Questões preocupantes em relação ao grupo de trabalho sobre crianças e jovens indígenas em situação de vulnerabilidade do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

06/04/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

No dia 22 de março de 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) publicou a Portaria n. 869, instituindo o grupo de trabalho destinado a atuação com foco nas crianças e jovens indígenas “em situação de vulnerabilidade”, com duração até o dia 1º de abril de 2022, segundo consta no artigo 7º da referida Portaria.

As aspas colocadas acima são de minha autoria, pois desde o título do grupo de trabalho já há uma série de questões que nos colocam preocupações sobre o perfil e a finalidade deste espaço colegiado. Antes de tudo, por que referenciar um trabalho com crianças e jovens membros de povos indígenas que tenha por foco apenas as situações de vulnerabilidade?

Na história dos direitos de crianças e adolescentes, sabemos que as iniciativas de promover destaques normativos e institucionais indicados por termos como “vulnerabilidade”, “situação de risco (ou situação irregular)”, “menores carentes” e “de conduta antissocial”, tem a base linguístico-ideológica do menorismo[1] e o objetivo, explícito ou implícito, de garantir a legitimação político-normativa de uma atuação repressivo-assistencialista do Estado e de setores da sociedade para com determinados perfis identitários de crianças e adolescentes e de seus grupos sociais e familiares. A questão se agrava ainda mais quando esta designação é atribuída ao contexto dos povos indígenas. Isto não somente por reforçar a possibilidade de uma atuação socioestatal com a perspectiva traçada acima, mas que também se utilize e reforce a tutela, a discriminação e a imposição de valores para com os povos indígenas e suas crianças e jovens[2].

Assim, e desde a denominação do grupo de trabalho, tem-se uma questão preocupante – e não resolvida ao longo do texto da Portaria – que é o de se saber do que efetivamente se tratam estas situações de vulnerabilidade? Com quais delimitações conceituais? E, mais do que isso, com qual participação dos sujeitos interessados, isto é, dos povos indígenas e suas crianças e adolescentes, na construção desta definição? Por fim, por que não trabalhar apenas com o termo “crianças e jovens indígenas”, sem outras caracterizações complementares, para não reificar um imaginário negativista e discriminatório contra os povos indígenas?

No entanto, o fato deste grupo de trabalho, com esta designação, ser instituído no MMFDH torna a questão ainda mais preocupante. É de conhecimento público a atuação da ministra Damares Alves na “causa” do suposto “infanticídio” em povos indígenas. Digo “causa” porque, bem mais do que um problema social com comprovado impacto relevante nos povos indígenas,[3] trata-se de situações pontuais manipuladas por organizações religiosas para se converterem, aos olhos da opinião pública, em cruzadas para a “salvação” das crianças indígenas dos “males culturais” que padecem seus povos. E, com isso, também alimentar uma rede de organizações “sem fins lucrativos” com recursos de doações e apoios governamentais para a realização de adoções das crianças por famílias não-indígenas e até estrangeiras, muitas delas ilegais e fruto do tráfico de pessoas, como apontam investigações jurídico-policiais[4].

A atuação da, hoje, Ministra Damares, anteriormente, também, membra de uma dessas organizações religiosas, é de larga data nesta “causa”. E se converteu, ao assumir o MMFDH, numa “causa institucional” que está progressivamente sendo colocada em prática. Por isso, é inegável que sobre este grupo de trabalho paira esta desconfiança, é dizer, de que seja mais um braço institucional para dar legitimidade à “causa” do enfrentamento das supostas práticas de infanticídio em povos indígenas.

Mas, avancemos na leitura e na crítica à Portaria. Uma segunda questão que salta aos olhos na leitura do documento é a composição deste grupo de trabalho, definida no artigo 3º, em que constam representações dos seguintes órgãos: Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (que atua como coordenação); Secretaria Nacional de Juventude; Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres; Secretaria Nacional da Família; Secretaria Nacional de Proteção Global; Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; e, Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Não apenas órgãos unicamente do executivo, mas também, e somente, de um único ministério, o próprio MMFDH.

