Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira
Novamente se vê a comunidade jurídica, empresas e contribuintes "alvoroçados" com um julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a coisa julgada, particularmente em matéria tributária debatida nos autos dos Recursos Extraordinários ns. 949.297 e RE 955.227 (Temas ns. 881 e 885 de Repercussão Geral, respectivamente).
A controvérsia estava delimitada sobre a (in)constitucionalidade da conduta administrativa da Receita Federal em autuar as empresas para que, em razão do julgamento da ADI n. 15 pelo STF em 2007, passassem, doravante, a recolher o tributo CSLL, mesmo que já tivessem em seu favor decisão transitada em julgada em sentido contrário.
O próprio STF, diante da repercussão do julgamento, foi levado a divulgar em seu site oficial esclarecimentos[1], o que se faz lembrar das sempre valiosas lições de José Carlos Barbosa Moreira (publicizadas a mais de 40 anos!):
Conforme eloquentemente atesta a vastidão da bibliografia a respeito, poucos temas jurídicos têm merecido dos estudiosos atenção maior que da coisa julgada. Quem se detiver, porém, no exame do material acumulado, chegará à paradoxal conclusão de que os problemas crescem de vulto na mesma proporção em que os juristas se afadigam na procura das soluções. Séculos de paciente e acurada investigação foram incapazes de produzir, já não diremos a aquietação das polêmicas, que subsistirão enquanto o homem fôr o que é, mas ao menos a fixação de uma base comum em que se possam implantar as multiformes perspectivas adotadas para o tratamento da matéria[2].
Eis as teses assentadas:
1. As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2. Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.
Há acertos e desacertos nestas teses, que se objetivam demonstrar sinteticamente no espaço desta Coluna, adicionando mais uma opinião sobre o controverso tema constitucional.
As premissas de defesa intransigente da coisa julgada e de sua imutabilidade nos parecem equivocadas. Daí se lembrar, também, de Alfredo Augusto Becker e suas sínteses de pensamento inigualáveis:
Deve-se tomar extremo cuidado na escolha e no uso de vocábulos e expressões jurídicas. A impropriedade de expressões facilmente desencadeará no cérebro reflexos condicionados àquela impropriedade, fazendo-o raciocinar com idéias errôneas que servem de premissas para conclusões. Basta uma premissa falsa para inutilizar a conclusão, embora esta seja a perfeita decorrência lógica daquela premissa falsa. Porém o jurista muito dificilmente perceberá (ou admitirá) o erro porque costuma-se atentar mais para a lógica da conclusão que para a veracidade das premissas. [...] E se o vocábulo ou expressão está sendo utilizado para designar um conceito fundamental, não há uma conclusão errada, mas falsa estará toda a teoria ou doutrina que se desenvolveu com base naquele fundamento[3].
O erro das premissas que se alegam da impossibilidade de alterar pronunciamento judicial transitado em julgado, da interrupção inconstitucional dos efeitos da coisa julgada e da ofensa à segurança jurídica está em analisar o fenômeno da decisão da Suprema Corte, proferida em controle concentrado de constitucionalidade, sem verificar os efeitos que é por ele irradiado no ordenamento jurídico.
É sabido que a coisa julgada nas relações continuativas contém o atributo “rebus sic stantibus”, que significa aplicar o comando jurisdicional que se tornou imutável nas mesmas situações fáticas e jurídicas em que tal imutabilidade se deu.
O Ministro Teori Zavascki é oportuno, na ocasião em que, como redator para o acórdão do Agravo Regimental em Mandado de Segurança n. 32.435 no STF, defendeu que
A força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado atua rebus sic stantibus: sua eficácia permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados para o juízo de certeza estabelecido pelo provimento sentencial. A superveniente alteração de qualquer desses pressupostos determina a imediata cessação da eficácia executiva do julgado, independentemente de ação rescisória ou, salvo em estritas hipóteses previstas em lei, de ação revisional.
