Finalmente o acórdão do Supremo Tribunal Federal sobre a declaração de inconstitucionalidade da MP 954/2020 foi publicado. Esta coluna já havia se dedicado a tecer comentários sobre o assunto[1], quando da decisão liminar de lavra da Min. Rosa Weber[2]. Com a publicação do acórdão[3] na semana passada (12 de novembro), é necessário retomar a pauta, principalmente no que concerne ao eventual reconhecimento da existência de um direito fundamental de proteção de dados pessoais no Brasil.
Antes, vale a recordação de algumas questões importantes relacionadas à MP, para melhor que possamos melhor entender no que consistem os votos proferidos pelos Ministros acerca do teor da medida.
No que consistiu a Medida Provisória nº 954/2020? ela previa o compartilhamento de dados dos usuários de telecomunicações (sejam eles: nomes, números de telefone e endereços dos consumidores, pessoas físicas ou jurídicas – art. 2º da MP), com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a produção de estatística oficial durante a pandemia do novo coronavírus, fundamentada na impossibilidade do instituto em realizar as visitas presenciais, como de costume.
Vale destaque, também, para a redação do parágrafo único do art. 4º, a qual estipula que: “Na hipótese de necessidade de conclusão de produção estatística oficial, a Fundação IBGE poderá utilizar os dados pelo prazo de trinta dias, contado do fim da situação de emergência de saúde pública de importância internacional”. Determinando, assim, o limite para uso dos dados compartilhados com o instituto.
Já em relação ao instituto em pauta, o IBGE, tem atuação há 84 anos no país, com criação em 1934, dedicando-se, desde então, a realizar análises e coordenações de informações estatísticas, entre outras funções, constituindo-se na principal entidade provedora de dados e informações do país[4]. Tendo como missão se valer dessas informações colhidas de forma a retratar a realidade do país, busca-se, com isso, a possibilidade de se satisfazer às necessidades sociais, garantir o exercício da cidadania e facilitar, por exemplo, a criação de políticas públicas que servirão com instrumentos que corroboram para concretização dos objetivos elencados na Carta Maior. Dessa forma, é possível entender a importância que o instituto tem para a sociedade brasileira.
Evidenciados esses pontos relevantes para a discussão, passemos então à análise dos votos dos Ministros, ao decidirem pela suspensão da eficácia da MP 954/2020, levando-se em consideração o fundamento quanto ao risco de ferir o direito fundamental à proteção de dados, à privacidade e à autodeterminação informativa.
O acórdão, de relatoria da Ministra Rosa Weber, com voto divergente do Ministro Marco Aurélio, foi ratificado por todos os demais Ministros da casa (STF).
Em seu voto Vencido, o Ministro Marco Aurélio se baseou na importância do instituto IBGE para a sociedade, entendendo que, diante da impossibilidade de realizar as pesquisas por amostra de forma presencial, a impossibilidade da análise da forma como prevista na MP prejudicaria a sociedade como um todo. Isso porque, com a falta de previsão para fim da situação de emergência, os levantamentos dos dados estatísticos, necessários para implementação das políticas públicas ficariam paralisados.
Ademais, reconheceu ele que, no julgamento, estavam diante da existência de conflito entre direito individual (direito à privacidade dos dados) e direito coletivo (continuidade das pesquisas), e nesse caso, existe a necessidade de realizar sopesamento entre os valores, devendo sempre essa ponderação prevalecer o coletivo em detrimento do individual. Neste caso, ao possibilitar o compartilhamento de dados para que as pesquisas do instituto aconteçam, permitiria buscar um objetivo maior – retratar a realidade do país, dando maior base para a criação das políticas públicas de prevenção à Covid19.
Quanto aos demais Ministros, houve o entendimento de que o direito à proteção de dados pessoais é direito fundamental, traduzido esse direito no fundamento da dignidade da pessoa humana - art. 1º, III da CF -, e nas garantias de proteção à inviolabilidade da intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, assim como à autodeterminação informativa e o sigilo dos dados, presentes no art. 5º, X e XII, da CF.
