Prisão temporária é inconstitucional, segundo parecer exarado pelo Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira

17/07/2015

O Procurador de Justiça do Estado da Bahia Rômulo de Andrade Moreira emitiu parecer no Habeas Corpus n. 0013447-21.2015.8.05.0000, em tramitação no TJBA, pugnando pela inconstitucionalidade da Prisão Temporária, também conhecida como prisão para averiguações, a qual está prevista na Lei nº. 7.960/89. A prisão temporária configura manifesta inversão na ordem legal de procedimento, uma vez que a investigação, salvo casos excepcionalíssimos tais como as hipóteses de flagrante delito, deve ser realizada previamente à prisão, e não o contrário. Prender o indivíduo presumidamente inocente para só então investigar constitui séria afronta ao Estado Democrático de Direito e é inconstitucional, acarretando forma de tortura psicológica para obtenção de confissões - mais um resquício do sistema inquisitorial a ser superado.

Rômulo de Andrade Moreira lançou recentemente o livro “O Procedimento Comum” pela Editora Empório do Direito (confira aqui), além de ser articulista do site, com diversos artigos (confira aqui).  


MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

PROCURADORIA DE JUSTIÇA CRIMINAL

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PROCESSO Nº. 0013447-21.2015.8.05.0000 – HABEAS CORPUS

ORIGEM: SERRINHA – BA

ÓRGÃO JULGADOR: PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL – SEGUNDA TURMA

IMPETRADO: JUIZ DE DIREITO DE SERRINHA – VARA CRIMINAL

RELATOR: DESEMBARGADOR NILSON SOARES CASTELO BRANCO

PARECER Nº. 5691/2015

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“O juiz tem que saber qual é o sentimento social. E se ele puder decidir na forma da Constituição na mesma linha do sentimento social, é muito bom. Mas, sobretudo, quando exista um direito fundamental em jogo, mesmo que a maioria queira uma determinada coisa, se aquilo não for o certo o juiz tem o dever de ser contramajoritário, e em nome da Constituição fazer o que é certo, mesmo contra a vontade da multidão.” [1]

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Tratam os presentes autos de um pedido de habeas corpus visando à soltura do paciente acima epigrafado, sob a alegação, em epítome, de ausência de fundamentos jurídicos necessários para a prisão temporária, aduzindo ser “mais recomendável e suficiente a sua substituição por outra medida de natureza cautelar”.

Concedida a liminar requerida (fls. 33/36), a Magistrada prestou as informações de praxe (fls. 44/46).

Eis um sucinto relatório.

Os autos foram encaminhados ao Ministério Público para o parecer.

Como se sabe, tramita no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4109), ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB): “A prisão temporária, conhecida como prisão para averiguações, foi rejeitada pelo governo dos militares, por haver sido considerada flagrantemente antidemocrática.” Para a legenda, a redação imprecisa da Lei nº. 7.960/89 provoca infindáveis controvérsias nos meios jurídicos. O PTB afirma entender que a prisão temporária, além de agredir a garantia do devido processo legal, ultrapassa a razoabilidade dos objetivos que busca. Outra inconstitucionalidade flagrante da prisão temporária seria o desrespeito ao artigo 5º., inciso LVII, da Carta, que afirma que “ninguém poderá ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista a esse respeito, decisão judicial condenatória, transitada em julgado”.

Além do mais, o partido trabalhista entende que o instituto da prisão temporária já se demonstrou ineficaz em auxiliar a segurança pública. Em vigor desde 89, não apresentou resultados no que se refere à diminuição da criminalidade. “Ao contrário, nesses últimos 19 anos, as estatísticas criminais têm registrado, sublinhe-se, inquestionável aumento, especialmente nas cidades de maior porte.” A determinação contida na lei, de que o juiz deve decidir o pedido de prisão temporária no máximo em 24 horas também é um exagero e teria o objetivo, segundo o partido, de impedir que o magistrado tenha a possibilidade de sequer examinar os autos, concedendo a prisão sem uma análise detalhada dos autos. “A prisão temporária serve, de fato, para produzir tão somente grande repercussão na mídia, gerando a falsa impressão de que tudo foi resolvido”, alega o partido político. O resultado que se busca com a prisão para averiguações é a obtenção de confissões, não raro com o emprego inconstitucional da tortura, salienta ainda o PTB, pedindo ao Supremo que declare a inconstitucionalidade da Lei 7.960/89, com as alterações produzidas pelas Leis 8.072/90 e 11.464/07.

Com efeito, defendemos há algum tempo: a inconstitucionalidade da prisão temporária[2], disciplinada na Lei nº. 7.960/89 que, nada mais é do que aquela famigerada prisão para averiguações, hoje legalizada. Se do ponto de vista formal pode-se até concluir que a antiga prática foi regularizada, sob o aspecto material, indiscutivelmente, continua a mácula aos postulados constitucionais.

Como bem notou Paulo Rangel, “no Estado Democrático de Direito não se pode permitir que o Estado lance mão da prisão para investigar, ou seja, primeiro prende, depois investiga para saber se o indiciado, efetivamente, é o autor do delito. Trata-se de medida de constrição da liberdade do suspeito que, não havendo elementos suficientes de sua conduta nos autos do inquérito policial, é preso para que esses elementos sejam encontrados. (...) Prender um suspeito para investigar se é ele, é barbárie. Só na ditadura e, portanto, no Estado de exceção. No Estado Democrático de Direito havendo necessidade se prende, desde que haja elementos de convicção quanto ao periculum libertatis.”[3]

A propósito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez, segundo os quais não se pode “atribuir a la medida cautelar el papel de instrumento de la investigación penal.Dizem eles que “sin duda alguna, esa utilización de la prisión provisional como impulsora del descubrimiento del delito, para obtener pruebas o declaraciones, ha de rechazarse de plano, pues una concepción de este tipo excede los límites constitucionales, y colocaría a la investigación penal así practicada en un lugar muy próximo a la tortura indagatoria.”[4]