Deixa-se, assim, de buscar o apoio e a abertura de diálogo democrático com órgãos do executivo e de outras instâncias do Estado que são referenciais nas discussões sobre povos indígenas, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Ministério Público Federal (MPF), a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). E mais, e como já é uma regra estabelecida pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, desde a edição do Decreto n. 9.759/2019 (que extinguiu vários órgãos colegiados em nível federal), da exclusão da participação da sociedade civil[5] e, sobretudo, das organizações e de representantes de povos indígenas, em especial a Comissão Nacional de Juventude Indígena e a Rede de Juventude Indígena, instâncias organizativas de jovens indígenas que atuam em âmbito nacional e internacional. Assim, violando preceitos contidos no artigo 6º da Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho, vigente no Brasil via Decreto n. 5.051/2004, em relação ao direito à participação e à consulta dos povos indígenas.

Afinal, qual o intuito de construir um grupo de trabalho em que, basicamente, participam representantes de secretarias internas do MMFDH? E qual a possibilidade de amplo diálogo democrático com um perfil tão restrito de representantes governamentais e de ausência da participação do grupo interessado, isto é, dos povos indígenas?

É certo que a Portaria, no parágrafo 3º, do artigo 3º, indica a possibilidade de assegurar a participar de “convidados especiais”, mas estes não possuem direito à voto e poderão, no máximo, “emitir pareceres para apreciação do colegiado”, como indicado no documento normativo. Em suma, está bem nítido que será um processo interno e fechado às vozes dissonantes da sociedade e do Estado.

É preciso lembrar que, em 2017, o então Ministério dos Direitos Humanos, por meio da Secretaria Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Sndca), instituiu um grupo de trabalho informal visando o atendimento de crianças e jovens indígenas, com a coordenação da Sndca e da Funai, e com a participação de outros órgãos, como o então Ministério do Desenvolvimento Social e o Ministério da Educação. Esta articulação resultou na organização do Seminário Atendimento a Crianças e Jovens Indígenas e Integração da Rede do Sistema de Garantia de Direitos, ocorrido entre os dias 29 e 31 de agosto de 2017, em Brasília.

O evento contou com a participação de representantes de organizações indígenas e organizações de jovens indígenas, da Associação Brasileira de Antropologia, do Conanda, do MPF, além de várias instâncias do poder executivo federal. Diversas propostas foram elaboradas nos grupos de discussão que compunham a programação do evento e, entre os encaminhamentos finais, definiu-se a “[a]rticulação conjunta da SNDCA e FUNAI para formalizar um grupo de trabalho para a construção das diretrizes de atendimento.”[6] Infelizmente, não houve continuidade do grupo de trabalho, mas proponho que as recomendações contidas no relatório do evento sejam apreciadas pelo novo grupo de trabalho, além de conduzirem as atividades com um viés democrático similar ou mais amplo ao ocorrido no referido seminário.

 Por último, está a preocupação com as competências e finalidades do grupo de trabalho instituído pela Portaria, e presente no artigo 2º dela, transcrito abaixo:

“Art. 2º O Grupo de Trabalho sobre Crianças e Jovens Indígenas em Situação de Vulnerabilidade é órgão de assessoramento, consultivo e de estudo, destinado a:

I - fomentar discussões científicas, educativas, culturais e jurídicas sobre o tema das crianças e jovens indígenas em situação de vulnerabilidade;

II - realizar estudos sobre as crianças e jovens indígenas em situação de vulnerabilidade para subsidiar políticas voltadas ao tema em questão;

III - compilar as normas nacionais, estrangeiras e internacionais aplicáveis ao tema, bem como projetos de lei em andamento;

IV - fazer o levantamento de projetos, programas e políticas voltadas ao tema, em implementação no Brasil ou no exterior; e

V - formular propostas sobre:

a) ações, estratégias e políticas para o enfrentamento de todas as situações de vulnerabilidade a que as crianças e jovens indígenas estão expostos; e

b) parcerias com outros órgãos e entidades, públicas e privadas, inclusive organizações internacionais, a fim de envidar esforços para combater toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão praticadas contra crianças e jovens indígenas.”[7]

Os primeiros quatro incisos delimitam, basicamente, competências e finalidades centradas em atividades de pesquisa sobre as “situações de vulnerabilidade” em si e as normativas, projetos, programas e políticas com foco nas crianças e jovens indígenas. As proposições são interessante e seriam bem aceitas, se, e novamente, não se tratasse de um ministério com uma “causa institucional” definida de “salvação” das crianças indígenas e dentro de um governo federal totalmente avesso à participação social. 

