Por Elpídio Paiva Luz Segundo e Joscimar Souza Silva – 06/05/2016
Este texto diferencia a ideia de cidadania social, refletida nos direitos de segunda dimensão, da cidadania civil e política. Seguramente, o conceito de cidadania social não é unívoco, pois, possui diferentes significados. Trata-se de um corpo de direitos e obrigações que estão relacionados aos padrões de determinadas sociedades ou a determinados níveis de desenvolvimento[1], não sendo possível definir o nível de bem estar a ser assegurado aos indivíduos[2].
Os conceitos de cidadania social têm uma capacidade constante em ampliar e se redefinir. Eles estão relacionados ao sentimento de identidade, de obrigação comuns[3] e requerem participação da comunidade, tendo em vista que possuem caráter coletivo. No terreno da jurisdição brasileira, o discurso da efetividade de direitos sociais viabilizou uma intensa onda de judicialização, que, ocorrendo inicialmente, no campo da saúde, espraiou-se para outras áreas marcadas pelo traço da jusfundamentalidade[4].
Decerto, o fenômeno não é somente local, pois, se apresenta em lugares tão diferentes como a Colômbia, a Índia e a África do Sul. O estorvo não diz respeito à afirmação da exigibilidade dos direitos sociais, mas ao seu alcance, considerando que se trata de um provimento de alta complexidade erigido por diferentes agentes (do ponto de vista normativo, operacional e simbólico) que atuam num espaço de tensionamento que concorrem entre si[5].
No passado, o Estado de Direito representava uma limitação ao poder absolutista. Entre as heranças dos direitos de liberdade estão os direitos políticos, ou seja, de votar, ser votado, bem como o direito de participar da atividade política e dos processos decisórios. Foi no esteio da crise do Estado Liberal que se deu o nascedouro político da questão social, dos direitos sociais e da ampliação do debate sobre a necessidade de ampliar a sensibilidade do Estado às demandas sociais.
Reforçar a ideia de cooperação entre os cidadãos ante o poder público para exigir e fiscalizar uma prestação estatal adequada, afastando o parentesco e a apropriação do Estado por particulares é uma das características centrais da cidadania social. Se, no entanto, os direitos de cidadania forem compreendidos como uma questão tipicamente privada, isto será um obstáculo à sua desenvolução e à fiscalidade do controle dos atos do poder público.
Na Europa, e, particularmente, na França, os processos de extensão dos direitos ocorreram gradativamente, de forma não linear, pois se tratam de complexos processos sujeitos a tropeços e avanços. Já na Alemanha, a ampliação do rol de direitos se fez sob a tutela do Estado devido a presença de um sentimento de civismo e da observância a um referencial jurídico-normativo.
No Brasil, diferente dos modelos de construção da cidadania apontados acima, a consolidação de um sistema de proteção social ocorreu em períodos de baixa intensidade de cidadania[6], ou seja, de pouca participação popular, principalmente nos períodos de 1937-1945 (Estado Novo) e 1966-1971 (governos militares).
A partir da década de 1930 houve uma institucionalização dos direitos sociais, sobretudo, após a publicação da Constituição de 1934. Entretanto, referido texto constitucional teve curto período de vigência com a implantação do Estado Novo. Por conseguinte, a formação e consolidação do precário e discutível welfare state se fez sob a tutela repressora do Estado, construído entre os anos 1930 e final dos anos 1970, ao longo do período desenvolvimentista.
Note-se que na República, excluindo-se o período da República Velha (1889 – 1930), do Estado Novo (1937 – 1945) e da ditadura civil-militar (1964 – 1985), há uma tentativa constante de incluir os diversos atores sociais nos processos decisórios, principalmente, após a Constituição de 1988.
Como se vê, a garantia da cidadania no Brasil foi historicamente inconclusa. Por momentos o Estado fixou direitos e, em outros, cerceou-os[7]. Quanto aos direitos sociais, esses foram muitas vezes negados em nome do próprio projeto de desenvolvimento do país e da necessidade de resolução dos problemas econômicos. Em outros momentos, a cidadania social foi confundida com favores do Estado, ante a ausência dos direitos políticos e/ou civis.