Nessa linha, existiria, de fato, uma necessidade em ponderar dois importantes pontos: de um lado as estatísticas demográficas para realização de políticas públicas de modo a atender aos direitos fundamentais; de outro, os direitos constitucionais previstos no art. 5º, X e XII da CF, os quais traduzem esse direito fundamental à proteção de dados. As questões analisadas pelos ministros, para realizar esse sopesamento, revelam-se na vagueza da MP ao dispor sobre o compartilhamento, tendo em vista que a medida é desproporcional, não atinge à requisitos de proporcionalidade e adequação, além de não apresentar mecanismos de proteção às informações, diante de uma situação de vazamento ou mal uso desses dados, ou impor de forma robusta os limites de uso dos dados.
A discussão acerca da proteção que deve existir em torno desse direito fundamental à proteção de dados, se verifica a partir da identificação de inconstitucionalidade material da MP. Diante desse aspecto, a Ministra Relatora Rosa Weber expõe em seu voto a existência da
[...] necessidade de tutela do direito fundamental à proteção de dados pessoais, a teor do art. 5º, XII, da CF, que assegura a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, ressalvada a relativização, nessa última hipótese, mediante ordem judicial e para fins de persecução penal.
Argumenta com o direito fundamental à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas (art. 5º, X, CF), como fundamento do indivíduo para determinar e controlar, frente ao Estado, a utilização dos seus dados. Seguindo essa linha discursiva, aponta para a existência, no desenho constitucional brasileiro, de um direito fundamental à proteção de dados, na concepção de um direito à autodeterminação informativa, em que fundamenta, inclusive, a edição da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/2018).
Em conclusão a esse raciocínio, a Ministra se vale da decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, de 1983[5], que reconheceu como fundamental o direito à autodeterminação sobre dados pessoais, diante de intervenções estatais. Tem-se, então, como cerne da MP, a existência de um direito fundamental à proteção de dados, e os riscos de violação que este direito sofre, mediante seu compartilhamento arbitrário com entidade pública - IBGE.
Em meio a sociedade da informação, esses dados ocupam importante valor (econômico e pessoal), daí a necessidade de maior proteção a eles, somado, evidentemente, ao fato de tratar-se de direito humano fundamental a todos. Mas a proteção de dados pessoais, como é posto pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto, não é um criacionismo jurisprudencial, que surgiu junto à essa sociedade contemporânea comandada pelo Big Data. Até porque, só no Brasil,
há mais de duas décadas, já se ensaia a evolução do conceito de privacidade a partir da edição de legislações setoriais que garantem a proteção de dados pessoais, tais como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei do Cadastro Positivo, a Lei de Acesso à Informação, o Marco Civil da Internet – que inclusive assegura aos usuários da internet, entre outros direitos, a inviolabilidade e o sigilo do fluxo de comunicações e dos dados armazenados (art. 7º, II e III) – e, mais recentemente, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018).
Assim, temos que, em sendo o direito à proteção de dados um direito fundamental, existiria envolto dele duas perspectivas: uma subjetiva e a outra objetiva, as quais se traduzem da seguinte forma: (i) a subjetiva seria a proteção do titular dos dados contra os riscos que ameaçam a sua personalidade em face do compartilhamento, processamento, utilização e circulação dos dados pessoais; (ii) a objetiva seria a atribuição ato titular dos dados pessoais de garantia de controle do fluxo de suas informações – proteção quanto à autodeterminação informativa.
Proteger os dados pessoais está diretamente ligado à garantia de proteção à privacidade da pessoa do titular, e como aponta o Ministro Gilmar Mendes, a proteção desse direito fundamental (proteção de dados) não mais se limita a espaços privados; essa garantia estende-se, também, a um “direito à governança, transparência e sindicabilidade do tratamento de dados compreendidos em acepção abrangente”. Nesse sentido, é possível extrair do art. 5º, incisos X e XII e do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, o direito à proteção de dados pessoais. Segundo o Ministro, a existência desse direito impõe ao legislador um dever de proteção a outro importante direito, também fundamental, qual seja, o direito à autodeterminação informacional.
Nessa mesma linha, expõe o Ministro Luiz Fux, que em seu voto aponta que:
A proteção de dados pessoais e a autodeterminação informativa são direitos fundamentais autônomos, que envolvem uma tutela jurídica e âmbito de incidência específicos. Esses direitos são extraídos da interpretação integrada da garantia da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da garantia processual do habeas data (art. 5º, LXXII), todos previstos na Constituição Federal de 1988.