A alteração, portanto, no pressuposto jurídico da coisa julgada retira um dos suportes pelos quais estava assentada, muito embora permaneça o suporte fático. Daí que, ausente, doravante pela decisão em controle concentrado de constitucionalidade, identidade entre os suportes fático e jurídico, não se encontra mais as balizas pelas quais incidem os efeitos da coisa julgada.
Não se trata, portanto, de cessação da eficácia da coisa julgada que dependeria de uma declaração judicial. Trata-se, sim, o caso em análise de inaplicação da coisa julgada porquanto ausente o direito em que ela estava assentada.
Diversos são os âmbitos eficaciais: um, da coisa julgada e sua aplicação no tempo enquanto vigente as mesmas situações fática e jurídica (realidade do passado); outro, da aplicabilidade imediata de uma norma jurídica extraída de decisão em controle concentrado de constitucionalidade com vinculação obrigatória estabelecida na Constituição Federal (realidade do futuro).
Não há relação entre coisa julgada e aplicação vinculante-constitucional de decisão de ADI, já que o direito não é o mesmo. A eficácia temporal da coisa julgada permanece no tempo em que surtiu efeitos, daí que, agora sim, para afastar a segurança jurídica advinda da decisão transitada em julgada que já gerou efeitos e impediu a União de cobrar o tributo se faz necessária - se a pretensão for a cobrança do tributo do passado -, uma declaração judicial (se ainda houver prazo de desconstituição da decisão), justamente porque se estaria afastando a coisa julgada que dotou de segurança jurídica empresas e contribuintes que se pautaram e confiaram na Jurisdição.
Assim, uma primeira premissa aqui estabelecida é a inaplicabilidade da decisão transitada em julgada quando não há identificação dos suportes fático e jurídicos com novos atos jurídicos. Não é que a coisa julgada foi relativizada ou se tornou mutável, mas sim que não tem aplicabilidade pela alteração de um de seus suportes, no caso ora analisado, o suporte jurídico de reconhecimento da constitucionalidade do tributo. Aqui, novamente BECKER é oportuno:
Ora, para alguém saber se há (ou não) a relação jurídica predeterminada por uma regra jurídica, é absoluta e logicamente necessário que, antes, investigue a realização (ou irradiação) da hipótese de incidência daquela regra jurídica. Esta investigação consiste numa análise (quantitativa e qualitativa) de determinados fatos acontecidos[4].
Relembre-se que a questão que se debateu no STF foi a possibilidade da União, considerando a decisão tomada em controle concentrado de constitucionalidade no ano de 2007, poder realizar a imposição tributária com base no novo entendimento da Suprema Corte exarado naquele controle concentrado.
Nessa perspectiva, uma segunda premissa que deve ser assentada, a nosso juízo, é a forma de internalização na Administração Pública das decisões do Supremo Tribunal Federal, como já se expôs em outra oportunidade[5] e nesta Coluna[6].
As decisões em ações diretas de inconstitucionalidade, por terem a disciplina oriunda da própria da Constituição Federal, no sentido de que as “decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” (CF, art. 102, § 2º), são de impositiva aplicação pela Administração Pública.
Não necessita a Administração Pública, portanto, de nova autorização judicial para exarar futuros atos pela razão de que estaria a situação fática retratada em decisão judicial transitada em julgado. Trata-se, em realidade, de nova normatividade decorrente de pronunciamento jurisdicional da Suprema Corte que, pelo preceito constitucional referido, deve ser, obrigatoriamente, seguido em todos os níveis da Federação brasileira.
É necessário perceber que não há espaço de discricionariedade para que o agente público não expeça atos administrativos em conformidade com tais pronunciamentos do STF. O suporte jurídico-constitucional se alterou e de forma vinculativa à Administração Pública.
Trata-se, como já por nós classificado, de precedentes diretamente vinculantes à Administração Pública, considerando que sua aplicação direta é imposta e delimitada na Constituição Federal, assim como é, igualmente, as súmulas vinculantes.
