez mais espaço no setor de varejo[6]. A ideia é criar um ambiente concorrencial justo, de forma a garantir maior transparência nas relações contratuais, e que não exista um desequilíbrio contratual entre as partes (plataforma e fornecedor que oferta seu produto e/ou serviço no espaço online), de modo a, indiretamente, beneficiar o consumidor final. O instrumento é de grande importância, tendo em vista o crescimento acelerado dessas plataformas, sobretudo no último ano, em que sua popularidade se viu aumentar de forma exponencial em função das medidas de isolamento social decorrentes da pandemia.
Outro segmento que acabou por ganhar destaque, foram as redes sociais. Na verdade, nos últimos anos, as redes sociais veem sendo alvo de críticas, sobretudo quanto à necessidade de intensificação de regulamentação, principalmente quanto às Fake News que sedia todo um ecossistema de desinformação[7], remoção de conteúdo[8], maior proteção dos usuários contra discurso de ódio e exposição à conteúdo inadequado. Quanto a isto, no dia 07 de julho de 2020 fora anunciado no Jornal Oficial da União Europeia que as redes sociais deverão garantir que os usuários estejam protegidos contra o discurso de ódio e que menores de idade não tenham acesso à conteúdos inadequados[9]. Na mesma toada, no dia 28 de maio de 2020, o presidente dos EUA, Trump, editou um decreto para regular as redes sociais no país, com previsão de abertura de um debate com vistas a reformar o art. 230 do Communications Decency Act (que isenta as plataformas de responsabilidade por conteúdos postados)[10].
Voltando na temática de proteção de dados, mas agora na parte financeira e bancária, 2020 ficou marcada pela normativa do BACEN sobre ‘Open Banking’, que trouxe uma série de normas calcadas na premissa de que os dados pessoais em posse das instituições financeiras reguladas pelo BACEN pertencem aos respectivos titulares dos dados[11]. Em resumo, a ideia do Open Banking é estabelecer a obrigatoriedade (mediante solicitação do titular) no compartilhamento de dados entre as instituições financeiras e novos players, tendo como ideia central, a garantia de maior agilidade e serviços direcionados – mais baratos e mais eficientes – à sociedade.
Ainda na temática bancária, o ano de 2020 trouxe o novo sistema de pagamento em tempo real do Banco Central do Brasil – o PIX. No final do ano, em novembro, o sistema de pagamento instantâneo passou a funcionar no país, ganhando popularidade rapidamente. O sistema cobre operações de pessoa para pessoa (P2P), de pessoa para negócio (P2B), de negócios para negócios (B2B), de pessoa para governo (P2G), de negócio para governo (B2G) e vice-versa[12], sendo, eventualmente, a causa da provável extinção dos modos de transferência conhecidos atualmente: DOC e TED. As maiores vantagens do PIX são as de que as transferências são feitas em segundos, podendo serem realizadas inclusive de finais de semana e feriados, dia, noite ou madrugada; sem nenhum custo, nem para pagar ou receber; e com muito mais facilidade, principalmente no tocante ao compartilhamento de dados, que é mínimo. Não à toa que a ferramenta popularizou-se tão rapidamente.
Apesar dos enormes desafios, e das dificuldades encontradas por todos do ano de 2020, este fora um ano com interessantes acontecimentos na perspectiva das novas tecnologias e do direito digital, com acontecimentos que permearam diversas áreas de estudo. Serviu, inclusive, como pontapé inicial para diversas perspectivas, abrindo caminho para novos desafios para 2021 e continuidade nos desafios já encontrados no passar do último ano.
Para o ano de 2021, na linha da retrospectiva do último ano, podemos esperar muitas novidades e continuidades. No tocante à LGPD, ainda que a ANPD seja uma ficção, muito provavelmente deverão ser editadas as primeiras regras e regulamentos sobre Proteção de Dados Pessoais. No mesmo sentido, em agosto de 2021 passa a vigorar a terceira parte da vigência da LGPD, que diz respeito às sanções administrativas da ANPD. Ainda, muito vem sendo discutido sobre a chamada “LGPD Penal”.
