Presunção de inocência em tempos de furor puniendi à flor da pele (STF, HC nº. 126292)

19/12/2015

 Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa – 19/12/2015

A Constituição da República declara a presunção de inocência ou culpabilidade – como queriam – garantindo-se os recursos como direitos inerentes, dentre eles aos Tribunais Superiores (STJ e STF). Parcela do Ministério Público procura modificar o tratamento recursal, como já existe em alguns países, para transformar os recursos especiais e extraordinários em ações, tendo-se como marco inicial do cumprimento da pena, então, a decisão do Tribunal recursal ordinário (TJs, TRFs, Turmas Recursais, etc.). A despeito da ausência de previsão legal, contudo, alguns Tribunais já estão de lege ferenda aplicando esta flagrante inconstitucionalidade.

Talvez por isso, na última sessão do dia 15 de dezembro, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, por sugestão do relator, Ministro Teori Zavascki, decidiu submeter ao Plenário da Corte o julgamento do Habeas Corpus nº. 126292, em que se discute a legitimidade de ato do Tribunal de Justiça de São Paulo que, ao negar provimento ao recurso exclusivo da defesa, determinou o início da execução da pena.

Em fevereiro deste ano, o Ministro Teori Zavascki já havia deferido liminar para suspender a prisão preventiva decretada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Naquela decisão, o relator destacou que, conforme decidiu o Plenário do Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus nº.  84078, de relatoria do Ministro Eros Grau (aposentado), a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar, ou seja, “é imperiosa a indicação concreta e objetiva de que os pressupostos descritos no artigo 312 do Código de Processo Penal incidem na espécie”. E, no caso, conforme explicou o Ministro, o fundamento adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo diz respeito a elementos da execução da pena, e não com aspecto cautelar inerente à prisão preventiva.

Perguntamos: Execução provisória da pena pode? E se o acusado vier a ser absolvido no Superior Tribunal de Justiça ou no Supremo Tribunal Federal? Se, por exemplo, no Recurso Especial ou no Recurso Extraordinário interposto contra o acórdão condenatório for reconhecida uma nulidade e, posteriormente, vier a ser prolatada no Juízo a quo uma sentença extintiva da punibilidade pela prescrição? Quem irá remediar o "mal" causado pela prisão (verdadeira pena antecipada) já cumprida? Podemos apequenar a dimensão da presunção de inocência/culpabilidade?

Não são raros os casos de reformas de decisões penais pelo STJ e STF. Muito pelo contrário, a mentalidade inquisitória e truculenta de diversos órgãos julgadores é o dia-a-dia tanto do STJ como do STF. Basta ver a quantidade relevante de recursos providos, de ordens de habeas corpus concedidas, mesmo com o filtro ad-hoc inventando pelos Órgãos de cúpula.

É preciso que se pense seriamente antes que se decida de forma açodada. Lembre-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) impõe, no art. art. 8º., II, “h”, que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”. A diretriz não é invenção nossa, mas do processo civilizatório.

Esta norma de Direito Penal Internacional consagra o Princípio do Juiz Natural e sujeita-se ao Controle Jurisdicional de Convencionalidade e não é crível (ou é?) que o Supremo Tribunal Federal possa ir de encontro ao entendimento da Corte Interamericana, como já deixou dito Nereu Giacomolli[1]. Neste sentido, encontramos dois importantes precedentes da Corte, a saber:[2]

1) Caso Herrara Ulloa versus Costa Rica (2004):