O ponto de partida para a remodelação (incompleta) do Estado brasileiro foi a Lei de Anistia, de 1979, instrumento da travessia negociada que culminou na Carta Política de 1988. Com a abertura política, a práxis da cidadania social foi reintroduzida na agenda das políticas públicas no Brasil.
Conforme Maria Paula Dallari Bucci[8], em que pese a dificuldade de se categorizar, em direito, a noção de políticas públicas, esta se relaciona aos direitos sociais, de segunda dimensão, que exigem obrigações positivas, sendo que o êxito de uma política pública, deve observar a qualidade do processo administrativo que antecede a sua realização e que a implementa.
Nesse contexto, as informações sobre a realidade a transformar, a capacitação técnica, a vinculação profissional dos servidores e a disciplina do serviço público[9] são fatores para que a política atue como um instrumento de desenvolvimento integrado. Desse modo, não são somente os politólogos e assistentes sociais que devem volver seu olhar para a temática das políticas públicas, mas, também, os juristas.
Como é sabido, as eleições nos municípios e nos Estados, nos anos 80, alteraram de forma profunda o caráter das relações intergovernamentais. A Constituição de 1988, um dos corolários desse processo, inseriu um amplo rol de direitos sociais, prevendo a atuação responsiva do Estado e institucionalizando uma cultura de instrumentos democráticos, através de Conselhos, por exemplo, que ensejam a participação popular na elaboração, monitoramento e avaliação das políticas sociais, além de estabelecer as ações constitucionais para coibir o arbítrio estatal.
Wanderley Guilherme dos Santos[10] aborda a dificuldade conceitual com o verbete “política social”. Para o autor, não é possível definir o conceito visto que não há diferença específica entre política social de outra política que permita uma distinção irretratável. Assim, ele assenta a premissa da tragicidade da política social, ou seja, a decisão política de realizar um programa social de caráter universal ou seletivo, de atender às demandas de determinados grupos sociais, implica necessariamente na exclusão de outros. Isso remete ao fato de que não só uma parte da população mais necessitada não terá acesso às políticas sociais, mas que carentes de outro tipo não poderão usufruir a prestação estatal.
Neste diapasão, a escolha de uma política social deve se orientar por princípios coerentes e consistentes que informem todo o sistema de proteção social. Tais valores não podem ser assegurados por critérios pré-estabelecidos, pois o conceito de justiça social não é unívoco. Tratam-se de questões substantivas relacionadas à razão sacrifício/benefício para cada indivíduo em sociedade.
Em que pese os óbices conceituais, as políticas sociais são de três tipos, quais sejam: preventivas, compensatórias e redistributivas, de acordo com a finalidade pretendida. Se as políticas preventivas visam impedir ou reduzir um problema social grave, as políticas compensatórias elencam os programas/projetos sociais que minimizam problemas oriundos de ineficientes políticas preventivas antecedentes ou por políticas contemporâneas integradas, não-dependentes, e, por último, as políticas redistributivas se referem aos programas / projetos de transferência de renda do Estado para o particular, mediante a prestação ou não de contribuição.
Anthony Downs[11] afirma que a lógica da tomada de decisão governamental expõe também uma fórmula de racionalidade econômica, baseada no potencial de agregação de valor em aprovação governamental que uma determinada decisão política pode ter. Considerado a limitação dos recursos disponíveis, as decisões sobre sua alocação são estrategicamente projetadas quanto aos interesses e disponibilidade.
Outro recurso disponível quanto à limitação dos recursos diz respeito ao comportamento das instituições dentro do federalismo brasileiro.
Segundo Marta Arretche[12]
a adesão dos governos locais à transferência de atribuições depende diretamente de um cálculo no qual são considerados, de um lado, os custos e benefícios fiscais e políticos derivados da decisão de assumir a gestão de uma dada política e, de outro, os próprios recursos fiscais e administrativos com os quais cada administração conta para desempenhar tal tarefa. (grifos no original).
Ao abordar em importante artigo a mercantilização dos direitos fundamentais, Vanice Valle[13] alerta para o risco da conversão dos direitos sociais em mercadoria, que desconsidera que a garantia do direito social não está disponível no mercado.
Atualmente, entidades federativas realizam atividades de gestão de políticas de saúde, moradia, saneamento básico, educação, assistência social, dentre outras. Não obstante, há dificuldades com a gestão, a contrapartida financeira necessária para a satisfação das necessidades públicas e com a operacionalidade dos direitos sociais.