Para defender a existência desse direito fundamental à proteção de dados pessoais, cita a decisão sobre o caso Digital Rights Ireland[6], proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em 2014.
De modo geral, com exceção do voto vencido do Ministro Marco Aurélio, houve acolhimento do voto da relatora pelos outros Ministros, que também entenderam pelo reconhecimento do direito fundamental. Com isso, a discussão baseou-se na necessidade de ponderação entre esse direito constitucional e a importante atuação do IBGE, o qual contribui para criação de políticas públicas que buscam assegurar, também, a dignidade da pessoa humana.
Em seu voto, o Ministro Barroso diz que entende a situação pandêmica e a intenção da MP, mas aponta que a providência tomada é de grande risco a esses direitos fundamentais, e assim sendo, a medida deveria ter sido precedida de um debate público quanto a importância, necessidade e riscos, devendo, ainda, haver o destaque sobre quais as medidas e ferramentas de segurança que seriam utilizadas para salvaguardar os direitos fundamentais dos titulares desses dados. Utilizar-se da ferramenta da Medida Provisória para obrigar o compartilhamento das informações em pauta impedem esse debate prévio, uma vez que a medida entra em vigor imediatamente por vontade unipessoal do chefe do executivo.
A importância desse debate e balizamento é crucial para garantia do direito à proteção de dados reconhecido como fundamental pela Corte, como forma de garantir que “ninguém seja invadido na sua privacidade sem que tenha dado consentimento, consentimento informado associado aos mecanismos de segurança”, ponderou o Ministro Barroso.
Barroso elencou, ainda, que o compartilhamento de dados pessoais para fins de produções estatísticas, terá compatibilidade com esse direito fundamental à privacidade se:
1) a finalidade da pesquisa for precisamente delimitada;
2) o acesso for permitido na extensão mínima necessária para a realização dos seus objetivos;
3) forem adotados procedimentos de segurança suficientes para prevenir riscos de acesso desautorizado, vazamentos acidentais ou utilização indevida.
Em se tratando de um direito fundamental, existe a necessidade de uma norma que traga mecanismos de salvaguarda aos direitos dos titulares desses dados. Como apontam os Ministros, é de grande preocupação a vagueza da MP, que não trás de forma robusta limites para o uso desses dados, seguido de medidas de segurança a serem adotadas para se evitar mal uso; ou até mesmo, ações que visem minimizar os danos em caso de vazamento ou na ocorrência de alguma lesão.
A adoção de medidas de salvaguarda é, inclusive, a essência do art. 8º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, que prevê expressamente à proteção de dados como direito fundamental dos cidadãos. Prevê o artigo:
Artigo 8. Proteção de dados pessoais
Todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito.
Esses dados devem ser objeto de um tratamento leal, para fins específicos e com o consentimento da pessoa interessada ou com outro fundamento legítimo previsto por lei. Todas as pessoas têm o direito de aceder aos dados coligidos que lhes digam respeito e de obter a respectiva retificação.
O cumprimento destas regras fica sujeito a fiscalização por parte de uma autoridade independente.[7]
É certo que a MP previu a utilização dos dados compartilhados enquanto durar a situação de emergência ocasionada pela pandemia, podendo se estender por até 30 dias contados do fim da situação emergencial, caso o IBGE necessite do prazo para concluir a pesquisa. Mas, levando-se em consideração que não existe previsão para mudança do cenário atual de (tentativa de) isolamento social, somado à ausência de mecanismos que salvaguardem os dados pessoais dos titulares, estabelecer esse limite temporal não é razoável e muito menos proporcional, quando analisados sob a ótica da proteção das informações dos indivíduos.
Como bem ressalta a Ministra Relatora, o compartilhamento de dados de mais de 200 milhões de usuários para realização da pesquisa é uma medida que ultrapassa os limites da proporcionalidade, sendo, inclusive, excessiva. Em sendo o instituto, entidade que trabalha com pesquisas amostrais, qual seria o fundamento que justifica a necessidade de compartilhamento dessa quantidade gigantesca de dados? Em condições normais, as pesquisas (que são feitas por amostragem), são realizadas presencialmente em aproximadamente 200 mil domicílios. Assim, não haveria necessidade de o instituto ter acesso a um montante 100 vezes maior de dados pessoais para realização das pesquisas, sendo que, presencialmente seria impossível o IBGE atingir essa abrangência.