"Em 12 de novembro de 1999, o Tribunal Penal do Primeiro Circuito Judicial de São José (Costa Rica) condenou o jornalista Mauricio Herrera Ulloa pelo crime de difamação, em razão de artigos publicados no periódico “La Nación”, os quais teriam ofendido a honra do diplomata Félix Prezedborski, que era representante daquele país na Organização de Energia Atômica da Áustria. Os artigos supostamente ofensivos de Ulloa foram escritos com base em notícias divulgadas na Bélgica acerca de escândalo, envolvendo Prezedborski. Contudo, a justiça da Costa Rica ordenou Ulloa ao pagamento de indenização. Como efeito secundário, o nome do jornalista foi lançado no registro judicial de delinqüentes.  O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que, por sua vez, encaminhou demanda à Corte em janeiro de 2003, alegando que o Estado da Costa Rica, por meio da referida decisão judicial, violou o artigo 13 do Pacto de São José da Costa Rica, o qual prevê o direito à liberdade de pensamento e expressão, bem como o artigo 8º, que trata das garantias judiciais.  Ao julgar a demanda em 2004, a Corte assentou que, de fato, a Costa Rica violou a liberdade e pensamento e expressão, a qual representa o direito de expressar o próprio pensamento e a liberdade de buscar, receber e difundir o pensamento, sobretudo, envolvendo fatos relacionados a funcionário no exercício da função pública. Ademais, entendeu-se que, como o julgamento fora realizado em instância única, violou-se o duplo grau de jurisdição. Nesse ponto, entendeu-se que é direito de todo condenado recorrer a um tribunal superior formado por juízes imparciais, em que seja possível a ampla revisão dos fundamentos fáticos e jurídicos que embasam a condenação.  Ao final, a sentença da Corte impôs as seguintes disposições contra a Costa Rica: a) tornar sem efeito a sentença prolatada em 12 de novembro de 1999; b) adequar o ordenamento interno ao disposto no artigo 8.2.h da Convenção Americana (duplo grau de jurisdição); c) Pagar a Mauricio Herrera Ulloa, a título de dano moral, US$ 20.000,00 (vinte mil dólares dos Estados Unidos de América)."

2) Caso Mohamed versus Argentina (2012):

"Em razão de atropelamento ocorrido em março de 1992, a promotoria argentina (Fiscal Nacional de Primeira Instancia) ofereceu denúncia em face do motorista profissional Oscar Alberto Mohamed, dando-o como incurso nas penas do crime de homicídio culposo. Ao final, o juízo de primeiro grau, em 30 de agosto de 1994, absolveu o réu. Ocorre que o caso foi levado a segunda instância (Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional), a qual decidiu reformar a sentença, condenando o réu. Em face dessa decisão somente seria possível um recurso de natureza extraordinária (recurso extraodinario federal), cuja natureza não permite que as partes suscitem ao tribunal superior a nova valoração das provas e das questões de fato. O réu ainda recorreu extraordinariamente; porém, o recurso foi considerado inadmissível. O caso foi encaminhado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual, em 13 de abril de 2011, demandou a República Argentina por violação ao artigo 8.2.h do Pacto de São José da Costa Rica. Aduziu-se que o direito processo penal argentino não permitiu que a condenação em segundo grau de jurisdição fosse revista, de forma ampla e aprofundada, pelo tribunal superior. Ao final, o argumento de violação ao artigo 8.2.h foi integralmente acolhido.  Entendeu-se que o art. 8.2.h refere-se a um recurso ordinário acessível e eficaz, que deve ser garantido antes que a sentença penal condenatória transite em julgado. Impõe-se à República Argentina a obrigação de adotar as medidas necessárias para garantir a Oscar Alberto Mohamed o direito de recorrer da condenação emitida pela Sala Primera de la Cámara Nacional de Apelaciones en lo Criminal y Correccional de 22 de fevereiro de 1995, em conformidade com os parâmetros convencionais do Articulo 8.2.h da Convenção Americana."

A propósito deste caso, "la Corte Interamericana de Derechos Humanos emitió una Resolución el 13 de noviembre de 2015 en la cual decidió dar por concluido y archivar el Caso Mohamed en contra de la República Argentina. Mediante dicha Resolución, la Corte resolvió que Argentina dio  cumplimiento a las medidas de reparación ordenadas en la Sentencia de  excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas emitida el 23 de noviembre de 2012 (San José, Costa Rica, 4 de diciembre de 2015)."[3]

Lembremos que havia uma antiga regra imposta pelo art. 594 do Código de Processo Penal, segundo a qual o réu não poderia apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se fosse primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime que se livre solto. Assim, em relação ao condenado que não fosse primário e não tivesse bons antecedentes, dois ônus a ele se impunham: a prisão automática decorrente da sentença condenatória (salvo se se livrar solto ou prestar fiança, sendo esta cabível) e a impossibilidade de recorrer se não for recolhido à prisão.