Aliás, a Lei nº. 7.960/89 padece de vício de origem, pois ela foi criada pela Medida Provisória nº. 111/89 quando deveria sê-lo, obrigatoriamente, por lei em sentido formal, votada pelo Congresso Nacional. Como observou Alberto Silva Franco, esta lei “originou-se de uma medida provisória baixada pelo Presidente da República e, embora tenha sido convertida em lei pelo Congresso Nacional, representou uma invasão na área da competência reservada ao Poder Legislativo. Pouco importa a aprovação pelo Congresso Nacional da medida provisória.”[5]

Atentemos que a Lei nº. 12.403/11 alterou substancialmente o Título IX do Livro I do Código de Processo Penal que passou a ter a seguinte epígrafe: “Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”. O novo art. 282 estabelece que as medidas cautelares previstas em todo o Título IX deverão ser aplicadas observando-se um dos seguintes requisitos: a necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais (periculum libertatis).

Além destes requisitos (cuja presença não precisa ser cumulativa, mas alternativamente), a lei estabelece critérios que deverão orientar o Juiz no momento da escolha e da intensidade da medida cautelar, a saber: a gravidade do crime, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do indiciado ou acusado (fumus commissi delicti). Evidentemente, merecem críticas tais critérios, pois muito mais condizentes com as circunstâncias judiciais a serem aferidas em momento posterior quando da aplicação da pena, além de se tratar de típica opção pelo odioso Direito Penal do Autor.[6] Procura-se, portanto, estabelecer no aludido Título os requisitos e os critérios justificadores para as medidas cautelares no âmbito processual penal, inclusive no que diz respeito às prisões provisórias, incluindo-se a prisão temporária, “pois são regras abrangentes, garantidoras da sistematicidade de todo o ordenamento.[7] Ademais, a prisão temporária encontra-se prevista neste Título IX do Código de Processo Penal (art. 283).

A propósito, vale transcrever um excelente trabalho de Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr.:

