Por que o ICMS está fora da aplicação do tipo previsto no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90? Por Alexandre Morais da Rosa

20/06/2015

Por Alexandre Morais da Rosa - 20/06/2015

Introdução

Recolher tributos faz parte das condições de possibilidade de implementação e manutenção do Estado. Não se está, portanto, defendendo a postura Libertária, especialmente do Tea Party, afinal se reconhece papel preponderante das Instituições na realização do Estado Democrático de Direito. Justamente por isso, o Estado não pode exigir o pagamento de dívidas de qualquer modo, principalmente mediante o aparelho Estatal penal, pois de ultima ratio e de caráter fragmentário.

Anote-se, desde já, que a conduta de fraude, ardil, manipulação, prevista no art. 1º da Lei n. 8.137/90, não será problematizada, reconhecendo-se sua compatibilidade constitucional. Também não será abordada a legitimidade da criminalização dos demais impostos, especialmente Contribuições Previdenciárias e IPI, dentre outros, uma vez que nestes casos há destacado o valor do Imposto “apropriado” pelo responsável tributário. De igual modo, não faz sentido responsabilizar criminalmente quem deixa de recolher IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano, embora também seja imposto.

Logo, antes de se buscar aplicar o art. 2º, II, da Lei n.8.137/90, no regime do ICMS, seria preciso compreender a sistemática de recolhimento do tributo para, depois, como que por espanto, concluir que o ICMS não pode ser inserido na equiparação da apropriação indébita de tributos.

O ICMS é diferenciado

O ICMS não é descontado e repassado ao Estado. Seu regime é diferenciado e os atores envolvidos com o Processo Penal, em regra, desconhecem as especificidades. Miguel Teixeira Filho explica: “Muito embora o emitente da nota fiscal de saída de mercadorias (como é o caso) seja o sujeito passivo da obrigação tributária, o fato é que o ICMS – Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços não é “descontado” nem tampouco “cobrado” por quem realiza a operação de saídas. O que gera a obrigação de se pagar o ICMS é a ocorrência do fato gerador, que se verifica na saída da mercadoria do estabelecimento. Ou seja, quando o contribuinte dá saída na mercadoria em seu estabelecimento nasce a obrigação de recolher o imposto incidente sobre a operação. É totalmente equivocado se dizer, no sentido jurídico-tributário, que o emitente da Nota Fiscal “cobra ICMS” do adquirente. Ora, na prática, é óbvio que o ICMS integra o valor cobrado, uma vez que se constitui um dos elementos do custo da mercadoria vendida.  Mas é de se observar que não só ICMS integra o custo, uma vez que este, como não poderia ser diferente, incluirá todos os demais encargos e gastos necessários à realização da operação final (venda da mercadoria), dentre os quais os insumos, a energia elétrica, os salários, as taxas, e ainda, outros tributos como o Imposto de Renda de Pessoa Jurídica, Contribuição Social sobre o Lucro,  PIS, Cofins, as Contribuições Previdenciárias, etc.  Todos estes elementos, como já se disse, na prática, também são “cobrados” do adquirente. No entanto, em se falando das exações que integram o preço (não só o ICMS como todos os demais, como apontado), não se pode dizer, que está se “cobrando tributo” do adquirente.  O que se cobra é o preço da mercadoria. E aqui é que reside o cerne da questão.  A relação que se estabelece entre quando o vendedor realiza uma saída de mercadoria com destino ao adquirente é uma operação meramente comercial e nunca de cunho jurídico tributário.” (http://www.oab-sc.org.br/artigos/omissao-no-recolhimento-do-icms-nao-configura-crime-fiscal/1551)

Diferentemente, portanto, dos demais impostos, no caso do ICMS, não há a dita apropriação, mas intrincado sistema de creditamento e apuração, com declaração da GIAs, do valor devido.  O valor a ser recolhido, assim, não é necessariamente o valor do ICMS declarado na nota fiscal. E isso faz toda a diferença, dado que não houve o ato de se apropriar.

