O STF reconheceu que a genérica ordem pública não pode ser fundamento para prisão na Lava

17/12/2015

Por Rômulo de Andrade Moreira e Alexandre Morais da Rosa - 17/12/2015

Na sessão do último dia 15 de dezembro, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao conceder parcialmente o Habeas Corpus nº. 130636, em relação a um dos acusados na chamada Operação Lava-Jato, decidiu "que, por mais graves e reprováveis que sejam as condutas, isso por si só não justifica o decreto de prisão cautelar." No caso julgado, um dos fundamentos para a decretação da prisão preventiva tinha sido exatamente "a gravidade dos crimes imputados ao paciente e o fundado receito de reiteração delitiva." O Ministro Teori Zavascki, relator do Habeas Corpus, votou pela substituição da prisão preventiva imposta pelo juízo da 13ª. Vara Federal de Curitiba, por medidas cautelares alternativas, entre elas a prisão domiciliar com uso de tornozeleira eletrônica e a proibição de deixar o país.

Boas notícias vindas do Supremo Tribunal Federal, em tempos tão difíceis para o Processo Penal Brasileiro!

A “garantia da ordem pública”, em definitivo, não se presta, como requisito, para a decretação de uma prisão preventiva, tendo em vista ser um conceito por demais genérico e, exatamente por isso, impróprio para autorizar uma custódia provisória que somente se justifica como provimento de natureza cautelar (presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis).

Há mais de dois séculos, Beccaria já preconizava que “o réu não deve ficar encarcerado senão na medida em que se considere necessário para o impedir de escapar-se ou de esconder as provas do crime[1], o que coincide com dois outros requisitos da prisão preventiva em nosso País (conveniência da instrução criminal e asseguração da aplicação da lei penal).

Aliás, “a noção de ordem pública é extremamente vaga e ampla. Não se trata, apenas, da manutenção material da ordem na rua, mas também da manutenção de uma certa moral.[2]Nada mais incerto em Direito do que a noção de ordem pública. Ela varia no tempo e no espaço, de um para outro País e, até mesmo, em um determinado País de uma época para outra. Procurar definir o temo ordem pública é aventurar-se a pisar em areias movediças.”[3]

Decreta-se a prisão preventiva no Brasil, muitas vezes, sob o argumento de se estar resguardando a ordem pública, quando, por exemplo, quer-se evitar a prática de novos delitos pelo imputado ou aplacar o clamor público. Não raras vezes vê-se prisão preventiva decretada utilizando-se expressões como “alarma social causado pelo crime” ou para “aplacar a indignação da população”, e tantas outras frases (só) de efeito.

Ora, a gravidade do crime já está devidamente valorada na respectiva sanção penal abstratamente cominada e será, depois, mais uma vez levada em consideração, quando da aplicação da pena. Tudo em observância ao Princípio da Individualização da Pena (art. 5º., XLVI, da Constituição).

Por outro lado, a única presunção autorizada constitucionalmente é a da inocência, não sendo legítima presumir-se a culpa. Ademais, não nos consta que já se tenha no Brasil, nos gabinetes dos Magistrados, "bolas de cristal", como bem diz Aury Lopes Jr: “"Muitas vezes a prisão preventiva vem fundada na cláusula genérica 'garantia da ordem pública', mas tendo como recheio uma argumentação sobre a necessidade de segregação para o 'reestabelecimento da credibilidade das instituições'. É uma falácia. Nem as instituições são tão frágeis a ponto de se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para esse fim, em caso de eventual necessidade de proteção. (...) Noutra dimensão, é preocupante – sob o ponto de vista das conquistas democráticas obtidas – que a crença nas instituições jurídicas dependa da prisão de pessoas. Quando os poderes públicos precisam lançar mão da prisão para legitimar-se, a doença é grave, e anuncia um grave retrocesso para o estado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado. Na mais das vezes, esse discurso é sintoma de que estamos diante de um juiz 'comprometido com a verdade', ou seja, alguém que, julgando-se do bem (e não se discutem as boas intenções), emprega uma cruzada contra os hereges, abandonado o que há de mais digno da magistratura, que é o papel de garantidor dos direitos fundamentais do imputado. Como muito bem destacou o Min. Eros Grau (HC 95.009-4) 'o combate à criminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário). (...) No que tange à prisão preventiva para em nome da ordem pública sob o argumento de risco de reiteração de delitos, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros. (...) A prisão para garantia da ordem pública sob o argumento de 'perigo de reiteração' bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja do que pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o processo, está legitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisível). Além de inexistir um periculosômetro (tomando emprestada a expressão de ZAFFARONI), é um argumento inquisitório, pois irrefutável. Como provar que amanhã, se permancer solto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível como a afirmação de que amanhã eu o praticarei. Trata-se de recusar o papel de juízes videntes, pois ainda não equiparam os foros brasileiros com bolas de cristal... "[4]