"A prisão temporária muitas vezes utiliza-se da lógica do cinto de castidade. Embora não se tenha certeza sobre o seu surgimento, a sua imposição conforma um meio de limitar e restringir a liberdade sexual da mulher. A lógica que orienta a mecânica restritiva do aparato é a de cerceamento absoluto da vontade potencial do outro. Trata-se de um mecanismo de sujeição orientado pela suspeita pré-constituída do censor do desejo alheio. Desse modo buscava-se garantir a ordem imposta pelo pai – sociedade patriarcal – mesmo quando este estivesse ausente. Era comum o pai que não queria ver a filha mantendo relações sexuais ou mesmo o marido ciumento proverem a mulher de cinto de castidade, situação que inacreditavelmente se mantém ainda hoje. A pergunta é se a utilização impede o desejo ou somente adia o ato, talvez com maior vigor? Essa lógica acaba se mostrando contraproducente para o próprio censor, uma vez que reforça o desejo pelo “proibido” e pode provocar vínculos de solidariedade inesperados com aquele que é violentado. Não são poucas as histórias triunfantes de libertação e rompimento das amarras. Certas energias não são represadas impunemente. Nesses casos o castigo para o censor pode ser muito maior do que o preço pago por uma liberdade irrestrita.A prisão temporária também pode facilmente se prestar a limitar e restringir a liberdade, quando é empregada perversamente em sentido preventivo, como proibição do direito de expressão, reunião e manifestação, por exemplo. E tudo em nome do pai. Da ordem. Da moral. Dos bons costumes. E principalmente, do silêncio. De um silêncio que é típico de ditaduras e que não podemos aceitar. Apesar de arcaico, o cinto ainda tem seus adeptos. Pessoas que adoram jaulas e mordaças. Que não suportam o diferente e que somente dormem tranquilas quando prospera a mesmidade das coisas. Resta aos que se solidarizam com as vítimas do cerceamento preventivo de seus direitos, fazer aquilo que a democracia nos permite. Barulho. Muito barulho.É ilegal a prisão com base no que alguém pode potencialmente vir a fazer, ou que se supõe que um dia faça. Ainda mais quando este suposto “fazer” configura exercício de direito fundamental. Testemunhamos nos últimos dias um exercício de futurologia inteiramente incompatível com o Estado Democrático de Direito, como o é a própria prisão temporária, ainda que em alguns casos essa ilegalidade fique mais manifesta do que em outros. A prisão temporária, convertida que foi da Medida Provisória nº 111/89, regulada pela Lei nº7.960/89, é manifestamente inconstitucional. O Supremo Tribunal Federal analisando (ou melhor, tergiversando) a questão, entendeu (Medida Cautelar nº 162, julg. 14.12.89) que a prisão não era obrigatória, devendo, de qualquer sorte, ser fundamentada. Entendemos diversamente, com aponta Fauzi Hassan Choukr “No julgamento anunciado, a Corte Suprema tangenciou os temas fundamentais da matéria, e corroborou uma vez mais a inequívoca vocação legislativa do Poder Executivo, desta vez acobertando-a com o manto da não obrigatoriedade da aplicação da medida pelo magistrado no caso concreto, que apenas tomaria a medida com a devida fundamentação. Verdadeiramente não é este o ponto central do descumprimento da cláusula constitucional que determina ser a medida provisória empregada apenas em casos de extrema urgência e relevância.” Aury Lopes Jr indica que: “nasce logo após a promulgação da Constituição de 1988, atendendo a imensa pressão da polícia judiciária brasileira, que teria ficado ‘enfraquecida’ no novo contexto constitucional diante da perda de alguns importantes poderes, entre eles o de prender para ‘averiguações’ ou ‘identificação’ dos suspeitos. Há que se considerar que a cultura policial vigente naquele momento, onde prisões policiais e até a busca e apreensão eram feitas sem a intervenção jurisdicional, não concebia uma investigação policial sem que o suspeito estivesse complemente à disposição da polícia. (…) Então não se pode perder de vista que se trata de uma prisão cautelar para satisfazer o interesse da polícia, pois, sob o manto da ‘imprescindibilidade para as investigações do inquérito’, o que se faz é permitir que a polícia disponha, como bem entender, do imputado. (…) A prisão temporária cria todas as condições necessárias para se transformar em uma prisão para tortura psicológica, pois o preso fica à disposição do inquisidor. A prisão temporária é um importantíssimo instrumento na cultura inquisitória que ainda norteia a atividade policial, em que a confissão e a ‘colaboração’ são incessantemente buscadas. Não se pode esquecer que a ‘verdade’ esconde-se na alma do herege, sendo ele o principal ‘objeto’ da investigação”. Nesse contexto, até porque se assume postura democrática, deve-se declarar inconstitucional a Lei (sic) n. 7.960/89, deixando-se bem claro que se elementos para preventiva se fizerem presentes, que se a requeira. Temporária só decreta quem não entendeu a dimensão da presunção de inocência e do direito de não produzir prova contra si mesmo, sem falar da novidade (prisão cautelar como cinto de castidade: para evitar crimes). Isto porque a mentalidade inquisitória da prisão para averiguações, para esclarecimentos, não se compadece com o processo democrático. Deveria ter acabado o tempo em que as pessoas eram