A dívida em aberto não equivale ao tipo de apropriação

Se algum cidadão pactua com outro o pagamento de uma parcela de trato sucessivo e deixa de adimplir ao pagamento no dia pactuado, resta uma obrigação civil. Nenhum membro do Ministério Público ou mesmo Magistrado iria duvidar em dizer que isto não é crime. Os exemplos são muitos. A discussão que precisa ser posta é: só pelo exclusivo fato de figurar numa parte da relação o Estado é possível a criminalização da dívida por ICMS? A resposta de que está previsto em lei não serve, pois o legalismo fetichista já foi – ou deveria ter sido – ultrapassado há muito. Se assim fosse, não seria preciso controle de constitucionalidade (concentrado e difuso). Por isso, com o devido respeito a quem pensa diferente, sem que o acusado tenha obrado com dolo, fraude, ardil, o fato de ter declarado que devia e não ter adimplido não pode ser tido como crime. Dito diretamente: O Estado não pode criminalizar as dívidas. Mas não é só.

No fundo o Poder Judiciário funciona como um grande escritório de cobrança - arrisca-se dizer - forçada. Primeiro o acusado é chamado a pagar o débito e sempre com a – não tenho outra palavra – "ameaça" de ser processado. Depois, ainda, na hipótese de suspensão condicional do processo, deve pagar "sob pena de ser processado". Enfim, no que se chama democracia, o Estado, via Poder Judiciário, faz as vezes de um grande escritório de cobrança do poder público. E não se trata de dizer que estaria liberada a sonegação, pois este argumento é falacioso. Existem procedimentos próprios e democráticos para a cobrança do débito, vide Lei de Execução Fiscal, com diversos benefícios em favor do Estado. Mas não, se quis mais. Colocou-se a coação da prisão como "forçamento" ao pagamento. Também não é o caso de se traçar um paralelo com a figura típica do art. 1º da Lei n. 8.137/90, pois nestes casos houve ardil, fraude, situação diversa do art. 2º, inciso II, da mesma Lei.

Nesse norte, destaca-se o posicionamento de Márcia Aguiar Arend (Os Planos de Refinamento Fiscal à Luz da Teoria da Imputação Objetiva Implicam a Não Tipificação do Crime Descrito no Art. 2º, Inc. II da Lei nº 8.137/90. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, Florianópolis, v. 4, n. 9, p. 63-64, mai./ago. 2006)[1], para quem os mecanismos com que o Estado lida com seus inadimplentes – com demasiada tolerância e até estímulo ao não cumprimento das obrigações tributárias – resultam na própria não tipificação do crime, até porque a questão é lida pela ótica da imputação objetiva, em que o agravamento do risco é fomentado pelo Estado.

Ademais, desde o tempo em o subscritor fez parte da 5ª Turma Recursal de Joinville, sustentava que não poderia ocorrer criminalização, a partir das lições de Alexandre José Mendes. Assim, reitero os fundamentos expostos no Habeas Corpus n. 51, de Joinville, em que fui relator:

"HABEAS CORPUS - TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL - CRIME TRIBUTÁRIO INEXISTENTE - ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/90 - AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DE ICMS DECLARADO EM "GIA" - ATIPICIDADE. A figura do substituto tributário não tem espaço disponível para se fazer presente em questões que envolvem ICMS. Daí porque se a conduta criminalizada no inciso II do art. 2º da Lei n. 8137/90 é a apropriação indébita de tributo descontado ou cobrado de terceiro; se, na sistemática do ICMS o tributo é devido pelo comerciante e em seu nome deve ser recolhido aos cofres públicos, o que quer que o réu tenha feito na condição de representante da empresa, por certo não realizou a conduta punível prevista no inc. II do art. 2º da Lei n. 8137/90. De sorte que para que se configure o delito, mesmo considerando sua constitucionalidade, urge a plena demonstração da má-fé do agente, mediante fraude ou outro ardil, deixando de recolher o imposto devido ao Estado a título de ICMS, na condição de substituto tributário. Logo, considerando que o acusado agiu claramente, preenchendo corretamente as GIAs, englobando todas as operações efetivamente verdadeiras, não vislumbro a ocorrência do dolo necessário à configuração do crime, dado que a objetividade proclamada, não se compadece com as modernas correntes do Direito Penal."