Sobre as redes sociais, em vista à volumosa quantidade de discussões sobre o a regulamentação das plataformas, o ano de 2021 deverá sediar uma maior regulamentação para as redes, sobretudo quanto às Fake News. E sem demoras, este ano já preparou um terreno fértil para a temática das redes sociais. Após o presidente, Donald Trump publicar postagens contendo um teor favorável àqueles que invadiram o Congresso dos Estados Unidos na quarta-feira (07 de janeiro/2021), as plataformas do Facebook, Instagram e Twitter o baniram de suas redes por tempo indeterminado[13]. Em declaração sobre a decisão de banimento, Mark Zuckerberg manifesta preocupação quanto aos enormes riscos de permitir que o presidente continue utilizando as redes nesse momento.
A temática sobre a necessidade de mudança na regulamentação das redes sociais não é nova, e dificilmente se resolverá tão logo, mas a não existência de um modelo regulatório adequado e efetivo para o funcionamento das redes não é uma carta branca para que as plataformas tomem decisões arbitrárias. Tal como aconteceu em 2020 com a remoção de conteúdo do presidente Jair Bolsonaro, esse tipo de ação deve ser tomada com cautela, principalmente por serem medidas que atribuem, de certa forma, um poder ainda maior para essas plataformas (privadas) de tomarem decisões como se entidades públicas fossem. Não há dúvidas de que esse acontecimento trouxe e ainda trará muitas discussões e desafios para esse ano, que está apenas começando.
De igual modo, até em decorrência das discussões e investigações já traçadas nos últimos anos, as Big Techs devem esperar uma maior regulamentação e limitações quanto a suas atuações, podendo esperar, inclusive, previsões de sanções e aplicações de multas quando da não observância das novas regras de funcionamento.
Além disso, muito na linha do que a gente vem discutindo em colunas passadas, a tendencia é que, devido ao aumento no uso das tecnologias de Inteligência Artificial, e da corrida pela Governança da IA, que o ano de 2021 receba mais regulamentações dessas tecnologias, tanto a nível global quanto a nível nacional (como já vem acontecendo, mesmo que restrito ao poder judiciário, com as Resoluções nº 332[14] e nº 271[15] do CNJ.
De modo geral, podemos esperar muitas novidades para 2021 na temática de direito digital, se não pela soluções de problemáticas já identificadas, pelo encontro de novos desafios que, certamente surgirão e precisarão da atenção dos estudiosos sobre o tema. Aguardemos cenas dos próximos capítulos.
Notas e Referências
[1] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/lgpd-apertem-os-cintos-o-roteirista-enlouqueceu. Acesso em 06.01.2021.
[2] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/stf-reconhece-o-direito-fundamental-a-protecao-de-dados-pessoais. Acesso em 06.01.2021.
[3] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/privacidade-riscos-e-desafios-da-decisao-do-stf-sobre-a-mp-954-2020. Acesso em 06.01.2021.
[4] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/big-techs-e-direito-concorrencial. Acesso em 06.01.2021.
[5] Disponível em: https://www.euractiv.com/wp-content/uploads/sites/2/2020/12/Digital_Services_Act__1__watermark-3.pdf. Acesso em 06.01.2021.
[6] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/analise-do-regulamento-europeu-sobre-marketplaces. Acesso em 06.01.2021.
[7] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/ecossistema-de-desinformacao-e-regulacao-o-exemplo-do-sleeping-giants. Acesso em 07.01.2021.
[8] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/tempos-de-pandemia-e-a-remocao-de-conteudo-pelas-redes-sociais. Acesso em 07.01.2021.
[9] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/eua-e-uniao-europeia-intensificam-a-regulacao-das-redes-sociais. Acesso em 07.01.2021.
[10] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/eua-e-uniao-europeia-intensificam-a-regulacao-das-redes-sociais. Acesso em 07.01.2021.
[11] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/open-banking-o-que-e-onde-vive-do-que-se-alimenta. Acesso em 07.01.2021.
[12] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/pix-fintech-e-whatsapp. Acesso em 07.01.2021.
[13] Disponível em: https://www.dw.com/en/donald-trump-loses-social-media-megaphone/a-56158414. Acesso em: 07.01.2021.
[14] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/inteligencia-artificial-e-reconhecimento-facial-para-fins-de-policiamento-e-politica-criminal-a-resolucao-n-332-do-cnj-e-outras-referencias-normativas. Acesso em 07.01.2021.
[15] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/portaria-n-271-do-cnj-e-a-regulamentacao-do-uso-de-inteligencia-artificial-no-poder-judiciario. Acesso em 07.01.2021.
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