presas para se investigar, embora, reconheça-se, seja a mentalidade de muita gente que opera no direito penal, em regra, porque foram formados – ou seduzidos – pelos discursos fáceis da lei-e-da-ordem, para os quais a tolerância deve ser zero! No entanto, os discursos da matriz inquisitória continuam sendo reproduzidos e prosperam de forma irrestrita, conformando uma verdadeira lógica persecutória de extermínio do inimigo. De outro lado, a partir da teoria dos jogos a prisão temporária serve como tática de aniquilamento midiático e patrimonial. Desestabilizam a possibilidade de defesa direta mediante o massacre nos meios de comunicação e, por outro lado, avisam aos demais que se terão igual tratamento draconiano, ou seja, quem a autoridade policial entender que poderá cometer crime, pode ser preso, com chancela judicial, sem base fática que não o imaginário. Aliás, as decisões primam pela qualidade ao inverso, de regra, embora os Tribunais não queiram ver isso. Cabe lembrar, ademais, que todas as prisões devem ser excepcionais, provisórias e atender ao comando da proporcionalidade (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito).A incerteza e opacidade do campo de batalha processual podem ser chamados de atritos, como queria Clausewitz, ao exigirem a tomada de posição estratégica e tática, antecipando os movimentos do jogador. A transformação do processo em jogo de guerra possibilita entender a pressão externa de personagens, especialmente do populismo penal: a) mídia – vende o produto crime; b) políticos – que usam o medo como plataforma política; c) máfia, crime organizado, – lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e pessoas, os quais podem intervir na prova (coação); d) polícia – para valorizar seu status; e) magistrados, Ministério Público, defensores. Esses novos jogos penais viciados pelo populismo não servem para estabilizar, mas para renovar o estado de medo e pânico. Se sabe que a pena não resolve, nem encaminha a questão. A crença no aumento de punições e processos penais céleres, sem garantias processuais, fomenta a sensação de segurança, tão imaginária quanto histórias infantis, ainda que vendidas pela mídia delivery e manejadas politicamente. Vende-se o crime como o sintoma do mal a ser extirpado. É preciso entender a relação entre jogo processual e política. Sem isso a leitura do processo penal e dos movimentos de recrudescimento é ingênua. O processo pode cooperar com o controle social, mas não pode ser subserviente a ele. Não pode ser um aliado de trincheira. Se assim se postar perde a dimensão coletiva de garantia que a razão exige e que demarca o próprio sentido da jurisdição no Estado Democrático de Direito. É necessária certa autonomia do processo penal. Não se pode condenar ninguém, em Democracia, em nome de fins políticos ou midiáticos. Daí a função contramajoritária do processo penal: deve ser o jogo democrático pelo qual se pode, ao final, se e somente se, cumpridas as normas, aplicar-se uma sanção estatal. Do contrário o jogo sujo para com a democracia prevalecerá.Alguns dizem que não vivenciamos a ditadura, embora tenhamos nossas desconfianças. Ainda que se tenha possibilidade de Habeas Corpus, mais uma vez, o direito foi instrumentalizado para dar o verniz de legalidade ao mundo militarizado. Liminares são negadas e arbitrariedade confirmadas. Poderíamos ficar quietos e seria mais inteligente. No mundo em que a mentalidade militar continua guiando o modo de pensar do Poder Judiciário (Não se fez comissão da Verdade no Poder Judiciário), prisões temporárias, para averiguação, mandados coletivos, tudo o mais, no fundo servem para perpetuar a opressão da manutenção da ordem. A pergunta ingênua é: que ordem? Lembremo-nos que o cinto de castidade somente aumentava o desejo. Ontem e hoje. Nesses casos, aumenta o desejo de todos nós. Foi com repressão injustificada que as ruas foram tomadas nas jornadas de junho, como podem ser tomadas novamente. Alguém pode apostar que não? As redes sociais fizeram com que o censor perdesse o controle do jogo. A proibição atiça a libido do rebelde em potencial. Qualquer controle preventivo de natureza totalitária não é apenas inaceitável, está fadado ao fracasso. A resistência democrática não pode admitir a reafirmação de uma lógica lombrosiana de persecução de pessoas vistas como coisas, como portadoras de uma maldade que deve ser restringida antes que sequer seja esboçada uma “ameaça” para a coletividade. Prisão antecipada ao fato? Cinto de castidade para controlar a libido de liberdade? Que se rompam os grilhões e que a rebeldia flua. Não estamos falando em caos e destruição e sim em direito de manifestação, de expressão, de reunião e até mesmo de formação de opinião. Que tempos sombrios esses em que livros vermelhos são apreendidos como se fossem disseminadores de perversão. Fruto proibido em pleno século XXI? Estará a serpente espreitando o paraíso e temos que zelar pela pureza do homem de bem?Para terminar, diálogo de um filho de seis anos com o pai, diante das prisões televisionadas. Pergunta o filho: –  Pai, o que eles fizeram? O pai responde: – não fizeram nada. – Então porque foram presos? Porque alguém mandou prender. – E podia? – Não. Por que continuam presos? – Porque a maioria dos Juízes está em Berlin. Será?"[8]