Consta do corpo do acórdão:

"3 - O simples não recolhimento do ICMS no prazo legal, regularmente declarado na Guia Informativa, não configura o crime de apropriação indébita de tributo previsto no art. 2.º, II, da Lei n. 8.137/90, equiparado ao delito de sonegação fiscal. O que a lei ali criminaliza é a omissão do substituto tributário, presente nas hipóteses do IPI e da CPMF, por exemplo, mas inocorrente nesta modalidade de tributo estadual em que o único obrigado é o comerciante. Além do que, nos termos do art. 5º, LXVI, da Constituição da República, incabível a prisão por inadimplemento de dívida.

4 - Cabe lembrar que mesmo antes do advento da Lei n. 8.137/90, sob o império da Lei n. 4.729/65, já era cediço que o fato gerador do tributo é sempre a prática de ato lícito (CTN - art. 3º), enquanto que o fato gerador do crime é a prática de ato ilícito. Muito embora o não pagamento do tributo constitua, normalmente, ato ilícito, o não-pagamento do tributo devido, por si só, não constitui crime de sonegação fiscal. Isto porque o não-pagamento do tributo pode caracterizar mera elisão fiscal ou simples ilícito tributário, determinante, o último, de sanções materiais como a multa, a apreensão ou a perda da mercadoria ou a interdição da atividade econômica. O crime de sonegação fiscal demanda para sua caracterização a realização de conduta que vise a impedir ou a retardar o conhecimento, por parte da autoridade fazendária, da ocorrência de fato gerador da obrigação tributária principal, sua natureza ou circunstâncias, das condições pessoais do contribuinte suscetíveis de afetar a obrigação tributária principal ou o crédito tributário correspondente, conforme definido no art. 385 do Decreto Federal n. 83.263/79.

5 - Com o advento da Lei n. 8.137/90 passou-se a criminalizar a falsidade ideológica ou material e a omissão própria qualificada pelo fim específico de fraudar a fiscalização fazendária com o propósito de suprimir ou de reduzir o tributo devido. É o que se estabelece no art. 1º do aludido diploma legal, em apertada síntese. É, todavia, inegável que, no art. 2º, II, da mencionada Lei n. 8.137/90 se criminalizou a conduta de quem "...deixa de recolher no prazo legal valor de tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos...", em aparente conflito com o acima afirmado e em desrespeito à garantia constitucional. A antinomia é, no entanto apenas aparente.

6 - Com efeito, a doutrina se pronuncia no sentido de que o crime do inc. II, do art. 2º, da Lei n. 8.137/90 é uma hipótese legal de apropriação indébita especial voltada para a figura do substituto tributário. Isto parece claro quando a lei faz alusão expressa ao tributo "descontado" ou "cobrado", o que ocorre, por exemplo, com o IPI, com o IR retido na fonte e mais claramente com a CPMF. Nestas situações o contribuinte é o adquirente do produto, é o Advogado credor de honorários, é o cliente do estabelecimento bancário e dele é descontado o tributo devido, pelo industrial, pelo que paga os honorários ao Advogado, pelo estabelecimento bancário, a quem compete, no prazo fixado, recolher o tributo ou a contribuição aos cofres públicos. Dada as características do ICMS tal pode também ocorrer com esta modalidade de tributo estadual? Por ocasião do XX Simpósio Nacional Sobre Direito Tributário patrocinado pelo Centro de Extensão Universitária, sob a coordenação geral do Professor Ives Gandra da Silva Martins e do qual participaram tributaristas, financistas e penalistas, o tema debatido foi exatamente o Crime contra a Ordem Tributária. Uma das questões propostas aos participantes daquele evento foi especificamente esta: "a falta de recolhimento do ICMS oportunamente declarado nas guias adequadas e relativo à dívida por operações próprias do contribuinte, configura o crime do art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.137/90?" Findo o Simpósio, foi aprovada em plenário a proposta da comissão de redação assim redigida: "a falta de recolhimento do ICMS, oportunamente declarado nas guias adequadas e relativo à dívida por operações próprias do contribuinte, não configura o crime previsto no art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.137/90, por se tratar  (este delito)  de substituição tributária".