Assim, preocupa-nos, aqui, dois pontos. O primeiro, presente no inciso III, em que se destaca a compilação de “projetos de lei em andamento”, o que pode ser utilizado com algum foco estratégico para impulsionar a tramitação do projeto de lei n. 119/2015 (anteriormente, projeto de lei n. 1.057/2007), que busca criminalizar os povos indígenas que supostamente cometem práticas de infanticídio e outras “práticas tradicionais nocivas”. A última movimentação interna deste projeto de lei é de 04 de fevereiro de 2021, tratando-se de um requerimento do senador Telmário Mota (PROS/RR) para que haja tramitação conjunta do projeto de lei n. 119/2015 e do projeto de lei n. 169/2019, este último objetiva normatizar o Estado dos Povos Indígenas, em substituição ao Estatuto do Índio (Lei n. 6.001/1973). Ambos, no entanto, carecem do mesmo vício de origem e de trajetória: nunca foram adequadamente debatidos com as organizações e povos indígenas, os quais, em nenhum momento, foram consultados a respeito de “se” e “como” querem que o Congresso Nacional legisle sobre estes assuntos que os afetam diretamente.

O segundo aspecto de preocupação pode ser sintetizado em termos de ética e transparência das pesquisas que serão feitas pelo grupo de trabalho. Aqui, cabem algumas perguntas: quem conduzirá tais levantamentos, estudos, debates e compilações? Com qual base metodológica e transparência pública dos resultados? Oportunizando que tipo de interação com os povos indígenas e suas crianças e jovens? E a partir de quais bases de dados para elucidar as “situações de vulnerabilidade”? Basicamente, perguntas que objetivam compreender melhor o rigor científico da pesquisa e a transparência dos dados. 

E tudo isso desagua no inciso V, alíneas “a” e “b”, do artigo 2º, em que se assegura a competência e a finalidade do grupo de trabalho de formular recomendações com um amplo leque de possibilidades para o “enfrentamento de todas as situações de vulnerabilidade” (alínea “a”) que acometem as crianças e jovens indígenas. A ênfase a expressão “todas” coloca um campo aberto de significações e intervenções em tudo o que possa ser englobado, pelo grupo de trabalho, como “situação de vulnerabilidade”, e que possa fundamentar a proposição de diversas medidas interventivas. E, mais do que isso, coloca, também, um campo aberto e, por isso mesmo, duplamente arriscado, de que não apenas se esteja a possibilitar a abertura de uma “caixa de pandora” do que a ministra Damares e seus subordinados queiram classificar como “situação de vulnerabilidade”, mas que isto ganhe o apoio e seja uma forma de legitimação de parcerias a serem desenvolvidas com “outros órgãos e entidades, públicas e privadas” (alínea “b”), com a finalidade de “envidar esforços para combater toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão praticada contra crianças e jovens indígenas”, prossegue o texto normativo na alínea “b”.

É aqui que encontramos, finalmente, uma certa conceituação do que se entende por “situação de vulnerabilidade” de crianças e jovens indígenas, com o uso de seis termos (negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão) e a ênfase de que se buscará combatê-las, num sentido linguístico que remete à guerra ou as cruzadas do período da inquisição da Igreja Católica na Europa. Combater também pode ser uma palavra que englobe, ainda que omita, outros sentidos do que se pretende executar com as parcerias a serem propostas, e cujo resultado final pode ser mais criminalização, mais imposição de valores e mais autoritarismo público/privado contra os direitos indígenas, os povos indígenas e suas crianças e adolescentes. 