Saliente-se a lição imprescindível de Maria Lúcia Karam:

Como em toda tutela de urgência propriamente cautelar, a decretação ou a manutenção de qualquer prisão provisória (ou processual) destina-se a assegurar a possibilidade de realização futura de uma pretensão amparada pelo ordenamento jurídico, em situação em que surge o risco de inviabilização da satisfação prática do direito alegado. Assegura, assim, essa tutela cautelar, como tradicionalmente se expõe, os meios e os fins de processo no qual se busca ou se irá buscar a realização daquela pretensão. No caso da prisão provisória, cuida-se de um processo penal de conhecimento em curso ou a ser instaurado, em que o Estado apresenta ou deverá apresentar demanda veiculadora da pretensão de fazer valer seu poder punitivo, diante de alegada prática de conduta legalmente qualificada como infração penal. Toda prisão provisória submete-se, pois, aos requisitos da tutela cautelar, que, expressados nas tradicionais fórmulas do fumus boni iuris e do periculum in mora, podem se traduzir na exigência de demonstração da necessidade da privação da liberdade, enquanto única medida asseguradora da eficácia de um futuro provimento jurisdicional (a sentença condenatória), cuja probabilidade de ser favorável ao autor do pedido formulado no processo principal há de vir revelada na aparência do direito alegado (o direito do Estado fazer valer o poder punitivo). A legitimidade da excepcional prisão provisória condiciona-se, portanto, à concreta demonstração de contexto fático revelador de sua necessidade, para assegurar que a imposição da pena, que, de início, aparece como provável, efetivamente se realize com o pronunciamento final condenatório no processo penal de conhecimento. A aparência do direito alegado pelo autor da ação penal condenatória (o direito do Estado fazer valer o poder punitivo), a constituir o fumus boni iuris, se revela na existência de provas demonstrativas da probabilidade de que o alegado crime tenha realmente ocorrido e da probabilidade de que tenha sido efetivamente o réu quem o praticou (na linguagem da lei processual penal brasileira: “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria” – artigo 312 do Código de Processo Penal). A probabilidade reveladora da aparência do direito alegado se concretiza através de uma demonstrada predominância de elementos probatórios indicativos da ocorrência dos fatos constitutivos daquele alegado direito.(...) Investigações que antecedem a propositura da ação penal condenatória, como as desenvolvidas em inquérito policial, destinam-se unicamente a instruir a inicial daquela ação, de modo a fornecer exatamente os elementos indicativos dessa probabilidade de ocorrência da infração penal e de sua autoria. A aparência do direito do Estado fazer valer seu poder punitivo, revelada nessa probabilidade, conforma a justa causa para a acusação, requisito (ou condição da ação) genérico para o regular exercício do direito de ação penal condenatória. Essa mesma aparência do direito do Estado fazer valer seu poder punitivo, exigida dentre os requisitos autorizadores da imposição da prisão provisória, é, portanto, igualmente exigida para um juízo de admissibilidade positivo sobre a demanda veiculada através da propositura da ação penal condenatória. Se a ação penal condenatória não é proposta, se as investigações desenvolvidas no inquérito policial ainda não estão concluídas e se faz necessário seu prosseguimento, só pode ser porque ainda não existem provas suficientes para demonstrar aquela probabilidade de ocorrência da prática da infração penal, não se revelando, pois, a aparência do alegado direito do Estado fazer valer seu poder punitivo. E se esta aparência não está revelada, falta o fumus boni iuris indispensável à imposição da prisão provisória. Neste ponto, já se evidencia a ilegitimidade de qualquer prisão para averiguações, isto é, prisões que se destinam a viabilizar investigações prévias à propositura da ação penal condenatória. É o caso, no ordenamento jurídico brasileiro, da prisão temporária, introduzida com a Lei 7.960/89 e logo reafirmada na Lei 8.072/90, que, dispondo sobre os crimes ditos “hediondos” e os a eles equiparados, marca o início da produção de leis de emergência ou de exceção após a redemocratização do Brasil. Desvinculadas do pretendido resultado do processo principal (o processo penal de conhecimento), vinculadas que estão ao mero resultado do procedimento administrativo investigatório, cuja função se esgota no fornecimento de elementos para a propositura da ação penal condenatória, essas prisões para averiguações (temporárias ou qualquer que seja a denominação que lhes for dada) já por isso se afastam da exigida cautelaridade de qualquer prisão provisória, faltando-lhes a acessoriedade característica da tutela cautelar. Mas, além disso, tais prisões dispensam o próprio fumus boni iuris, efetuando-se muito antes que se manifeste a aparência do direito do Estado fazer valer o poder punitivo. A acenada necessidade de viabilizar investigações policiais por si só revela a ausência de provas demonstrativas da probabilidade de ocorrência da infração penal e, portanto, a ausência da “fumaça” do direito alegado. Sequer se poderia acenar com uma supostamente necessária presença do investigado para viabilizar tais investigações. O direito a não se auto-incriminar (direito ao silêncio), assegurado expressamente no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) – direito diretamente relacionado à garantia do estado de inocência –, naturalmente implica em que, mesmo no processo, declarações do indivíduo acusado da prática de uma infração penal só devam ser prestadas a seu próprio requerimento, unicamente enquanto meio de realização da autodefesa e do direito à audiência (direito do indivíduo ser ouvido sobre acusação que lhe é feita). Muito menos pode o indivíduo ser forçado a prestar declarações em procedimento investigatório destinado a instruir possível futura ação penal condenatória; muito menos pode ser forçado a contribuir direta ou indiretamente para qualquer investigação; muito menos pode ser forçado a revelar qualquer coisa que possa lhe prejudicar, não podendo assim ser forçado a se fazer presente em inquérito policial (ou qualquer outro procedimento investigatório equivalente), não havendo nenhuma razão legítima que possa autorizar uma tal imposição. Na realidade, as ilegítimas prisões para averiguações não conseguem esconder seu objetivo prático de instrumento desautorizadamente destinado a coagir o investigado a confessar e/ou delatar. O risco de inviabilização da satisfação prática do direito alegado pelo autor da ação penal condenatória (o direito do Estado fazer valer o poder punitivo) – e, assim, a necessidade da prisão provisória – se manifesta em raras situações em que se demonstre a existência de fatos concretos reveladores de uma ingerência indevida do réu na produção de provas, constrangendo ou corrompendo testemunhas ou peritos e assim perturbando o desenvolvimento da regular instrução do processo.Esse risco também poderá se manifestar se existirem fatos concretos que demonstrem que o réu (ou o investigado) está se preparando para fugir e dificilmente será encontrado para cumprir a pena que poderá vir a ser imposta em caso de condenação. Somente em hipóteses como essas, referidas diretamente aos “meios e fins” do processo penal de conhecimento, estará autorizada a imposição de prisão provisória, desde que, naturalmente, também esteja demonstrado que a privação da liberdade é o único meio apto a controlar tal comportamento do réu (ou do investigado) e afastar o risco de inviabilização da satisfação prática do direito alegado pelo autor da ação penal condenatória (o direito do Estado fazer valer o poder punitivo).[9]  (grifo nosso).