A prisão preventiva não pode ser regra, nem servir para fins penais. A respeito, veja-se a preocupação dos juristas espanhóis Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Dominguez: “Tampoco puede atribuirse a la prisión provisional un fin de prevención especial: evitar la comisión de delitos por la persona a la que se priva de libertad. La propia terminología más frecuentemente empleada para expresar tal idea – probable comisión de ´otros´ o ´ulteriores´ delitos – deja entrever que esta concepción se asienta en una presunción de culpabilidad. (…) Por las mismas razones no es defendible que la prisión provisional deba cumplir la función de calmar la alarma social que haya podido producir el hecho delictivo, cuando aún no se ha determinado quién sea el responsable. Sólo razonando dentro del esquema lógico de la presunción de culpabilidad podría concebirse la privación en un establecimiento penitenciario, el encarcelamiento del imputado, como instrumento apaciguador de las ansias y temores suscitados por el delito. (…) La vía legítima para calmar la alarma social – esa especie de ´sed de venganza´ colectiva que algunos parecen alentar y por desgracia en ciertos casos aflora – no puede ser la prisión provisional, encarcelando sin más y al  mayor número posible de los que prima facie aparezcan como autores de hechos delictivos, sino una rápida sentencia sobre el fondo, condenando o absolviendo, porque sólo la resolución judicial dictada en un proceso puede determinar la culpabilidad y la sanción penal.”[5]

Na Itália, o Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Pádua, Palombarini, assim decidiu acerca da prisão preventiva: “Pena e prisão preventiva têm diversa natureza jurídica, diferentes objectivos, diversa função... Para decidir se uma certa garantia individual deve aplicar-se a um determinado instituto, é necessário atender, em primeiro lugar, à incidência do mesmo instituto sobre a esfera do indivíduo. Ora a prisão preventiva – embora diversa, como se disse, da pena – traduz-se para o indivíduo numa restrição total de sua liberdade. Diferentes os institutos, idênticos os valores em jogo e o perigo de lesão do fundamental direito da liberdade.”[6]

A situação ainda é mais dramática, pois o preso provisório poderá vir a ser absolvido ou, mesmo sendo condenado, não chegue sequer a cumprir uma pena privativa de liberdade. Logo, como observa Alberto Bovino, não é possível “que a situação do indivíduo ainda inocente seja pior do que a da pessoa já condenada, é dizer, de proibir que a coerção meramente processual resulte mais gravosa que a própria pena. Em conseqüência, não se autoriza o encarceramento processual, quando, no caso concreto, não se espera a imposição de uma pena privativa de liberdade de cumprimento efetivo. Ademais, nos casos que admitem a privação antecipada da liberdade, esta não pode resultar mais prolongada que a pena eventualmente aplicável. Se não fosse assim, o inocente se acharia, claramente, em pior situação do que o condenado.[7]

É preciso, portanto, atentar para a homogeneidade que deve haver entre a prisão cautlar e o provimento final; neste sentido, Gimeno Sendra, Moreno Catena e Cortés Domínguez advertem que “las medidas cautelares son homogéneas, aunque no idénticas, con las medidas ejecutivas a las que tienden a preordenar.[8] Trata-se, na verdade, da aplicação do Princípio da Proporcionalidade, advindo do debido proceso legal substancial, nos limites do art. 282 do CPP, ou seja, a prisão precisa guardar adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito[9].

A propósito, Julian Lopez Masle e Maria Inês Horvitz anotam que “el principio de inocência no excluye, de plano, la posibilidad de decretar medidas cautelares de carácter personal durante el procedimiento. En este sentido, instituiciones como la detención o la prisión preventiva resultan legitimadas, en principio, siempre que no tengan por consecuencia anticipar los efectos de la sentencia condenatória sino asegurar fines del procedimiento[10]

Também Alberto M. Binder: “Já vimos que todas as medidas de coerção penal são, em princípio, excepcionais. Dentro dessa excepcionalidade, a utilização da prisão preventiva deve ser muito mais restringida e, para assegurar essa restrição devem ser considerados dois tipos de suposição. Em primeiro lugar, não se pode aplicar a prisão preventiva se não existe um mínimo de informação que fundamente uma suspeita sobre limite essencial e absoluto: se não existe sequer uma suspeita racional e com fundamento de que uma pessoa possa ser autora de um fato punível, de maneira nenhuma é admissível uma prisão preventiva. Porém, este requisito não é suficiente. Por mais que se tenha uma suspeita com fundamentos, tampouco seria admitida constitucionalmente a prisão preventiva se não houverem outros requisitos, os chamados ‘requisitos processuais’. Estes se fundamentam em que a prisão preventiva seja direta e claramente necessária para assegurar a realização do julgamento ou assegurar a imposição da pena.[11]

De fato, a prisão para garantia da ordem pública não pode ser a cláusula aberta para que o medo do julgador ou os pânicos morais e contingenciais restrinjam direitos fundamentais. Assim, em tempos de subversão do Processo Penal, a decisão é um sendero.


Notas e Referências

[1] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas, São Paulo: Hemus, 1983, p. 55 (tradução de Torrieri Guimarães).

[2] CRETELLA JÚNIOR, José, apud Álvaro Lazzarini et alii, Direito Administrativo da Ordem Pública, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987, p. 7.

[3] LAZZARINI, Álvaro et alii, Direito Administrativo da Ordem Pública, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987, p. 6.

[4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 854-855.

[5] SENDRA, Gimeno; CATENA, Moreno; DOMINGUEZ, Cortés. Derecho Procesal Penal, Madrid: Colex,, 1999, pp. 522/523.

[6] Apud CARVALHO, Américo Taipa de, Sucessão de Leis Penais, Coimbra Editora, 1990, p. 251.

[7] Apud Rogerio Schietti Machado Cruz, “Prisão Cautelar – Dramas, Princípios e Alternativas”, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 100.

[8] Derecho Procesal Penal, Madri: Editorial Colex, 3ª. ed., 1999, p. 475.

[9] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

[10] Derecho Procesal Penal Chileno,  Tomo I,  Santiago de Chile : Editorial Jurídica de Chile, 2003, p. 83.

[11] Introdução ao Direito Processual Penal, Tradução de Fernando Zani, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003, p. 150.


Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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