Há mais coisas entre os autos processuais e a decisão do que supõe a vossa vã Filosofia da Consciência

14/06/2015

 Por Alexandre Morais da Rosa e Giseli Caroline Tobler - 14/06/2015

Nas semanas anteriores demonstramos que a decisão judicial padrão, herdada do imaginário moderno da subsunção, não se sustenta, bem assim que as limitações cognitivas precisam ser consideradas por qualquer teoria da decisão que não queira deslizar no imaginário (aqui).

Por isso a importância, sem desconsiderar outros campos, de sublinhar as contribuições da Psicologia Cognitiva na compreensão da maneira como as informações do ambiente são processadas por nosso cérebro, isto é, problematizar o modo como pensamos, percebemos e lembramos.

Superada a noção ingênua de Verdade Real (Salah Khaled Jr), neutralidade, objetividade e da decisão matemática, consoante afirma Bernardo Montalvão Azevêdo[1], precisamos ampliar os horizontes, sem cairmos em realismo jurídico selvagem. E é nesta certeza que a ideia de verdade se intensifica como pressuposto da fundamentação judicial, cujo mantra embala os sonhos de segurança jurídica (Vera Regina Andrade, na resenha de Camila Prando). Logo, diz Bernardo Azevêdo: "Eis o ato de decisão judicial delimitado pelos marcos característicos da modernidade: um ato em busca de certeza, compulsivo pela segurança, paranoico pela verdade, traumatizado pela dúvida e, estrategicamente procedimentalizado, de sorte a encobrir as ideologias que lhe são subliminares".[2]

O senso comum teórico (Warat) igualmente traz como inferência uma ideia de segurança apoiada na racionalidade do Legislador que age e pensa segundo um sistema coerente e preciso, alicerçado em um Direito Penal isento de lacunas e contradições. A garantia ocorre mediante a aplicação do Direito pelo julgador neutro e imparcial que se restringe a incidir o Direito aos fatos que estão nos autos processuais. Assim, fácil e alienado. A busca da verdade, neste contexto, é sobreposta ao caráter humano do julgador, inserindo-se matreiramente, não raro, funções de Defesa Social.[3]

Entretanto, o julgador supõe estar decidindo apoiado na totalidade de informações do caso, quando na realidade seu julgamento é conduzido unicamente por fatos conhecidos que se apresentam de maneira mais compreensíveis e menos abstratos, conforme mostramos nas semanas anteriores. As demais informações, mormente, as mais complexas e incertas, são superestimadas e preteridas, persistindo apenas uma certeza mitigada ou, em outras palavras, uma racionalidade que se contenta com o semblante do que afirma estar nos autos e comprovado. Há um “gap” na maneira de compreender o modo como compreendemos.

Desde o platonismo, atravessando a Filosofia da Consciência, tão bem criticada por Lenio Streck, a busca da verdade sempre esteve vinculada ao modo como o magistrado interpreta e conhece o mundo a partir de uma plêiade de informações, cuja aquisição não é problematizada. Desta forma, a “consciência”, isto é, a compreensão de um fato a partir de um juízo pré-esclarecido se torna mecanismo de legitimação dos julgamentos pelo lugar e vontade (decisionismo), tendo o mundo reduzido aos autos (objetificado).

A epistemologia da modernidade perde seu objeto no momento em que analisa a decisão judicial unicamente sob o enfoque destes argumentos conscientes e dualistas, próprios da metafísica. Embora não seja possível responder plenamente "sobre como se constrói a decisão penal"[4] é certo que apenas elementos racionais não comportam a totalidade da resposta. As decisões penais antes resultam de uma serie de condicionantes de índole cultural, ideológica, midiática ou mesmo pelo inconsciente, dentre outros, naquilo que se denominou de bricolagem.[5]

A hermenêutica jurídica do senso comum teórico dos juristas conservando as premissas da Filosofia da Consciência, mantém esse conforto proporcionado pela metafísica, na linha da "interpretação autêntica"[6]. A decisão se torna "mero ato lógico, desprovido de inserção no 'mundo da vida', sempre em busca da ilusória 'verdade real' [...] com fins nem sempre confessáveis".[7]

O que não está nos autos não está no mundo é o mantra que aparentemente reduz a complexidade e desconsidera as vicissitudes da percepção do mundo da vida. Parafraseando Hamlet: Há mais coisas entre os autos processuais e a decisão do que supõe a vossa vã Filosofia da Consciência.

Ficou pensativo? Até domingo próximo.


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Referências:

[1] AZEVÊDO, Bernardo Montalvão Varjão de. O Ato de Decisão Judicial: uma irracionalidade disfarçada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.39.

[2] AZEVÊDO, 2011, p.40.

[3] CUNHA, Rosa Maria Cardoso da. O Caráter Retórico do Princípio da Legalidade. Porto Alegre: Síntese, 1979. p.118.

[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 383.

[5] MORAIS DA ROSA, 2006, p.384

[6] MORAIS DA ROSA, 2006, p.170.

[7] MORAIS DA ROSA, 2006, p.384.


Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui     


. Giseli Caroline Tobler é Acadêmica de Direito da UFSC.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              


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