Outra não é a opinião de Jorge Alexandre Karatzios, advogado criminalista e Professor de Direito Penal e Processo Penal:

"A lei sobre Prisão Provisória teve origem a partir da edição da Medida Provisória n.º 111 de 24 de novembro de 1989, que foi convertida no Projeto de Lei de conversão n.º 039/89, aprovado em seguida, tranformou-se na Lei 7.960 de 21 de dezembro de 1989. Foi, assim, enviada ao Parlamento pelo então presidente da República, José Sarney, com a finalidade de coibir os abusos praticados com a denominada “prisão para averiguação”, e bem como para auxiliar a Autoridade Policial (Delegados de Polícia) no estabelecimento de autoria e materialidade em razão da prática de delitos graves v.g., roubo, homicídio simples, etc., (veja-se que a aludida lei não se aplica somente aos delitos hediondos). Bom é lembrar que a prisão temporária já fora aventada por força do projeto de Lei n.º 1.655 do ano de 1983, cuja finalidade era evitar desnecessárias prisões preventivas, e a Medida Provisória em questão seria o seu “reflexo no espelho”, isto é, uma cópia (note-se que o Projeto é anterior à Carta Constitucional promulgada em 05 de outubro de 1988). Defensores da validade e da necessidade da prisão temporária asseveram que tais medidas vigoram com perfeição em outros países, contudo, esquecem-se das diferenças existentes entre o Brasil e tais países (modelo social, sistema jurídico, bem como as particularidades de cada nação), contudo, essa discussão não faz parte do aqui tratado. Em 11/12/89, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, protocolizou perante a Suprema Corte, a Medida Cautelar em Adin de n.º 162-1, requerendo a concessão de Medida Liminar objetivando a suspensão dos efeitos da MP originária da Lei em questão, sendo que, em 14 de dezembro daquele ano, a medida foi indeferida, tendo sido julgada prejudicada em 2 de agosto de 1993. Todavia, em novembro de 2007, a Ordem dos Advogados do Brasil entendendo a inconstitucionalidade da lei da Prisão Temporária, autorizou seu Conselho Federal para tomar as medidas competentes, qual seja propor Ação Direta de Inconstitucionalidade (CF 103, VII) perante a Corte Suprema, com a finalidade de extirpar de nosso mundo jurídico a norma objeto deste artigo, ou seja, a Lei 7.960/89. Ainda hoje é muito comum o operador do Direito, confundir e não diferenciar a vigência de uma lei com a sua validade (eficácia).Para se atestar a validade de uma lei, basta observar sua compatibilidade com o quadro normativo constitucional e com o Direito Humanitário Internacional, ao passo que para verificar sua vigência, necessário ver se a mesma não foi revogada por outra lei. Ocorre que, nem toda lei vigente em um país, possui validade jurídica (abandona-se assim, o positivismo clássico), ou seja, para que possua eficácia jurídica, insta que a mesma possua compatibilidade vertical com a Carta Magna e com o Direito Humanitário internacional tanto no aspecto formal, quanto no aspecto material. A lei em análise afronta a Constituição Federal e Tratados de Direitos Humanos no que tange aos aspectos matérias, pois, despreza Princípios, entre os quais, o da Presunção da Inocência e o do Devido Processo Legal, bem como o aspecto formal, vez que, não seguiu as regras orientadoras expressas no artigo 62 da Constituição da Republica Federativa do Brasil. (...)Vícios Formal ( de iniciativa) e Material( de objeto) da MP nº. 111/89. Inconstitucionalidade patente. Logo após a promulgação da Constituição Federal (05/10/1988) ecoou no país um “basta” advindo da sociedade, e principalmente da classe jurídica acerca das “prisões para averiguações”, surgindo posição do senhor Presidente da República à época (José Sarney) sobre a ilegalidade de tais prisões. Assim, sua Excelência enviou ao Congresso Nacional uma Medida Provisória (conforme CF 84, XXVI), que teria a finalidade de coibir odiosas prisões, bem como para subsidiar as Autoridades Policiais no esclarecimento de autoria e materialidade de crimes graves. Portanto, o mandatário máximo da nação enviou ao Congresso Nacional a Medida Provisória n.º 111 de 24 de novembro de 1989, isto é, o Poder Executivo Federal legislou em matéria penal e processual penal criando também (pasmem) uma conduta típica inserida na Lei 4.895/65, a saber, a letra i do artigo 4º, que aduz constituir delito de abuso de autoridade, “prolongar a execução de prisão temporária, de pena, ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade”! Posteriormente a aludida Medida Provisória foi aprovada pelo Parlamento que ignorou o contido no artigo 62, parágrafos 5.º e 9.º da CF, vez que desprezou os aspectos constitucionais da medida recebida, surgindo, então, a lei reguladora da Prisão Temporária, contudo, afirma-se que a medida provisória (embora possua força de lei), não é legítima espécie normativa, pois, inexiste processo legislativo para sua formação. Outrossim, ressalte-se que qualquer espécie normativa que for editada com afronta ao processo legislativo, apresentará vício de inconstitucionalidade. Portanto, essa lei é inconstitucional, vez que possui vícios insanáveis: 1.º) formal (inconstitucionalidade nomodinâmica), isto é, impedimento ao presidente legislar por meio de medida provisória sobre direito penal e processual penal; 2.º) material (inconstitucionalidade nomoestática), pois, matérias atinentes a direito penal e processual penal, não podem ser elaboradas a partir de medida provisória, e sim somente de lei, isto é, aquela originária de projeto de lei. A constatação é de fácil percepção, bastando apenas ler (e respeitar) o contido no artigo 62 da Constituição da República que assevera ser permitido ao mandatário máximo da nação editar Medidas Provisórias em matérias que exijam relevância e urgência, entretanto, a própria Carta Constitucional, em seu parágrafo primeiro, nitidamente, estabelece proibições em alguns temas, e entre esses, há a vedação imposta ao Executivo, impedindo-o de editar medidas provisórias sobre matéria de direito penal e processual penal ( CF 62, parágrafo primeiro, inciso I, letra b), ou seja, a aludida MP n.º 111, que originou a Lei 7.960/89 (Prisão Temporária) é inteiramente Inconstitucional, independentemente da aprovação feita pelo Congresso Nacional. Quer-se dizer que existem limites materiais à edição de medidas provisórias, isto é, o Presidente da República está (constitucionalmente) proibido de editar matérias que versem sobre o direito penal e processo penal, e que o legislador constituinte tornou indelegáveis essas matérias ao Poder Executivo, ou seja, somente o Legislativo federal possui competência para tratar dessas matérias. Isso significa dizer que os Delegados não deveriam representar, e o Ministério público não deveria requerer ao Poder Judiciário a decretação da Prisão Provisória contra quem quer que seja, mesmo que o investigado ou suspeito, cometesse uma série de hediondos delitos (tráfico, latrocínio, homicídios qualificados etc), e de outro vértice o Juiz, ao se deparar com uma petição nesse sentido, simplesmente, deveria rejeitá-la, alegando Inconstitucionalidade da Lei que permite a prisão temporária. Mas então, se a nossa constituição é clara ao vedar a edição de medidas provisória acerca de temas de direito penal e processual penal, qual seria o motivo (jurídico) que fazem com que nossas autoridades aceitem tamanha inconstitucionalidade? Difícil a resposta. Não bastasse os argumentos acima nominados, encontramos, enfim, a última razão para invocar a ilegitimidade da Lei 7.960/89, face outro Princípio, claramente escrito em nossa Constitucional, o do Devido Processo Legal Processual Penal, que apresenta diversas dimensões de garantia, entre as quais destacamos: a) Lex Scripta Nulla coatio sine lege O justo processo advém de lei. E esta tem que ser escrita; b) Lex Populli A norma válida para o justo processo penal advém somente de Lei, isto é, ato normativo aprovado pelo Congresso Nacional (Medida provisória não é originária do Parlamento) e esta garantia está registrada em nossa Carta Magna, artigo 5.º, LIV que aduz : “ninguém será privado da liberdade, ou de seus bens sem o devido processo lega”, sendo essa garantia reforçada pelo artigo 62, parágrafo primeiro, letra b da CR (proibição de Medida Provisória sobre matéria penal e processual penal). Quando se fala em devido processo legal, temos que dar-lhe um sentido amplo, envolvendo além dos procedimentos judiciais e inquisitoriais, o processo legislativo, pois, somente mediante lei discutida pelos representantes do povo, é que se obtém um legítimo e devido processo legal. Os Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos, face o voto do Ministro Celso de Mello no Pleno do STF, em razão do Habeas Corpus nº. 87.585 e Recurso Extraordinário nº. 466.343, possuem valor constitucional não resta dúvida. O Brasil, é signatário desses tratados (Convenção Americana de Direito Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos), assim, de acordo com o Supremo, possuem hierarquia normativa superior às leis ordinárias (ad exemplum, a lei 7.960/89 que trata da Prisão Temporária) e disso tudo, podemos (e devemos) concluir que essa Lei (advinda de uma Medida Provisória), está em confronto com o contido no artigo 7.º, n.º 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), que assinala a todas pessoas, o direito à liberdade, proibindo, que alguém seja privado de sua liberdade física, a não ser “pelas causas e condições previamente fixadas pelas condições políticas dos Estados-Partes, ou pelas leis de acordo com ela promulgada”, portanto, é fácil concluir que as condições políticas dos Estados-Partes, foram violadas, pois, a Constituição proíbe expressamente a edição de medidas provisórias sobre direito penal e processual penal, e a lei em comento, teve sua origem na dita medida provisória, e outrossim, O Pacto de San José da Costa Rica, assevera, que a restrição da liberdade de alguém, origina-se somente por meio de lei, e nunca mediante medida provisória, independentemente de ela ser aprovada pelo Congresso Nacional. Aguardamos agora o resultado da medida a ser tomada pelo Conselho Federal da OAB por meio da competente medida jurídica (ADI) que visa assegurar a eficácia e o respeito aos direitos e garantias individuais estabelecidos nos Tratados assinados e ratificados pelo Brasil, e os constantes em nossa Carta Republicana. Essas, então, são as razões em que se afirma, com convicção: A Prisão Temporária é inconstitucional.[10] (grifos nossos).