Neste âmbito, a cidadania social exige políticas de intervenção que atendam às necessidades heterogêneas das populações e territórios, com redes de serviços adequadas de atendimento e, quanto ao conteúdo, orientadas para autonomia e empoderamento dos cidadãos[14].
O caráter multidimensional que envolve as políticas sociais deve ser lastreada na experimentação responsiva, desenhando e redesenhando programas e projetos, melhorando os instrumentos de análise para compensar a fraqueza teórica das atuações no campo social em análise, reivindicando, inclusive, a capacidade de financiamento.
É necessário frisar que a criação de instrumentos democráticos não são uma panaceia para o problema da participação social, pois os conselhos, por exemplo, indicam percursos para viabilizar e garantir uma maior participação. Para que se efetive uma cultura de participação e controle da gestão pública como práxis, mais relevante do que a garantia dos espaços para sua realização é a constituição de espaços políticos que tenham uma relação com o espaço público distinta do paradigma tradicional de administração pública.
A superação do paradigma tradicional inclui o entendimento do cidadão como ator auto interessado nas políticas e, nesta senda, os espaços de democracia participativa devem promover estruturas de deliberação, ouvindo e debatendo interesses cidadãos quanto à programas e políticas, especialmente as redistributivas, alvo maior de disputas[15].
Isto posto, além do reconhecimento da importância de uma cultura de efetiva participação e controle dos atos do Poder Público é necessário o engajamento do cidadão em um debate consequente e na construção de soluções no relacionamento com a coisa pública que evitem o retrocesso. Diante disso, basta saber, até que ponto os indivíduos, grupos de interesse e lobbies estão interessados nesse processo.
Notas e Referências:
[1] ROBERTS, Brian R. A dimensão social da cidadania. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 33.São Paulo: ANPOCS, 1997. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_33/rbcs33_01.htm. Acesso em 28 abr. 2016.
[2] Idem.
[3] Idem.
[4] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Mercantilização de direitos fundamentais e o potencial regressivo das decisões judiciais. Disponível em:
https://www.academia.edu/8696233/MERCANTILIZA%C3%87%C3%83O_DE_DIREITOS_FUNDAMENTAIS_E_O_POTENCIAL_REGRESSIVO_DAS_DECIS%C3%95ES_JUDICIAIS. Acesso em 28 abr. 2016.
[5] Idem, adaptado.
[6] A expressão é de Guillermo O`Donnell.
[7] CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 155-196.
[8] BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas públicas e direito administrativo. Disponível em:
http://unisc.br/portal/upload/com_arquivo/1349877514.pdf. Acesso em 28 abr. 2016.
[9] Idem.
[10] SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A trágica condição da política social. In: ABRANCHES; SANTOS; COIMBRA. Política Social e combate à pobreza. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p. 37.
[11] DOWNS, Anthony. A lógica básica da tomada de decisão governamental. In: ______. Uma teoria econômica da democracia. São Paulo: Edusp, 1999, p. 71-94.
[12] ARRETCHE, Marta T. S. Políticas Sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 14, n. 40.São Paulo: ANPOCS, 1999, p.115.
[13] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Mercantilização de direitos fundamentais e o potencial regressivo das decisões judiciais. Disponível em: https://www.academia.edu/8696233/MERCANTILIZA%C3%87%C3%83O_DE_DIREITOS_FUNDAMENTAIS_E_O_POTENCIAL_REGRESSIVO_DAS_DECIS%C3%95ES_JUDICIAIS. Acesso em 28 abr. 2016.
[14] CARNEIRO, Carla Bronzo Ladeira. Programas de proteção social e superação da pobreza: concepções e estratégias de intervenção. Disponível em:
http://www.repositorio.fjp.mg.gov.br/bitstream/123456789/276/1/Programas%20de%20prote%C3%A7%C3%A3o%20social%20e%20supera%C3%A7%C3%A3o%20da%20pobreza.pdf, p. 303 (adaptado). Acesso em 1 mai. 2016.
[15] RUA. Maria das Graças. Análise de políticas públicas: conceitos básicos. In: RUA, Maria das Graças; CARVALHO, Maria Isabel. O estudo da política: tópicos selecionados. Brasília: Paralelo 15, 1998, p. 290-370.
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