Por outro lado, ficam aqui alguns questionamentos: será que este grupo de trabalho vai propor medidas para combater a negligência da atuação do governo federal no enfrentamento da Covid-19 no contexto dos povos indígenas? Ou será que também procurará desenvolver recomendações sobre a crueldade que é muitos povos indígenas não terem ainda seus territórios demarcados e titulados, gerando inúmeros problemas sociais para com as crianças e jovens indígenas? Estas são sugestões que procuram direcionar o olhar do grupo de trabalho para as verdadeiras causas das situações de vulnerabilidade que afetam os povos indígenas e suas crianças e jovens, e que se resolveriam se lhes fossem assegurados a seguridade territorial, o adequado acesso às políticas públicas com respeito às suas diferenças culturais e a valorização de suas participações, conhecimentos e modos de vida, incluindo seus modos de cuidar, socializar, educar e enfrentar as vulnerabilidades que afetam suas crianças e jovens.

 

Notas e Referências

[1] Para uma boa compreensão do menorismo, consultar o artigo do professor Humberto Miranda, com acesso pelo link: https://emporiododireito.com.br/leitura/o-menorismo-nosso-de-cada-dia#:~:text=O%20menorismo%20nega%20as%20diferentes,sociodiversidade%20e%20as%20culturas%20infantis.&text=%C3%89%20preciso%20se%20reinventar%20enquanto,suas%20diferentes%20inf%C3%A2ncias%20e%20adolesc%C3%AAncias 

[2] Abordo outras questões referentes a isso, dentro de uma análise sobre o “bom atendimento” às crianças indígenas, em texto acessível pelo link: http://www.justificando.com/2018/11/07/reflexoes-sobre-as-consequencias-etnicas-dos-discursos-protetivos/

[3] Como bem aponta Marianna Hollanda, se a questão é identificar os principais fatores da mortalidade infantil indígena, então o olhar deve se descolar das supostas práticas de infanticídio para a identificação de outros elementos e outros responsáveis: “[a] mortalidade infantil entre os povos indígenas é quatro vezes maior do que a média nacional. A quantidade de mortes de crianças indígenas por desassistência subiu 513% nos últimos três anos. Os dados parciais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) de 2015 revelaram a morte de 599 crianças menores de 5 anos. As principais causas são: desnutrição, diarreia, viroses e infecções respiratórias, falta de saneamento básico além de um quadro preocupante de desassistência à saúde. Ora, sabemos que pneumonia, diarreia e gastroenterite são doenças facilmente tratáveis desde que estas crianças tenham acesso às políticas de saúde. A região Norte do país concentra o maior número de óbitos.” Cf. Hollanda, Marianna. O falso dilema do “infanticídio indígena: por que o PL 119/2015 não defende a vida de crianças, mulheres e idosos indígenas. Em: Racismo Ambiental, 29 jan. 2017. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/2017/01/29/o-falso-dilema-do-infanticidio-indigena-por-que-o-pl-1192015-nao-defende-a-vida-de-criancas-mulheres-e-idosos-indigenas/

[4] Sobre o teor destas investigações, consultar: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/damares-alves-e-fundadora-de-ong-acusada-de-trafico-de-criancas/ e https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/ong-de-ministra-e-acusada-de-incitar-odio-a-indigenas-e-tirar-crianca-de-mae.shtml

[5] Em outro texto analiso detidamente os impactos deste decreto para a participação social nos conselhos de políticas públicas e as ameaças, agora bem reais, à extinção de muitos deles. Consultar: https://www.justificando.com/2019/04/16/bolsonaro-propoe-fim-de-toda-estrutura-de-participacao-social-na-gestao-estatal-diz-especialista/  

[6] Cf. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Relatório final do Seminário Atendimento a Crianças e Jovens Indígenas e Integração da Rede do Sistema de Garantia de Direitos. Brasília: Sndca/MDH, 2018, p. 49. 

[7] Cf. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Portaria n. 869, de 22 de março de 2021. Brasília: MMFDH, 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-869-de-22-de-marco-de-2021-310002123

 

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