Ocorreu nessa semana, na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, audiência pública sobre a judicialização da saúde.
Tendo como pressupostos a pluralização das ideias, a possibilidade de ser ouvido e o respeito das divergências, as audiências públicas são um mecanismo do sistema democrático brasileiro que pode trazer frutos se o que restou exposto e debatido for concretizado em ações efetivas.
Presentes estavam representantes da sociedade civil, dos poderes legislativo, judiciário e executivo, da advocacia privada e pública, do Ministério Público estadual, da Defensoria Pública estadual e do Conselho Regional de Medicina.
Diversas são as formas de ver e de entender o fenômeno da judicialização da saúde, todos expostos pelos participantes.
Do quanto expus em referida solenidade, ciente da complexidade da questão, brevemente destaco alguns pontos que entendo pertinentes sobre tal temática e os problemas institucionais advindos dela.
Para combater problemas macros necessário localizar quais as suas causas principais, que reputo serem duas:
Primeira: universalização dos direitos.
Segunda: acesso à justiça.
Em relação à primeira causa, a judicialização da saúde é hodiernamente exacerbada em decorrência de se entender o direito à saúde como direito fundamental absoluto e, por consectário, impõe-se que sejam tomadas medidas para sua efetividade. Se os poderes executivos, em todos os seus níveis, não o fazem, resta socorrer-se a quem o possa.
Aqui entre a segunda principal causa da judicialização, o amplo e irrestrito acesso à justiça, constitucionalizado no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Contudo, a jurisdição deve amparar o direito objetivo quando existente correspondente direito subjetivo.
Sendo assim, há, constitucionalmente, direito subjetivo de toda e qualquer pessoa de implementar seu direito à saúde pelas vias judiciais em detrimento das vias administrativas e legislativas?
A Constituição Federal, data vênia, parece responder negativamente quando disciplina que, conquanto a saúde seja direito de todos, é um direito garantido “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação”, a teor do art. 196.
Acesso universal e igualitário interliga àquela primeira grande causa da judicialização da saúde com a segunda. Vale dizer, a concessão de medicamentos/insumos/procedimentos somente podem ser determinados por decisão judicial se puderem ser universalizáveis a todos e a qualquer um, como se impõe que seja uma política pública, e não privada ou de poucos, em desrespeito à coletividade.
O acesso à justiça é incondicionado, mas o seu exercício tem condições tanto processuais, quanto materiais, atreladas ao direito alegado. Inexistindo o preenchimento de tais condições, inexistente o direito pleiteado.
Causas anexas, mas não principais, às duas destacadas podem igualmente ser debatidas, como a tentativa de definir critérios para a concessão judicial de medicamentos, nos termos do primeiro Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que definiu a seguinte tese:
1.1 Para a concessão judicial de remédio ou tratamento constante do rol do SUS, devem ser conjugados os seguintes requisitos: (1) a necessidade do fármaco perseguido e adequação à enfermidade apresentada, atestada por médico; (2) a demonstração, por qualquer modo, de impossibilidade ou empecilho à obtenção pela via administrativa (Tema 350 do STF). 1.2 Para a concessão judicial de fármaco ou procedimento não padronizado pelo SUS, são requisitos imprescindíveis: (1) a efetiva demonstração de hipossuficiência financeira; (2) ausência de política pública destinada à enfermidade em questão ou sua ineficiência, somada à prova da necessidade do fármaco buscado por todos os meios, inclusive mediante perícia médica; (3) nas demandas voltadas aos cuidados elementares à saúde e à vida, ligando-se à noção de dignidade humana (mínimo existencial), dispensam-se outras digressões; (4) nas demandas claramente voltadas à concretização do máximo desejável, faz-se necessária a aplicação da metodologia da ponderação dos valores jusfundamentais, sopesando-se eventual colisão de princípios antagônicos (proporcionalidade em sentido estrito) e circunstâncias fáticas do caso concreto (necessidade e adequação), além da cláusula da reserva do possível (Processo n. 0302355- 11.2014.8.24.0054).