7 - A conclusão e bem assim as manifestações dos participantes daquele memorável evento cultural foram recolhidas na publicação "Crimes contra a Ordem Tributária" - Ed. RT e Centro de Extensão Universitária - já na 4ª edição - 2002. O Professor Roque Antônio Carrazza fez publicar em vários órgãos de divulgação cultural interessante artigo sob o título: "O ICMS e o delito capitulado no art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.137/90 - Problemas Conexos". O titular da cadeira de Direito Tributário da Faculdade de Direito da PUC-SP e ex-Promotor de Justiça de São Paulo como que fundamenta a conclusão adotada no Simpósio referido e inicia seu eloqüente trabalho indagando: "Quem não pagar o ICMS, nos prazos legais, pratica o crime de deixar de recolher tributo que já foi recebido do contribuinte para repasse aos cofres públicos, previsto no art. 2º, inc. II, da Lei n. 8.137/90?" Depois de tecer substanciosas considerações a respeito da matéria, assim responde o Carrazza a sua própria indagação: "O comerciante que não recolhe o ICMS, dentro dos prazos que a lei lhe assinala, não comete delito algum. Muito menos o capitulado no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90". De fato, ele não está deixando de recolher, no prazo legal, tributo descontado de terceiro. O tributo é devido por ele (em nome próprio). Ele está, simplesmente, incidindo em inadimplemento. Inadimplemento que poderá acarretar-lhe o dever de pagar, alem do tributo, a multa, os juros e a correção monetária. A Fazenda Pública, neste caso, poderá - e, ouso dizer, deverá executá-lo, nos termos da Lei 6830/80 (Lei das Execuções Fiscais). Mas apenas isso. Nunca esse inadimplemento poderá conduzi-lo a uma condenação criminal. Por quê? Porque sua conduta não é típica. E, sem tipicidade, não pode haver crime, nem, muito menos, condenação criminal. Em nosso ordenamento constitucional, não há crime por dívida tributária. O direito brasileiro não (deveria) pune(ir) nem as dívidas pecuniárias, nem aquilo que algumas legislações estrangeiras chama de "delitos de risco" (nos quais, mesmo não havendo tributo a pagar, qualquer ato ou omissão do contribuinte, que coloque em risco os interesses da Fazenda, configura, desde que especificado em lei, crime). Nem se diga - como querem alguns, até da esquerda punitiva, tão bem criticada por Maria Lúcia Karam - que, tendo sido o ICMS destacado na nota fiscal, o comerciante tem o dever de repassar aos cofres públicos a quantia que recebeu do consumidor final (que não é o contribuinte de iure do imposto). É que este destaque em nota fiscal do ICMS, não se reveste da menor liquidez, com relação à obrigação tributária. Apenas expressa o montante correspondente ao imposto naquela quantia cobrada, calculado "por dentro", do qual o emitente da nota ainda deve compensar os créditos que tenha contra o Fisco, para, só depois, quando for o caso, recolher o tributo. O não-recolhimento do ICMS não caracteriza, repetimos, nenhuma conduta delituosa: muito menos a definida no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90. Lembramos que o recolhimento do ICMS dá-se após o preenchimento, pelo próprio comerciante, da "GIA" ("guia de informação e apuração do ICMS"). É ele que declara o valor a ser recolhido. A "GIA" deve ser entregue em prazo certo: normalmente antes da data designada para o recolhimento do tributo. Tal recolhimento dá-se ao final de cada mês, quando o contribuinte (comerciante, industrial ou produtor) apura o imposto, levando em conta o crédito e o débito escriturados em seus livros fiscais. O valor a ser recolhido não é o que foi repassado ao preço final da mercadoria, mas, sim, o apurado, pelo contribuinte, ao final do mês, após as necessárias operações de crédito e débito. Insistimos que o montante de ICMS que integra o preço final da mercadoria, não corresponde ao valor que o contribuinte deverá recolher ao Erário. Este valor terá que ser apurado, descontando-se o que já pagou, quando da entrada da mesma mercadoria em seu estabelecimento. Esta é uma exigência impostergável do princípio da não-cumulatividade Não sustento, em absoluto, que o contribuinte do ICMS não pode cometer crimes contra a ordem tributária. Sem dúvida que os cometerá, pelo menos em tese, se ocultar da autoridade fiscal, fato relevante para o surgimento da obrigação de pagar tal tributo. Isto ocorrerá quando omitir declaração que tinha o dever legal de fazer à autoridade fiscal (v.g., produzindo o derramamento de 'notas frias"), adulterando a escrita contábil, constituindo "empresas fantasmas" etc. Nenhum crime cometerá, porém, quando apenas deixar de recolher o ICMS, após ter feito corretamente todas as anotações de estilo. Em suma, falta tipicidade na conduta do contribuinte que declara e não paga seu débito de ICMS. Aí está o fundamento da moção aprovada no Simpósito de Direito Tributário anteriormente referido.

