Normatividade dos Precedentes Vinculantes na Administração Pública – Por Weber Luiz de Oliveira

14/05/2017

Decisões judiciais existem para dar solução a conflito entre pessoas no âmbito do processo. A sentença alcançada na prestação jurisdicional “é o ato em que se expressa a norma jurídica concreta que há de disciplinar a situação submetida ao órgão jurisdicional”[1].

A decisão judicial é a concretização do exercício da jurisdição, como ato de poder-dever, de impor obediência ao que foi decidido, pacificando e disciplinando as relações sociais. Hodiernamente, conquanto seja um ato soberano desenvolvido no processo jurisdicional, possui ele “compromissos éticos fundamentais, decorrentes da função social que se atribui ao Estado Contemporâneo”[2].

As decisões judiciais e os atos e procedimentos realizados no processo, dentro deste contexto de um processo judicial constitucionalizado pelos direitos fundamentais, devem ter sempre presente as diretrizes traçadas na Constituição. É o que a doutrina denomina de Direito Constitucional Processual, significando “o conjunto das normas de Direito Processual que se encontra na Constituição Federal”[3].

O sistema de common law é assentado sobre os “precedentes”, que “é uma expressão frequentemente utilizada para designar o conjunto de decisões judiciais vinculantes”[4].

E como é a disciplina, aplicação e operacionalidade dos precedentes vinculantes no sistema jurídico brasileiro?

A vinculação dos precedentes no Brasil se dá em razão de regramento legal que assim dispõe, pela simples razão de que, sendo uma país de modelo de civil law, normativista e codificado, a principal fonte do direito é a legislação, notadamente pelas disposições constitucionais do art. 5º, II e 37, caput, sendo a primeira, inclusive, cláusula pétrea.

A vinculação da Administração Pública ao precedente se dá com as ações de controle concentrado de constitucionalidade, em que a “força vinculante emerge diretamente do julgamento do mérito da causa”[5] e com a súmula vinculante. A normatividade destas decisões decorre diretamente da Constituição Federal.

O Novo Código de Processo Civil traz importante inovação sobre a aplicação da doutrina dos precedentes, impondo que juízes e tribunais sigam os precedentes relacionados no diploma legal em gestação.

De início, portanto, já se vê a diferença com o modelo de common law, porquanto neste, o precedente é oriundo da cultura da formação jurídica dos países daquele modelo, inexistindo regulamentação a respeito. Esta diferença, todavia, é óbvia em razão do modelo da jurisdição brasileira, de civil law, em que a legislação é que rege as relações, sejam sociais, econômicas, jurídicas e judiciais.

O dispositivo aprovado do CPC/2015 que sistematiza a aplicação dos precedentes está assim redigido: "Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados".

Neste cenário, de se buscar a uniformidade das decisões judiciais, com consequente estabilidade das relações sociais, segurança jurídica e diminuição da litigiosidade, é que se indaga se os precedentes não disciplinados na Constituição Federal (decisões em controle concentrado de constitucionalidade e súmula vinculante) igualmente seriam aplicáveis, vinculativamente ou não, para a Administração Pública.

O princípio da legalidade e a sua adoção absoluta é um limitador à aplicação dos precedentes vinculantes.

O não atendimento ao quanto estatuído em lei, aliás, dá ensejo à responsabilização do servidor no âmbito administrativo[6], civil[7] e também penal[8].

A doutrina do desvio de poder, a propósito, impõe que a atividade administrativa seja feita tão-somente em consonância com o que dispõe a lei, sob pena de invalidade do ato. Note-se que se entende também como desvio de poder as “hipóteses em que, embora buscando um interesse público, o faz mediante ato cuja destinação legal é diversa”[9].

O regramento dos atos da Administração Pública, ademais, está primeiramente estipulado na Constituição Federal, nas respectivas constituições estaduais e, por fim, na legislação (leis, decretos, portarias, etc.).

Entende-se que é necessário estabelecer por regulamentação legal a possibilidade de não aplicação restrita da legislação em casos específicos, dotando o ente público de legitimidade para se submeter aos precedentes judiciais, sem que com isto possa se responsabilizar a Administração Pública e/ou os seus agentes.

Ainda, dá publicidade às pessoas que determinada legislação será, doravante, aplicada consoante o que está sedimentado em precedente judicial. Esta mudança de entendimento não pode ser feita, portanto, de inopino, sem cientificação da sociedade, pois, como dito, o particular pode fazer tudo o que lei não proíbe e, esta permissão está atrelada ao sentido da lei. O inciso II do art. 5º da Constituição Federal assim impõe. Se o sentido da lei era interpretado pela Administração de uma determinada forma, influenciando ou não as atividades privadas, a modificação da atuação estatal, em cumprimento ao princípio da moralidade, deve ser pública.

Por mais que se possa parecer uma submissão exacerbada a um positivismo jurídico, em que “se reconhece também que o ordenamento jurídico, além de regular o comportamento das pessoas, regula também o modo como devem ser produzidas as regras[10], o princípio da segurança jurídica se coaduna com o que ora se defende. Ainda, a previsibilidade da ação estatal, resta garantida neste sentido.

Necessário deixar claro, portanto, que é imperioso que o ordenamento jurídico e, por conseguinte, a Administração Pública, não fiquem adstritos aos limites impostos pela literalidade da lei. Isto porque, como ocorre na seara judicial, é entendimento hodierno que para “que o princípio da legalidade seja aplicado em consonância com outros princípios fundamentais que o delimitam, especialmente o princípio da isonomia, é necessário entender que o juiz não julga conforme a lei; julga conforme o direito, e o direito não se resume à lei"[11].

Já que compete aos Tribunais Superiores dar a interpretação da lei – competência esta contida dentro do ordenamento jurídico-constitucional -, a referida literalidade da lei é de ser entendida em ponderação com a interpretação judicial, cristalizada em precedente vinculante.

Esta abertura da literalidade legal, no sentido de dar segurança jurídica, confiança, uniformidade e previsibilidade ao sistema, neste caso, administrativo, é um passo importante para se assentar que também a Administração Pública - como de resto não podia ser diferente, mas que até se chegar a maturidade institucional brasileira ainda não se tinha este entendimento -, pode se pautar consoante a interpretação uniforme dada pelos Tribunais.

O objetivo de se respeitar os precedentes obrigatórios não é apenas para aplicação no ambiente forense, nos milhares de processos judiciais existentes, quando se edita, por exemplo, portarias de dispensas de recursos para os Advogados Públicos ou orientações para o não ajuizamento de ações, mas, de forma ampla e geral, também e principalmente, de meio preventivo e de adoção de práticas administrativas para que novas ações não sejam intentadas, devido a recalcitrância na aplicação de legislação pela Administração Pública, de que se sabe não se coaduna com o entendimento massivo dos Tribunais.

Utilizando-se do exemplo referido por José Maria Rosa Tesheiner[12], um servidor que opte por judicializar uma questão afeta aos seus vencimentos pode ter os mesmos majorados pela decisão judicial, em detrimento de outros que não intentaram ações semelhantes e, portanto, não tiveram os seus vencimentos majorados em virtude da aplicação irrestrita da lei pela Administração Pública. Esta problemática pode ter solução singela pela adoção dos precedentes, desde que nitidamente vinculantes e dentro de balizas regulamentatórias editadas pelo ente público envolvido.

O respeito aos precedentes vinculantes no exercício da atividade administrativa, desde que respaldada por legislação orientada neste sentido, é medida que concretiza o entendimento sedimentado pelos tribunais, evitando a judicialização atualmente massiva.

O CPC/2015, conquanto vincule apenas juízes e tribunais, merece reflexão para que, diante da ideologia dos precedentes vinculantes (uniformidade, previsibilidade, certeza e segurança jurídicas, etc.), também seja aplicável à Administração Pública.

Não pode o administrador público ficar obtuso a esta nova concepção e realidade institucional e jurisdicional, aguardando passivamente eventual alteração legislativa para exercer o seu múnus. Todavia, também não pode ter uma atitude ativa sem respaldo em legislação, já que, querendo ou não, o princípio da legalidade lhe é impositivo, sob pena, até mesmo, de cometimento de crime de improbidade administrativa, nos termos do art. 11, I, da Lei Federal n. 8.429, de 2 de junho de 1992.

Isto não impede que, dialogicamente com a legislação e a jurisdição, e em consonância com os demais princípios constitucionais, como o da igualdade, moralidade e eficiência, como também ciente da evolução do Estado Constitucional, não adote medidas, dentro do seu campo de atuação e competência, que dê cumprimento aos precedentes vinculantes.

Diante deste contexto, não pode a Administração Pública, sob pena de ofensa do princípio da igualdade, negar aplicação ao quanto decidido pelos Tribunais em última instância. No Estado Constitucional atual, não se consente com a emanação de duas interpretações, de dois entendimentos diversos acerca de uma dada norma jurídica. O Direito é uno e as funções político-estatais devem zelar pela sua integridade e uniformidade.

Assim, o Direito descrito sedimentadamente pela jurisdição, assentado em precedente obrigatório, deve ser considerado pela Administração, que não pode, no contexto contemporâneo, ficar a mercê de legislações que não acompanham o desenvolvimento social e institucional. Com isto, tenta-se evitar o que Manuel Castells denominou de “crise de governança”, “relacionada a uma crise fundamental de legitimidade política, caracterizada pela distância cada vez maior entre os cidadãos e seus representantes”[13].

Pondera-se sobre uma abertura pela legislação no sentido de atribuir ao Administrador maior campo de liberdade na adoção dos precedentes vinculantes, para que não fique adstrito à forma legal, em nítido exercício dos ideais liberais do século XVIII no século XXI, mas também possa, em razão da referida autorização legislativa, no exercício do mister administrativo, aplicar o Direito sedimentado judicialmente.

São poderes políticos, exercidos tanto pela legislação (lei), quanto pela jurisdição (direito), que devem ser sopesados pela Administração e aplicados em consonância com o que for melhor, mais eficiente, norteado, também, pelos demais princípios de direitos fundamentais e pelos escopos do Estado Constitucional.


Notas e Referências:

[1] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento, 19ª ed., 5ª tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 2).

[2] RODRIGUES, Horácio Wanderlei; LAMY, Eduardo de Avelar. Teoria geral do processo, 3ª ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 8).

[3] NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal, 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 26.

[4] ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de resolução de conflitos na Inglaterra, trad. do autor [orientação e revisão da tradução Teresa Arruda Alvim Wambier], 2ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 97.

[5] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Alguns reflexos da Emenda Constitucional 45, de 08.12.2004, sobre o processo civil, in, Revista de Processo n. 124, junho/2005, p. 38.

[6] Veja-se, por exemplo, o quanto estatui a Seção IX, do Capítulo I, do Título IV, da Constituição Federal, que trata da fiscalização contábil, financeira e orçamentária. No âmbito tributário, o Código Tributário Nacional é expresso: “Art. 141. O crédito tributário regularmente constituído somente se modifica ou extingue, ou tem sua exigibilidade suspensa ou excluída, nos casos previstos nesta Lei, fora dos quais não podem ser dispensadas, sob pena de responsabilidade funcional na forma da lei, a sua efetivação ou as respectivas garantias.” No mesmo diploma legal, o parágrafo único do art. 142 adverte: “A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional”.

[7] O § 6º do art. 37 da Constituição Federal impõe a responsabilidade por regresso de servidor que atuar com dolo ou culpa. Esta culpabilidade pode naturalmente decorrer do desatendimento deliberado à lei que dispõe sobre o seu ofício.

[8] Em tese, pode-se enquadrar o servidor no crime de prevaricação, estatuído no art. 319 do Código Penal: “Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”, com pena de detenção, de três meses a um ano, e multa.

[9] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Discricionariedade e controle jurisdicional, 2ª ed., 9ª tiragem, São Paulo: Malheiros, 2008, p. 64.

[10] BOBBIO, Norberto. Teoria geral do Direito, tradução Denise Agostinetti, São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 196.

[11] LAMY, Eduardo de Avelar. Súmula vinculante: um desafio, in, RePro n. 120, fev/2005, p. 118.

[12] Eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil, São Paulo: RT, 2002, p. 170.

[13] A Crise da Democracia, Governança Global e a Emergência de uma Sociedade Civil Global, in, Por uma Governança Global Democrática (vários autores), São Paulo, Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2005, p. 96.


 

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