Bem se vê que, daqui a não muito tempo, será necessário um IRDR do IRDR, considerando a vagueza de muitos dos termos dispostos.
A audiência pública também demonstrou, por números da Secretaria de Estado da Saúde, que um instrumento processual, o sequestro de verbas públicas, está retirando expressivo valor dos cofres públicos estaduais, não obstante tal medida, data vênia a quem entende diferente, ser inconstitucional.
Veja-se que a maioria dos sequestros se dá nas contas do ente público estadual, mesmo quando o ente federal está no polo passivo da demanda. Ou seja, os próprios juízes federais, que deveriam zelar por uma igualdade de tratamento das partes, impõe um tratamento diferenciado e oneroso a apenas uma das partes, não obstante ser a União o ente que detém todas as competências de tributação sobre a seguridade social.
É notório, ademais, que a repartição dessas receitas tributárias não se dá de forma a custear os gastos com a judicialização da saúde.
Outro ponto digno de nota é que o maior custo com a aquisição de medicamentos é no tratamento de doenças oncológicas, de competência, igualmente, da União, por ser procedimento de alta complexidade. Contudo, os processos são, em sua grande maioria, propostos contra o ente estatal e os municipais, o que, conforme noticiado pela Defensoria Pública do Estado de Santa, pode ser modificado por convênio em estudo com a Defensoria Pública da União.
Situação que tinha solução pelo chamamento ao processo da União, que fazia com que os autos do processo fossem remetidos à justiça federal, nos termos do enunciado da súmula 23 do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, restou coibida, em razão do cancelamento da súmula[1], infelizmente, por um entendimento equivocado do Supremo Tribunal Federal. A conta da judicialização, até então, era repartida.
A concessão de medicamentos/insumos/procedimentos sem critérios técnicos denotam outra causa secundária da judicialização da saúde, havendo, atualmente, busca de soluções que possam instrumentalizar e subsidiar o juiz em sua tomada de decisão.
Em contraponto, está o direito das pessoas e da sociedade organizada de, mediante o acesso à justiça, pressionar os poderes públicos constituídos para que saiam de eventual inércia, demonstrando por processos judiciais que a política pública existente não mais atende aos seus objetivos, de um tratamento eficiente, o que impõe a revisão dos protocolos clínicos e das listas existentes de dispensação de medicamentos, insumos e procedimentos.
A democratização da discussão sobre a judicialização da saúde no âmbito do Parlamento, como destacado pelo representante da Ordem dos Advogados do Brasil, demonstra que se está diante de um problema republicano, pois envolve todos os poderes constituídos e a sociedade.
Sua solução, se é que existente, perpassa pela tomada de posição e discussões de todos os envolvidos.
[1] “Súmula n. 23: Nas ações aforadas em desfavor do Estado e/ou dos Municípios para obtenção de medicamentos, afigura-se plausível o pedido de chamamento ao processo da União Federal pelos coobrigados, o que torna, de rigor, a remessa do feito à Justiça Federal, órgão jurisdicional competente para apreciação do incidente processual. O posicionamento do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 607.381, impõe que "o chamamento ao processo da União pelo Estado de Santa Catarina revela-se medida meramente protelatória que não traz nenhuma utilidade ao processo, além de atrasar a resolução do feito, revelando-se meio inconstitucional para evitar o acesso aos remédios necessários para o restabelecimento da saúde." Desse modo, ante a absoluta incompatibilidade do enunciado n. 23 deste Tribunal com o atual entendimento jurisprudencial sobre o chamamento da União ao processo em que paciente pleiteia fornecimento de medicamento, tornou-se imperativa a revogação do verbete sumular”. Disponível em: https://www.tjsc.jus.br/web/jurisprudencia/sumulas#/fw3-accordion_56_INSTANCE_N2nkCq8C2sRJ_collapse-5. Acesso em 27.10.2017.
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