8 - No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Seção Cível, a característica do tributo também tem sido objeto de percuciente análise por parte do Des. Roque Joaquim Volkweiss: "... não se diga, como se costuma ouvir, que a empresa ao vender suas mercadorias, estaria cobrando do adquirente respectivo o ICMS devido em cada operação.... É  (esse)  raciocínio de quem desconhece a legislação pertinente ao referido imposto, que manda pagar o tributo sobre o valor da operação, vale dizer, calculado sobre o preço cobrado, diversamente, por exemplo, do imposto sobre produtos industrializados (IPI), de competência federal, em que o tributo é cobrado em separado, além do preço, não o integrando, portanto. ...Esclareça-se ... o que a empresa cobra do adquirente das suas mercadorias é preço. Tão-somente preço e não ICMS calculado sobre aquele...".

9 - Em assim sendo, a figura do substituto tributário não tem espaço disponível para se fazer presente em questões que envolvem esta modalidade de tributo. Daí porque se a conduta criminalizada no inciso II do art. 2º da Lei n. 8.137/90 é a apropriação indébita de tributo descontado ou cobrado de terceiro; se, na sistemática do ICMS o tributo é devido pelo comerciante e em seu nome deve ser recolhido aos cofres públicos, o que quer que o réu tenha feito na condição de representante da empresa, por certo não realizou a conduta punível prevista no inc. II do art. 2º da Lei n. 8.137/90. No mesmo norte Cláudio Costa (Crimes de Sonegação Fiscal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, págs. 98-99).

10 - De sorte que para que se configure o delito, mesmo considerando sua constitucionalidade, urge a plena demonstração da má-fé do agente, mediante fraude ou outro ardil, deixando de recolher o imposto devido ao Estado a título de ICMS, na condição de substituto tributário. Logo, considerando que o acusado agiu claramente, preenchendo corretamente as GIAs, englobando todas as operações efetivamente verdadeiras, não vislumbro a ocorrência do dolo necessário à configuração do crime, dado que a objetividade proclamada, não se compadece com as modernas correntes do Direito Penal.

 11 - Com razão, pois, o Promotor de Justiça Affonso Ghizzo Neto que foi capaz de perceber a maneira pela qual o establisment constrói os criminosos do térreo (os pequenos contribuintes) e mantém a tranqüilidade dos (poucos) habitantes da cobertura social, em parecer proferido nos autos n. 084.99.000311-0, da Comarca de Descanso: "Ademais, em análise a legislação tributária brasileira, conclui-se que a ordem é direcionada à penalizar somente o pequeno contribuinte, muitas vezes honesto, mas sem qualquer respaldo político. De outro lado, os grandes sonegadores, participantes da elite dominante, sem qualquer preocupação, praticando fraudes, sonegações etc., se forem pegos, basta quitar a dívida, pois extinta estará a punibilidade. Sobre o tema, ensina como brilhantismo peculiar o professor Lenio Luiz Streck: "Se causa surpresa aos juristas mais críticos a não derrogação imediata da Súmula 554 em face da superveniência do código penal de 1984, perplexidade bem maior ainda deve causar a promulgação da Lei Federal n. 9.249, no dia 26.12.95, cujo art. 34 um representa um regalo natalino aos sonegadores de impostos. Na verdade, isto só vem demonstrar e reforçar a crise vivida pela dogmática jurídica brasileira e pelas instituições encarregadas de produzir, interpretar e aplicar as leis. temos olhos para ver (e não ver) determinado tipo de crimes cometidos por brasileiros de primeira, segunda e terceira classes. Parece que existem leis que são feitas para os que aparecem na revista caras e leis aplicáveis àqueles que aparecem no notícias populares...'.Pelo todo exposto, requeiro a não procedência da acusação."