Ricardo Augusto Schmitt leciona com proficiência:

“O princípio da presunção de inocência está intrinsecamente ligado ao mérito da ação, razão pela qual não permite qualquer antecipação da responsabilidade penal do agente, a qual poderá restar caracterizada somente frente ao trânsito em julgado de uma sentença penal de natureza condenatória. Diante disso, uma possível ou suposta culpabilidade do agente não pode levá-lo ao cárcere provisório, uma vez que seu estado de inocência perdura no decorrer de todo o processo criminal, cessando tão somente a vista da existência de uma decisão condenatória de caráter definitivo, logicamente, quando preclusa a via recursal. Contudo, não restam dúvidas de que em determinadas situações – desde que necessário a própria efetividade do processo – pode ocorrer o encarceramento cautelar do agente, o qual age sobre seu status libertatis. Assim, apesar do acusado ter a seu favor o princípio da não-culpabilidade (presunção de inocência) – que se refere ao mérito da ação penal - pode ter contra si decretada uma medida cautelar de prisão, pois essa não possui qualquer relação com o mérito do caso sub judice, uma vez que se baseia em pressupostos outros que devem justificar a imperiosa necessidade em se garantir a eficácia do futuro provimento jurisdicional. Não restam dúvidas, com isso, que a prisão cautelar, por afetar a liberdade do acusado antes de uma decisão final (sentença), a qual poderá, inclusive, declarar sua inocência, reveste-se de medida de extremo rigor, somente sendo justificável quando comprovada sua absoluta indispensabilidade. Finalmente, podemos concluir que a prisão cautelar não atrita frontalmente com a presunção de inocência, uma vez que possuem naturezas distintas, o que revela a possibilidade de conviverem em perfeita harmonia no sistema jurídico, desde que a medida de cautela preserve o seu caráter excepcional e não perca a sua qualidade instrumental. (…) Embora de constitucionalidade discutida (primeiro, por vício de iniciativa (ordem formal), uma vez que matéria de processo e direito penal são de iniciativa privativa da União (art. 22, I, da CF/88) e, segundo, pois num Estado Democrático de Direito é difícil se conceber a possibilidade do Estado prender para depois investigar se o agente é realmente o autor do delito), temos a aplicação corriqueira do instituto em tela, o qual foi introduzido no direito brasileiro pela Lei nº 7.960/89, mediante conversão da Medida Provisória  nº. 111/89.”.[11]

Vejamos também os ensinamentos do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti Machado Cruz:

