Particular como sujeito ativo de atos de improbidade

03/09/2016

Por Emmanuel Levenhagen Pelegrini e Renan Levenhagen Pelegrini - 03/09/2016

Introdução

Qual a relação entre particulares e atos de improbidade administrativa em geral, e os atos de improbidade previstos no art. 9º da Lei 8.429/93 em especial? Particulares podem praticar tais atos, ou sua prática é privativa de agentes públicos? A Lei 8.429/93 disciplina o tema. No entanto, a previsão legal não é suficiente para se compreender o fenômeno da relação entre improbidade administrativa e a atuação de particulares. Ademais, pouco se refletiu sobre o tema. Esta reflexão - desde já se esclarece – pode apresentar mais interesse teórico do que prático, como se verá no momento oportuno. Sem embargo, não dispensa a devida reflexão. É necessário compreender esta relação. É sobre isso que versará este artigo.

Inicialmente, deve-se esclarecer que “particulares” são aquelas pessoas – naturais ou jurídicas – que não estão incluídas no conceito amplo de agentes públicos previsto no art. 2º da Lei 8.429/93.

Todos os particulares têm o direito fundamental a uma Administração Pública proba, honesta. Os agentes públicos, por sua vez, têm o dever fundamental de agirem de forma proba, honesta, na gestão do patrimônio público.

Trata-se de uma ideia evidente, um truísmo. No entanto, pouco observada na prática. A história da Administração Pública no País é marcada pela improbidade. Isto não é novidade dos últimos anos. Sempre foi assim. Esta marca apenas agora parece vir à tona. A improbidade não aumentou nos últimos anos, apenas se escancarou uma prática reiterada e inveterada da história de nosso País.

O fenômeno da improbidade é quase sempre um produto da relação sombria entre os potentados econômicos e os agentes públicos. Estes personagens mantêm, desde sempre, uma relação indissociável. Os potentados econômicos servem-se do Estado – que dizem abominar – para a satisfação de seus próprios interesses. Pregam liberalismo, mas dependem dos grandes contratos com o Poder Público. Famigeradas empreiteiras só se tornaram grandes mediante a aliança espúria com o Estado, sobretudo na época do regime empresarial-militar (1964/1985)[1]. A contradição é manifesta, mas quase nunca apontada.

É essa aliança que será analisada a seguir, embora para os fins limitados ao objeto desta reflexão.

Sujeito ativos dos atos de improbidade em geral

Embora muitas vezes sejam os grandes beneficiários, particulares não praticam atos de improbidade, vale dizer, particulares não podem ser sujeitos ativos de ato de improbidade.

Somente agentes públicos podem praticar atos de improbidade – e como praticam! -, ou seja, somente eles podem ser sujeitos ativos de tais atos.

O art. 3º da Lei 8429/92 não diz que particular pode praticar atos de improbidade. O que este dispositivo legal estabelece, embora em outras palavras, é que o particular pode ser responsabilizado pela prática – sempre por agente público - de atos de improbidade. O particular se sujeita, assim, às disposições da Lei 8429/92 quando induz a prática do ato de improbidade, para ela concorre ou dela se beneficia. É isso o que, como dito, estabelece o art. 3º: “As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”.

Os agentes públicos seriam, assim, os protagonistas. Sem estes não há filme, não há não história. Sem os agentes públicos não há ato de improbidade. Aos particulares corresponderia o papel de coadjuvantes, de atores secundários à trama.

A própria existência do ato de improbidade administrativa pressupõe a sua prática por agente público. A probidade administrativa, ou o seu verso, a improbidade, é fenômeno restrito ao âmbito da Administração Pública e de seus agentes. Aos agentes públicos impõe-se o dever fundamental de agirem de forma proba na administração do patrimônio público. Sem embargo, nada impede que particulares que tenham contribuído para ela, ou dela tenham se beneficiado, sejam responsabilizados da mesma forma que os agentes públicos, nos termos da Lei 8.429/93.

Pela leitura dos arts. 9º, 10 e 11 e respectivos incisos, da Lei 8.429/93, facilmente se observa que as condutas lá descritas somente podem ser praticadas por agentes públicos.

Particular apenas induz, concorre ou se beneficia da prática, por algum agente público, de atos de improbidade administrativa. Quem pratica é sempre agente público, na definição ampla prevista no art. 2º da Lei 8.429/93.

É justamente por isso que o Superior Tribunal de Justiça, corte competente para uniformizar a interpretação da legislação federal comum, não admite processar apenas o particular. É indispensável incluir o agente público autor do ato ímprobo no polo passivo da ação de improbidade.

Atos de improbidade administrativa que geram enriquecimento ilícito e seu grande beneficiário

Ao particular também podem ser aplicadas as sanções, previstas na Lei 8.429/92, relativas à prática de atos de improbidade administrativa previstos no art. 9º, vale dizer, aqueles que acarretam enriquecimento ilícito (ou melhor, sem causa).