Os precedentes indiretamente vinculantes à Administração Pública, aqueles em que a autorização de aplicação na Administração Pública advém de lei e não da Constituição, são os demais elencados no art. 927 do Código e Processo Civil de 2015, quais sejam, os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional e a orientação do plenário ou do órgão especial quais dos tribunais.
Os precedentes indiretamente vinculantes assim se denominam porque a sua normatividade é infraconstitucional e limitada à Jurisdição. A adoção pela Administração Pública de tais precedentes não é, por conseguinte, direta, automática, mas sim indireta, pois depende de disciplinamento legal autorizativo.
Neste contexto, não se coaduna com o entendimento descrito na tese dos Temas 881 e 885 de que até as decisões em controle difuso de constitucionalidade, mesmo prolatada sob o rito da Repercussão Geral, interrompem automaticamente a eficácia temporal da coisa julgada.
Isto pela simples razão de que a inaplicação da eficácia da coisa julgada - que tem superior assento constitucional -, somente pode se dar por norma de igual envergadura, como é o caso do art. 102, § 2º, da CF, que trata da eficácia da decisão de controle concentrado de constitucionalidade. Apenas a decisão proferida pelo STF nesse procedimento especial tem o condão de alterar a normatividade do ordenamento jurídico. As decisões em controle difuso não têm esta singular característica e disciplina da Constituição Federal.
Portanto, a delimitação da tese dos Temas 881 e 885 em relação ao controle difuso - ainda que realizado no regime da repercussão geral -, como já se defendeu[7], faz com que
ao assim agir, o Supremo Tribunal Federal, de modo transverso, se transforma, além de julgador, em autor de ação direta de inconstitucionalidade sem ter legitimidade para tanto, nos termos da legitimidade restrita do art. 103 da Constituição Federal. Trata-se de singular hipótese de ação de inconstitucionalidade de ofício, porquanto o resultado da decisão em controle incidental será o mesmo, qual seja, a eficácia para todos do comando jurisdicional emanado da Suprema Corte.
Essa é mais uma opinião sobre o intrincado e controverso tema da coisa julgada nas relações de trato sucessivo e reflexos decorrentes de posteriores pronunciamentos jurisdicionais da Suprema Corte.
Notas e referências
[1] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=502140&ori=1. Acesso em 12 abr. 2023. No que concerne à controvérsia o STF assim esclareceu na notícia em destaque: “Em 1992, algumas empresas conseguiram na Justiça o direito de não pagar a CSLL, e o caso transitou em julgado em outra instância. Porém, em 2007, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 15, o STF afirmou que a contribuição era constitucional e deveria ser paga. O Supremo se pronunciou no sentido de que a partir daquela decisão, todos deveriam ter passado a pagar o tributo”.
[2] Ainda e sempre a coisa julgada, In, Revista dos Tribunais, RT 416/9, jun./1970.
[3] Teoria geral do direito tributário, 3ª ed., São Paulo: Editora Lejus, 2002, p. 318-319, grifos no original).
[4] Teoria geral do direito tributário, 3ª ed., São Paulo: Editora Lejus, 2002, p. 354, grifos no original).
[5] OLIVEIRA, Weber Luiz de. Precedentes judiciais na Administração Pública: limites e possibilidade de aplicação, 2ª ed., Salvador: Editora Juspodivm, 2019.
[6] Precedentes indiretamente vinculantes e a LINDB. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/precedentes-indiretamente-vinculantes-e-a-lindb. Normatividade dos Precedentes na Administração Pública. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/normatividade-dos-precedentes-vinculantes-na-administracao-publica-por-weber-luiz-de-oliveira .
[7] Abstrativização do Controle Concreto de Constitucionalidade na Perspectiva do Federalismo, In, Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil, v. 103, 2021, p. 133.
Imagem Ilustrativa do Post: phase3 // Foto de: anders pearson // Com alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/thraxil/43114221
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/