12 - Com  efeito, os pacientes não engendraram qualquer fraude, falsificação ou omissão no sentido de suprimir ou reduzir o tributo e não há provas de que deteve, em qualquer tempo, o seu valor, na condição de depositário, não configurando ilícito penal. Por tais razões, concedo a ordem para determinar o trancamento da ação penal."

Embora não seja a tese prevalecente, cabe dizer que na comarca de Joinville o Juiz João Marcos Buch assim pensa, (Proc. nº 038.09.022887-9), bem como Antônio Zoldan da Veiga: “CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. IMPUTAÇÃO DA CONDUTA PREVISTA NO ART. 2.º, II, DA LEI N. 8.137/90. TRIBUTO (ICMS) NÃO RECOLHIDO AO ERÁRIO. DECLARAÇÃO DO VALOR DEVIDO EM GIAs. LEGISLAÇÃO QUE REVELA DUVIDOSA RELEVÂNCIA PENAL, SERVINDO NÃO À REPRESSÃO E PUNIÇÃO DE DELITOS DE ORDEM TRIBUTÁRIA, MAS À COBRANÇA COATIVA DE TRIBUTOS, TOLHENDO POR VIA REFLEXA, A PERSECUÇÃO PENAL ESTATAL, REDUZINDO O MINISTÉRIO PÚBLICO E O JUDICIÁRIO À CONDIÇÃO DE LONGA MANUS DA FAZENDA NA COBRANÇA DE TRIBUTOS.  DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE EX OFFICIO. SENTENÇA MANTIDA, COM FUNDAMENTO DIVERSO" (Apelação Criminal n. 2007.500114-9, de Joinville; Relator Designado: Juiz Antônio Zoldan da Veiga; julgado em: 19/06/2007).

Permito-me, ainda, por fim, lembrar ninguém menos do que Cesare Beccaria (Dos Delitos e das Penas. Trad. Flório de Angelis. Bauro: Edipro: 1993, p. 96-97).[2], o qual já apontava para esta tentação arrecadatória: “Houve um tempo em que todas as penas eram pecuniárias. Os crimes dos súditos eram para o príncipe uma espécie de patrimônio. Os atentados contra a segurança pública eram objeto de lucro, sobre o qual se sabia especular. O soberano e os magistrados achavam seu interesse nos delitos que deveriam prevenir. Os julgamentos não eram, então, nada menos do que um processo entre o disco que percebia o preço do crime, e o culpado que devia pagá-lo. Fazia-se disso um negócio civil, contencioso, como se se tratasse de uma disputa particular, e não do bem público. (...) O juiz, estabelecido para apurar a verdade como ânimo imparcial, não era mais do que o advogado do fisco; e aquele que se chamava de protetor e ministro das leis era apenas o exator dos dinheiros do príncipe.

Conclusão

No caso do ICMS, cujo regime de apuração é diverso dos demais tributos, diante de sua especificidade, a declaração correta do apurado em GIA e o não recolhimento no prazo legal, constitui dívida de valor, a ser cobrada na via adequada, não podendo, por via de consequência, incidir na conduta prevista no art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90. Em resumo, o tempo de cobradores do príncipe já se passou. A cobrança forçada, sob a ameaça de prisão, é um retrocesso incompatível com a Democracia, de modo que a absolvição por atipicidade da conduta é medida que se impõe. A proposta, então, é a de que se reflita sobre o caso do ICMS e a cobrança forçada.


 

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Notas e Referências:

[1] Os Planos de Refinamento Fiscal à Luz da Teoria da Imputação Objetiva Implicam a Não Tipificação do Crime Descrito no Art. 2º, Inc. II da Lei nº 8.137/90. Revista Jurídica do Ministério Público Catarinense, Florianópolis, v. 4, n. 9, p. 63-64, mai./ago. 2006.

[2] Dos Delitos e das Penas. Trad. Flório de Angelis. Bauro: Edipro: 1993, p. 96-97.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui   


Imagem ilustrativa do post: Aldacy // Sem Alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/75843896@N02/17167166578/in/dateposted/ Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode


 

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