Ora, se o art. 5º., LVII, da Constituição estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, era de todo inadmissível que alguém fosse preso antes de definitivamente julgado, salvo a hipótese desta prisão provisória se revestir de caráter cautelar, independentemente de primariedade e de bons antecedentes. Soava, portanto, estranho alguém ser presumivelmente considerado não culpado (pois ainda não condenado definitivamente) e, ao mesmo tempo, ser obrigado a se recolher à prisão, mesmo não representando a sua liberdade nenhum risco seja para a sociedade, seja para o processo, seja para a aplicação da lei penal (art. 595, também revogado).

Assim, uma prisão provisória, anterior a uma decisão transitada em julgado, só se revestirá de legitimidade caso seja devidamente fundamentada (art. 5º., LXI, CF/88) e reste demonstrada a sua necessidade. Neste sentido, o art. 387, parágrafo único, do Código de Processo Penal.

Se temos a garantia constitucional da presunção de inocência, é evidente que não pode ser efeito de uma sentença condenatória recorrível, pura e simplesmente, um decreto prisional, sem que se perquira quanto à necessidade do encarceramento provisório.

A prisão somente será uma decorrência de uma sentença condenatória recorrível sempre que for cabível a prisão cautelar, medida excepcional. A necessidade é o fator determinante para alguém aguardar preso o julgamento final do seu processo, já que a Constituição garante que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”

O mesmo se diga quanto ao art. 27, § 2º. da Lei nº. 8.038/90, dando efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário. Neste mesmo sentido, Paganella Boschi, para quem este parágrafo “endereça-se unicamente aos processos cíveis, porque nestes a execução provisória da sentença, mediante caução pelo autor, é perfeitamente admissível. Jamais as sentenças proferidas nos processos criminais, por implicar ofensa aberta, direta e frontal à garantia da presunção de inocência, antes citada.”[4]

Esperemos a decisão do Pleno da Suprema Corte e, mais do que isso, esperemos que prevaleça a "força normativa da Constituição"[5] e que não se esqueça das lições de Goldschmidt, cada vez mais importantes e atuais: "los princípios de la política procesal de una nación no son otra cosa que segmentos de su política estatal en general. Se puede decir que la estructura del proceso penal de una nación no es sino el termómetro de los elementos corporativos o autoritários de su Constitución. Partiendo de esta experiencia, la ciencia procesal há desarrollado un número de princípios opuestos constitutivos del processo. La mutua lucha de los mismos, el triunfo ya del uno, ya del outro, o su fusión, caracterizán la historia del proceso. El predominio de uno u outro de estos princípios opuestos en el derecho vigente, no es tampoco más que un tránsito del Derecho del pasado al Derecho del futuro."[6]

A proposta de certa parcela do Ministério Público em subverter a lógica da presunção de inocência é um ataque à democracia, embora a multidão possa querer linchamento, há (ou deveria haver) uma função de limite da normativa constitucional e convencional. Mas, em tempos em que o furor puniendi anda à flor da pele, nunca saberemos o que pode acontecer. Aliás, é justamente porque existe STF que os pacientes de São Paulo, do Habeas Corpus nº. 126292 ainda possuem direito ao recurso. Resta saber até quando. A luta pelo devido processo legal substancial é diária e não cessa, já que os ataques autoritários estão na moda.


Notas e Referências

[1] GIACOMOLLI, Nereu Jose. O devido processo penal. São Paulo: Atlas, 2014.

[2] https://franciscofalconi.wordpress.com/2013/06/30/duplo-grau-de-jurisdicao-precedentes-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos/

[3] http://www.corteidh.or.cr/docs/comunicados/cp_47_15.pdf

[4] Revista de Estudos Criminais nº. 05, Porto Alegre: Editora NotaDez, 2002.

[5] Hesse, Konrad, A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991.

[6] Princípios Generales del Proceso, Volume II, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1961, páginas 109/110.


Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com   Facebook aqui 


Imagem Ilustrativa do Post: Liberty and Justice // Foto de: Eric Kilby… // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ekilby/19912563980/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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