Existiriam, assim, outras formas de conclusão da pesquisa, e menos invasivas à esfera privada dos titulares dos dados. Até porque, é conhecido o fato de que o IBGE tem uma grande quantidade de dados em seu poder, em decorrência dos 84 anos de atuação, sendo possível a realização de pesquisa continuada a partir da gigante base já existente.
A Lei Geral de Proteção de Dados define um dado pessoal como sendo aquela “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável” – art. 5º, inciso I da LGPD. Assim, é sabido que, os dados em discussão (nome, telefone e endereço) são dados pessoais pois identificam seus titulares. Desse modo, são eles passíveis da tutela jurídica, que busca protegê-los, precipuamente, por este ser um direito fundamental de todos.
O Ministro Marco Aurélio, ao defender a importância da MP, se coloca de forma que dá a entender uma insignificância nos dados que serão utilizados. Manifesta-se no sentido de que, os dados são tão “simplórios”, que ele mesmo, ainda que ministro do STF, tem seu nome, celular, telefone residencial e endereço conhecidos, e jamais teve sua dignidade ferida.
Mas quando trazemos esse entendimento para o contexto ora vivido de emergência, em decorrência da pandemia, há de haver uma maior preocupação com o compartilhamento de dados pessoais. Alguns Ministros demonstraram essa preocupação, de forma bem traduzida no voto da Ministra Cármen Lúcia:
Estou trazendo, em meu voto, que, nesses casos de restrição ao direito à privacidade, o Direito Internacional dos Direitos Humanos tem exigido exatamente a determinação de limites legalmente definidos, legitimando normas que estabeleçam objetivos legítimos a serem alcançados, a adequação dos meios utilizados, a proporcionalidade, a temporariedade desses meios para que se tenha o objetivo proporcionalmente buscado pelo meio de que se vale o Estado. Essa restrição levou o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos a apresentar orientações para a atuação dos Estados na crise provocada pela covid-19, considerando que a situação apresenta desafios ao respeito e à proteção dos direitos humanos.
Em um relatório apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas, o relator especial conclui que: qualquer captura ou uso de dados de comunicação é potencialmente interferência na privacidade. Além disso, que a coleta e retenção de dados equivale a uma interferência na privacidade, independentemente desses dados serem ou não consultados ou utilizados posteriormente.
Isso vale, portanto, como uma alerta para que se saiba que não é sob a desculpa da pandemia que se vai abrir mão dos limites, dos requisitos, constitucionalmente exigidos, para validade, para legitimidade da utilização dos dados necessários, mesmo que para fins estatísticos, que igualmente são necessários sim para formulação de políticas públicas, para implementação das medidas necessárias para uma sociedade. Mas o que se teve, nesta Medida Provisória n. 954, vai além do que a Constituição permite e aquém do que ela exige para que se tenha, então, a legitimidade do uso das ferramentas como foi feito.
Assim, é importante que fique claro que, em meio a uma sociedade regida por dados, não existe a concepção de “dado irrelevante”, e a proteção de todo um conjunto de informações passíveis de identificação de um indivíduo, merecem proteção, uma vez que qualquer dado pessoal, a depender da situação/manipulação, pode oferecer riscos ao seu titular. Não à toa que instrumentos regulatórios e decisões internacionais entendem como sendo um direito fundamental à proteção de dados pessoais. O Brasil, finalmente, trilha o mesmo caminho.
Notas e Referências
[1] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/privacidade-riscos-e-desafios-da-decisao-do-stf-sobre-a-mp-954-2020. Acesso em: 18.11.2020.
[2] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/mpv/mpv954.htm. Acesso em: 18.11.2020.
[3] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344949214&ext=.pdf. Acesso em: 18.11.2020.
[4] Disponível em: https://www.ibge.gov.br/institucional/o-ibge.html. Acesso em: 18.11.2020.
[5] Disponível em: http://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2019/1/2019_01_0781_0809.pdf. Acesso em 20.11.2020.
[6] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/pt/TXT/PDF/?uri=uriserv%3AOJ.C_.2014.175.01.0006.01.POR. Acesso em 19.11.2020.
[7] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:12016P/TXT&from=ES. Acesso em: 20.11.2020.
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