O particular, embora não pratique atos de improbidade em geral, e os previstos no art. 9º em particular, também pode se enriquecer ilicitamente em razão da prática, por agente público, de ato de improbidade administrativa. Em outros termos, o particular pode ser o maior beneficiário do ato de improbidade praticado por agente público. O benefício auferido pelo particular é o seu enriquecimento ilícito. Em razão disso, ao particular podem ser aplicadas as sanções previstas no art. 12, I, da Lei 8.429/93.

No entanto, os atos de improbidade praticados por agentes públicos que propiciam o enriquecimento ilícito do particular não são aqueles previstos no art. 9º. Os atos de improbidade que geram o enriquecimento ilícito do particular são aqueles que acarretam prejuízos ao patrimônio público (art. 10).

Quando o agente público pratica ato de improbidade gerador de prejuízo ao erário, e o particular dele se beneficia, ele se enriquece. O prejuízo causado ao erário corresponde ao benefício auferido pelo particular, que nada mais é do que o seu enriquecimento sem causa.

O benefício auferido pelo particular, que significa seu enriquecimento ilícito, corresponde ao prejuízo ao patrimônio público. Enquanto todos perdem, alguns poucos ganham.

O prejuízo ao patrimônio público, decorrente da prática de atos de improbidade administrativa por agente público, está inextricavelmente ligado ao enriquecimento ilícito do particular. O prejuízo ao patrimônio do povo é o benefício do particular.

O prejuízo e o benefício (enriquecimento sem causa) são indissociáveis. Um é causa necessária do outro.

O benefício auferido pelo particular em razão da prática, sempre por agente público, de atos de improbidade - fato que o submete às sanções previstas na Lei 8429/93 (art. 3º) – consiste em seu enriquecimento ilícito (sem causa), o que o sujeita à sanções relativas aos atos de improbidade previstos no art. 9º.

Para melhor compreensão do argumento, uma profunda reflexão é necessária. Um extenuante exercício de abstração é imprescindível. Tome-se como exemplo uma hipótese – habitual em outros países - de superfaturamento de obras públicas realizadas para grandes eventos esportivos. Trata-se de ato de improbidade administrativa praticado por agentes públicos que acarretam enorme prejuízo ao patrimônio público (art. 10). O prejuízo ao patrimônio público é o benefício da empreiteira – cujos proprietários há pouco estampavam capas de revistas de negócios - é a causa de seu enriquecimento ilícito. Assim, devem os agentes públicos ser processados pela prática dos atos ímprobos previstos no art. 10, e a empreiteira - grande doadora de campanhas políticas - ser processada por ter enriquecido ilicitamente, a ela devendo ser aplicadas as sanções relativas aos atos de improbidade previstos no art. 9º. Ainda que a empreiteira não tenha praticado as condutas descritas no art. 9º, ela se submete às sanções estabelecidas para os atos de improbidade desta natureza, uma vez que se beneficiou dos atos de improbidade praticados por agentes públicos corruptos.

Conclusão

As diferenças entre impor a particulares que tenham concorrido ou se beneficiado da prática de atos de improbidade as sanções previstas nos incisos I e II do art. 12 da Lei 8.429/93 são pequenas. Isto porque as sanções previstas nestes incisos são muito semelhantes.

Semelhantes, posto que não idênticas. As sanções estabelecidas no inciso I daquele dispositivo legal são mais intensas. Refletem a maior gravidade dos atos de improbidade administrativa previstos no art. 9º.

As pequenas diferenças práticas entre condenar um particular às sanções previstas no inciso I ou no inciso II do art. 12 da Lei 8.429/92 não elidem a importância de toda a exposição realizada. É que o objetivo desta breve reflexão teórica foi outro. Foi enfatizar que os particulares são, em muitos casos, os grandes beneficiários da prática dos atos de improbidade. Muitas empresas se tornaram grandes potentados econômicos beneficiando-se de atos ímprobos (e criminosos). Muitos bilhões de reais (ou da moeda em curso à época) do povo brasileiro foram transferidos a empresas, que se tornaram grandes. Estas se beneficiaram da espúria aliança com agentes públicos. Enriqueceram-se ilicitamente, em detrimento do povo, o personagem sempre ausente.

No campo da improbidade, a experiência brasileira demonstra que os coadjuvantes muitas vezes roubam a cena.


Notas e Referências:

[1] A adequada expressão para designar o período é de Fábio Konder Comparato.


Emmanuel Levenhagen Pelegrini. . Emmanuel Levenhagen Pelegrini é Promotor de Justiça em Minas Gerais. . . .


Renan Levenhagen Pelegrini. . Renan Levenhagen Pelegrini é Analista de Promotoria do Ministério Público de São Paulo.. . .


Imagem Ilustrativa do Post: DSC01382 // Foto de: Simon Lee // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/aphexlee/1305632188

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura