JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE E O TEMA 1234 DE REPERCUSSÃO GERAL – PARTE 1

22/09/2024

Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

CAMINHOS E DESCAMINHOS DO FEDERALISMO BRASILEIRO E O “POSSÍVEL EM SI” ACOLHIDO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM UMA GOVERNANÇA JUDICIAL COLABORATIVA

A judicialização da saúde pública, já objeto de análise nesta Coluna[i], em seus caminhos e descaminhos pelas estantes – agora virtuais! – do Poder Judiciário e da Administração Pública, em todas as esferas estatais, obteve uma definição de rota pelo Supremo Tribunal Federal.

Trata-se do julgamento, por unanimidade, do Tema 1234 de Repercussão Geral, afetado no Recurso Extraordinário n. 1.366.243/SC, em que se acolheu, fruto de um diálogo federativo, acordo entabulado entre a União e os Estados, naquilo que se pode afirmar ter sido o “possível em si”[ii].

O Min. Gilmar Mendes, Relator, consignou, à propósito, que se tratava “de uma das facetas mais formidáveis da interpretação constitucional: o pensamento do possível no Federalismo cooperativo e na exegese constitucional” (p. 2 do voto, sem grifos no original).

O julgamento, seu contexto e interações federativas tem uma miríade de variáveis, reflexos e aspectos estruturantes – do ponto de vista jurisdicional, administrativo, processual, normativo-constitucional, político, econômico, social e de direitos fundamentais – que impõe, no espaço de uma Coluna vocacionada a debater a Advocacia Pública e outros temas relevantes de Direito Público, a sua exposição por tópicos. Apresenta-se, aqui, a Parte 1.

Com efeito, nesta Introdução importa descrever uma visão panorâmica do Tema 1234/STF a respeito da problemática enfrentada há décadas no Brasil em relação à judicialização da saúde pública.

Prefacialmente, há de se ressaltar que o Recurso Extraordinário foi interposto pelo Estado de Santa Catarina, escrito pela colega Procuradora do Estado Flávia Dreher de Araújo. O Recurso Extraordinário afetado foi bem escolhido pelo Supremo Tribunal Federal, considerando as razões recursais relevantes expostas, fruto da experiência profissional e acadêmica da subscritora na área do Direito à Saúde[iii]. Efetivamente se atendeu a exigência do § 6º do art. 1.036 do Código de Processo Civil, no sentido de somente se selecionar “recursos admissíveis que contenham abrangente argumentação e discussão a respeito da questão a ser decidida”.

Não se pode deixar de mencionar, ainda que faltantes muitos nomes (já peço escusas pela ausência de referências a tantos que participaram e contribuíram sobremaneira nesse acordo federativo), as atuações de outras mulheres aguerridas na causa pública, quais sejam, Viviane Ruffeil Teixeira Pereira, Procuradora do Estado do Pará, com atuação nos Tribunais Superiores e Presidente do Colégio Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e do Distrito Federal (CONPEG), Monica de Oliveira Lima, Responsável Técnica da Câmara Técnica de Direito Sanitário (CTDS) do Conselho Nacional de Secretários de Estado (CONASS) e, ainda, da própria Ministra da Saúde, Nísia Trindade. A abertura de qualquer diálogo institucional-federativo pressupõe, certamente, uma vontade política que merece também ser enaltecida.

Faz-se necessário, para ilustrar a importância desse julgamento histórico, colacionar o primeiro parágrafo do voto do Relator:

Senhora Ministra e senhores Ministros, considero este julgamento de extrema urgência e importância para a Federação e para os cidadãos brasileiros, não só pela densidade apta a abalar o pacto federativo, envolvendo a competência jurisdicional para fornecimento de medicamentos no âmbito do SUS, mas também em decorrência da instabilidade social, econômica e políticojurídica que o tema suscita, com vaivéns processuais, além de desarranjo federativo sobre o custeio, e principalmente pelo fato de que houve subscrição à proposta de solução encetada na Comissão Especial, por meio de negociação, como técnica autocompositiva, cujos termos foram referendados pelos entes federativos envolvidos, no âmbito desta Corte, com acréscimos das cláusulas de acordo extrajudicial e adendo a esse, ambos negociados diretamente entre os Entes Federativos, no âmbito da CIT.

À guisa de ilustração, de igual modo ao que também se incluiu no voto do Min. Relator, colhe-se do “Painel da Judicialização da Saúde”, do Conselho Nacional de Justiça, que até 31/07/2024 existiam 503.040 processos pendentes de julgamento, com um crescimento exponencial de processos novos a cada ano[iv]:

 

O intrincamento do tema envolve não apenas a forma de gestão da saúde pública brasileira e da repartição de competências administrativas no Sistema Único de Saúde, mas, também, as formas e limites de implementação de direitos fundamentais prestacionais pelo Poder Judiciário, além das próprias competências constitucionais-processuais das jurisdições federal e estadual, sendo certo que é na Justiça Estadual que tramita o maior número de processos, conforme destaca o referido painel do CNJ:

 

Diante de toda a complexidade envolvente foi o federalismo cooperativo que obteve sucesso perante a Suprema Corte, no sentido dos entes federativos reconhecerem a divisão de competências administrativas respectivas, alargando-as para a atividade jurisdicional, o que foi encampado no julgamento. Vale dizer, por acordo federativo se delimitou as próprias competências jurisdicionais. Até que ponto essa disciplina competencional tem abrigo constitucional e processual é tema para ser explanado em outra oportunidade.

O contexto antecedente ao acordo homologado foi a criação de Comissão Especial composta por diversos personagens institucionais[v], que possibilitou a exposição dos problemas existentes e o diálogo franco entre as esferas de governo sobre a possibilidade “ímpar” ofertada pelo Min. Gilmar Mendes em dar uma solução – dentro do “possível em si” – de encaminhar soluções com vistas a minorar a desenfreada e desestruturante judicialização da saúde pública e organizar formas de custeio, ressarcimento e critérios de fornecimento judicial de medicamentos.

Mais uma vez, para melhor expor esta faceta é oportuno descrever o seguinte trecho do voto do Min. Relator:

Alertei também que essa controvérsia, profunda em suas origens e sistêmica em suas consequências, não seria resolvida apenas com uma decisão judicial. Pelo contrário, o próprio dissenso engendrado pelo julgamento do tema 793 da repercussão geral evidenciou que dilemas estruturais dessa natureza dificilmente são solucionados pela atuação jurisdicional, ainda que bem intencionada.

Nessa linha, o enfrentamento adequado do tema impunha uma abordagem que contemplasse todo o processo de prestação de ações e serviços de saúde pelo Estado brasileiro, desde o custeio até a compensação financeira entre os Entes Federativos (passando pela judicialização), abrangendo os medicamentos incorporados (à época denominados padronizados na decisão cautelar) e os não incorporados pelo Sistema Único de Saúde.

Registrei que era chegado o momento, portanto, de deflagrar processo de diálogo interfederativo e colaborativo com a sociedade, que propiciasse a construção de solução autocompositiva para a questão do fornecimento de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde, de modo a aprofundar o conceito constitucional de solidariedade e municiar a Federação dos mecanismos, protocolos e fluxogramas necessários para assegurar o acesso efetivo da população a direitos fundamentais, sem desequilíbrio financeiro e desprogramação orçamentária.

A complexidade do tema impunha a instauração de instância de diálogos verdadeiramente interfederativa e representativa, tanto sob o ângulo das instituições quanto dos interesses potencialmente colidentes.

Nesse sentido, reputei pertinente designar Comissão Especial, no âmbito da qual foram conduzidas as discussões sobre a estrutura de financiamento e dispensação de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde, passando pela judicialização do tema e eventuais desdobramentos daí decorrentes. (p. 3 do voto do Min. Relator. Grifos no original)

A solução acordada foi aplicar, enfim, uma divisão de competências jurisdicionais na medida do possível em consonância com a estruturação das competências do SUS, responsabilizando cada ente federativo pela prestação da saúde de fornecimento de medicamentos de acordo com o valor anual da ação judicial e, posteriormente, ressarcimento pelo ente que não participou do litígio para aquele que dispendeu os recursos financeiros para o cumprimento da decisão.

Assim ficou estabelecido, resumidamente, no que se refere particularmente às competências jurisdicionais e ressarcimentos:

  1. Custo anual do medicamento superior a 210 salários mínimos: competência da Justiça Federal e custeio integral pela União;
  2. Custo anual do medicamento entre 7 e 210 salários mínimos: competência da Justiça Estadual e custeio pelos Estados, com ressarcimento pela União de 65% do valor gasto, com o depósito “fundo a fundo” (do Fundo Nacional de Saúde para o Fundo Estadual de Saúde);
  3. Custo anual do medicamento abaixo de 7 salários mínimos: competência da Justiça Estadual com custeio integral dos Estados; se o Município fazer parte da demanda e realizar o custeio, os Estados devem proceder o ressarcimento, “ressalvada eventual pactuação, em sentido contrário, no âmbito das Comissões Intergestores Bipartite” (p. 69, do voto do Min. Relator).

Compôs-se, ainda, sobre o dever de ressarcimento pela União de despesas passadas da judicialização da saúde dos Estados e Municípios, retroativo ao ano de 2018, o que implicará na minoração do déficit orçamentário e financeiro de tais entes federativos, além de obstar uma “judicialização da judicialização”, que é a cobrança e execução judiciais contra a União de créditos dos Estados e Municípios, decorrentes de fornecimento forçado de medicamentos de competência federal e/ou solidária.

Determinou-se a criação de uma plataforma nacional gerenciada pelos três entes da Federação e pelo Poder Judiciário, com o desiderato de centralização de “todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármaco, de fácil consulta e informação ao cidadão, na qual constarão dados básicos para possibilitar a análise e eventual resolução administrativa, além de posterior controle judicial”. Outras atribuições da plataforma nacional serão debatidas em outra Parte nesta Coluna.

Ademais, em razão deste julgamento, de forma adequada e estratégica – como será exposto em outra Parte nessa Coluna – foi editada a Súmula Vinculante n. 60, com o seguinte teor:

O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática de repercussão geral (RE 1.366.243).

Nos caminhos e descaminhos da judicialização da saúde pública, é digno de encômios a atuação e direcionamento do Supremo Tribunal Federal e, em particular, do Min. Gilmar Mendes e de seu Gabinete, em tema deveras complexo, que atinge o federalismo brasileiro, a política pública de saúde e os direitos fundamentais.

Como salientado, o julgamento tem alcance transversal e multidisciplinar, em diversas áreas do sistema jurídico, administrativo e jurisdicional, além dos entes e órgãos da Federação. As próximas Partes da análise desse julgamento histórico serão, a tempo e modo, publicadas nesta Coluna.

Foi, por fim, o “possível em si”, aquilo que melhor se alcançou no mundo possível[vi] da interação federativa-jurisdicional, no âmago de uma governança judicial colaborativa da Suprema Corte e sua sensibilidade institucional.

 

Notas e referências:

[i] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/judicializacao-da-saude-publica-por-weber-luiz-de-oliveira .

[ii] A categoria “possível em si”, guardadas as devidas comparações e limitações desse singelo texto, é extraída da obra de Gottfried Wilhelm Leibniz, Ensaios de Teodiceia, trad. Tessa Moura Lacerda e Celi Hirata, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2023.

[iii] Flávia Dreher de Araújo é Mestra em Ciência Jurídica, tendo pesquisado, conforme o título de sua dissertação, a “Judicialização do Direito à Saúde e a (Não) Responsabilidade Solidária dos Entes Federativos da República Federativa Do Brasil”.

[iv] Disponível em: https://justica-em-numeros.cnj.jus.br/painel-saude/ . Acesso em 20 set. 2024.

[v] “A Comissão Especial, como método autocompositivo, no âmbito desta Corte, nos autos deste RE 1.366.243, propiciou a abertura de manifestação dos seguintes Entes ou Órgãos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios: (i) 12 (doze) membros representando a União, indicados pela Presidência da República/Ministério da Saúde e pela Advocacia-Geral da União, além de membros indicados pelo Fundo Nacional de Saúde, pelo Conselho Nacional de Saúde, pela Conitec e pela Anvisa; (ii) 6 (seis) membros representando os Estados e Distrito Federal; e (iii) 6 (seis) membros, representando a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) e a Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM)” (p. 7 do voto do Min. Relator).

[vi] “Portanto, um mundo possível não é um mundo que coexista ao lado do mundo atual ou, eventualmente ao lado de outros mundos, também eles possíveis. Não é, assim, uma realidade estranha que podemos descobrir, uma realidade que está aí para que possamos encontrar de algum modo e, que possui existência autônoma independente do conhecimento que ela possamos ter. Um mundo possível não possui realidade ontológica. Um mundo possível é um instrumento de análise, um operador de relatividade, é uma forma de se pensar em situações contrafactuais, diferentes do mundo atual, que é um mundo possível entre muitos outros. Um mundo possível é um curso completo alternativo de acontecimentos passados, presentes e futuros. Ele não corresponde a uma entidade, mas é algo que se estipula. Mundos possíveis são estipulados, não descobertos. Ao estipular o que poderia ter acontecido numa certa situação contrafactual estamos falando acerca do que teria acontecido se tal situação ocorresse. Um mundo possível significa, então, a configuração de uma história possível do mundo, de uma sequência determinada” (CARVALHO, Jairo Dias. As figuras da possibilidade e a gênese do conceito de mundo possíveis, In, Theoria – Revista Eletrônica de Filosofia, n. 4/2010, p. 73. Disponível em: http://www.theoria.com.br/edicao0410/as_figuras_da_possibilidade_e_agenese_do_conceito_de_mundos.pdf . Acesso em 20 set. 2024).

 

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