Em que pese o avanço da novel legislação, há imperfeições a sanar. A mais relevante delas é de cunho científico e denota, a nosso juízo, a falta de percepção quanto à mudança de paradigma decorrente do abandono do sistema ainda vigente. Com efeito, o art. 321, na redação que lhe dá o Projeto, assevera que "inexistindo os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva, o juiz poderá conceder liberdade provisória, impondo as medidas cautelares previstas no artigo 319 e observados os critérios do art. 282".  Por sua vez, o § 2º do art. 283 dispõe que "quando não couber prisão preventiva, o juiz poderá decretar outras medidas cautelares (art. 319)". Ora, as medidas alternativas à prisão preventiva não pressupõem, ou não deveriam pressupor, a inexistência de motivos ou de requisitos, como indica o texto legal, que autorizam a decretação da prisão preventiva, mas sim a existência de uma providência igualmente eficaz para o fim colimado com a medida cautelar principal, porém com menor grau de lesividade à esfera de liberdade do indivíduo. É essa, precisamente, a idéia da subsidiariedade processual penal, que permeia o princípio da proporcionalidade, em sua máxima parcial (ou subprincípio) da necessidade: o juiz somente poderá decretar a medida mais extrema – a prisão preventiva – quando não existirem outras medidas menos gravosas ao direito de liberdade do acusado por meio das quais seja possível alcançar os mesmos fins colimados pela prisão cautelar. Trata-se, como já dito no capítulo anterior, de uma escolha comparativa, entre duas ou mais medidas disponíveis – in casu, a prisão preventiva e alguma (s) das outras arroladas no art. 319 do CPP – igualmente idôneas para atingir o objetivo a que se propõe com a providência cautelar. Desse modo, é plenamente possível que estejam presentes os motivos ou requisitos que justificariam a prisão preventiva, mas, sob a influência do princípio da proporcionalidade e à luz das novas opções fornecidas pelo legislador, deverá valer-se o juiz de uma ou mais das medidas indicadas no art. 319 do CPP, desde que considere sua opção suficiente e idônea para obter o mesmo resultado – a proteção do bem sob ameaça – de forma menos gravosa. Para tornar essa idéia mais clara, consideremos o exemplo de alguém que, respondendo a um processo por crime de corrupção ativa, sinalize, em virtude de atos concretos como a venda de seus bens, a lavratura de procuração com amplos poderes a terceira pessoa, além da compra de passagem para o exterior, a intenção de fugir do país. Inegavelmente estão presentes os requisitos para a decretação da prisão preventiva, tendo em vista que há prova da existência de um crime punido com pena de reclusão, indícios suficientes de autoria e claros indicadores de que a aplicação da lei penal está ameaçada de não se efetivar com a iminente fuga do acusado. Porém, para evitar a efetiva lesão ao direito ameaçado (o ius puniendi do Estado, que se concretiza, em última análise, com a imposição e o cumprimento da sanção penal decorrente da sentença condenatória irrecorrível), o juiz poderá – em avaliação criteriosa – entender suficiente condicionar a manutenção da liberdade do acusado às obrigações constantes dos incisos IV e V do art. 319 do CPP, ou seja, proibição de ausentar-se do país (inc. IV) e recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga (inc. V), determinando, outrossim, a fiscalização das fronteiras do país e a entrega, pelo acusado, de seu passaporte (art. 320). Essa opção judicial produziria o mesmo resultado – evitar a fuga do réu e o conseqüente prejuízo à aplicação da lei penal ("obstáculos ...à execução da sentença", na linguagem da nova redação proposta para o art. 312 do CPP) – sem a necessidade de suprimir, de modo absoluto, a liberdade do acusado. Além do menor custo pessoal e familiar da medida, pois o não recolhimento à prisão do réu poupa-o, bem assim seus entes mais próximos, de um sofrimento desnecessário, o Estado também se beneficia com essa escolha, porquanto poupa vultosos recursos, humanos e materiais, indispensáveis à manutenção de alguém sob custódia, a par de diminuir os riscos e malefícios inerentes a qualquer encarceramento (lesões corporais, tortura, ou mesmo homicídio, eventualmente cometidos por outros presos ou por carcereiros, transmissão de doenças infecto-contagiosas, criminalização do preso, estigmatização etc). No exemplo citado, o acusado estará sob regime de liberdade provisória (embora o Projeto não se valha de tal expressão no art. 319), mediante termo de comparecimento periódico em juízo, tal qual similarmente se dá hoje na hipótese prevista no art. 310 do CPP. Assim, a liberdade provisória – que poderá converter-se em prisão preventiva, como prevê a nova redação dada ao art. 312, parágrafo único, pelo Projeto, em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas ao réu – expele um aroma de nítida função cautelar, cumprindo os mesmos propósitos da prisão preventiva, porém com menor gravidade para o imputado, na medida em que lhe garante maior respeito à sua liberdade natural (VILAR, 1988, p.179). Semelhante ilação nos leva a criticar outro aspecto do texto do Projeto, tanto do art. 283, § 2º, quanto do art. 321: a perda de referência cautelar das medidas diversas da prisão, ao condicionar-se sua decretação à ausência de requisitos para a prisão preventiva. Expliquemo-nos. O art. 282 do Projeto deixa claro que "as medidas cautelares previstas neste Título [o que inclui, desse modo, tanto a prisão, quanto as outras medidas cautelares e a liberdade provisória] serão aplicadas com base nos seguintes critérios", os quais são indicados em dois incisos, o primeiro muito claro ao mencionar a "necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de novas infrações penais". Pois bem, esse critério é, conforme melhor detalhado no art. 312, o que justifica a prisão preventiva, ou seja, a necessidade de sacrificar a liberdade do investigado ou acusado, por representar um perigo (periculum libertatis) à investigação ou instrução do processo (cautela instrumental), à aplicação da lei penal (cautela final) ou à ordem pública ou econômica (medida de defesa social, como já dizia Faustin Hélie na metade do Século XIX). Sendo assim, tanto a prisão preventiva (stricto sensu) quanto as demais medidas cautelares introduzidas pelo Projeto no ordenamento processual penal destinam-se a proteger os meios (a atividade probatória) e os fins do processo penal (a realização da justiça, com a concreta imposição da pena), ou, ainda, a própria comunidade social, ameaçada pela perspectiva de novas infrações penais.  O que varia, portanto, não é a justificativa ou a causa final da cautela, mas o grau de lesividade e a dose de sacrifício decorrente de cada uma delas. Decretar a prisão preventiva ou determinar o recolhimento domiciliar noturno tem, na sua ratio essendi, igual preocupação em proteger o processo, a jurisdição ou a sociedade, variando apenas a quantidade – se é que assim podemos nos referir – da liberdade retirada do âmbito de disponibilidade do investigado ou acusado. (...) Se não cabe a preventiva, não deverá caber também qualquer outra medida restritiva da liberdade do acusado, igualmente direcionada a proteger aquela fonte de prova.[12]

A propósito, colacionamos a este parecer cópia de decisão do Supremo Tribunal Federal, da lavra do Ministro Gilmar Mendes, nos autos da Med. Caut. em Habeas Corpus nº. 95.009-4.

Ante o exposto, somos pela concessão da ordem de Habeas Corpus requerida, tão somente por entendermos inconstitucional a prisão temporária, conforme explicitado acima.

Salvador, 13 de julho de 2015.

RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA

Procurador de Justiça


Notas:

[1] Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jul-02/entrevista-luis-roberto-barroso-ministro-stf-parte2.

[2] MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal, 2ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2012, p. 347.

[3] Direito Processual Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, 7ª. ed., pp. 643/644.

[4] Ob. cit., p. 524.

[5] Crimes Hediondos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 4ª. ed., 2000, p. 357.

[6] Neste mesmo sentido Pierpaolo Cruz Bottini, “Medidas Cautelares – Projeto de Lei 111/2008”, in As Reformas no Processo Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 458.

[7] Pierpaolo Bottini, ob. cit., p. 457.

[8] http://justificando.com/2014/07/15/logica-cinto-de-castidade-na-prisao-temporaria/.

[9] Presunção de inocência e prisão provisória. Texto utilizado em aula inaugural proferida no Curso de Especialização em Direito Penal e Processo Penal da Universidade de Salvador-UNIFACS – fevereiro 2007.

[10]Prisão Temporária: “Primeiro a polícia prende; depois ela investiga”. Disponibilizado em: www.nqm.com.br/imprimir.php?visualizar=10122935. Acesso em 11 de julho de 2015.

[11] Prisões provisórias: espécies, natureza e alcance. Exposição do tema baseada na obra CUNHA, Rogério Sanches. Leituras Complementares de Execução Penal. Salvador: Editora JusPodivm, 2006.

[12] A Subsidiariedade Processual Penal e Alternativas à Prisão Cautelar. Prisão Cautelar: dramas, princípios e alternativas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.


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Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.  


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