Entre o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária e a Constituição Federal: alguma coisa está fora da ordem?

24/01/2015

A Lei nº. 13.254/16 dispõe sobre o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no País.

Há várias questões a serem analisadas no novo texto normativo, especialmente em matéria de Direito Penal. Agora, porém, vamos analisar uma questão de natureza processual/constitucional.

caput do § 5º. do art. 1º. impede a inclusão no referido Regime Especial daqueles que tiverem sido condenados em ação penal, sem especificar expressamente se condenados definitivamente (por sentença transitado em julgado) ou não.

Aparentemente, a resposta seria categórica no sentido da necessidade do trânsito em julgado da sentença condenatória, a impedir o benefício, em virtude do Princípio da Presunção de Inocência.

Nada obstante, é possível que dúvidas surjam, especialmente hoje quando tantos são os que fazem tábula rasa dos princípios constitucionais no processo penal, em razão do veto presidencial ao inciso I do § 5º. do art. 1º. que, expressamente, previa que o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária não se aplicaria aos sujeitos que tivessem sido condenados em ação penal com decisão transitada em julgado.

O dispositivo foi vetado, pois impediria “que pessoas penalmente condenadas pelos crimes previstos no Projeto possam aderir ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária – RERCT.

Obviamente, melhor seria não tivesse sido vetado este inciso, até porque se costuma por aqui dar mais valor jurídico a um mero inciso de lei do que a um princípio constitucional. É um método hermenêutico todo particular entre nós…

De toda maneira, à falta da previsão expressa, temos uma disposição constitucional (art. 5º, LVII) que autoriza interpretar este parágrafo da seguinte maneira: só estão impedidos de inclusão no Regime Especial os condenados por sentença transitada em julgado. Toda e qualquer outra interpretação está desautorizada pela Constituição Federal e pelos Pactos Internacionais subscritos pelo Brasil.

Este dispositivo deve ser interpretado conforme o texto constitucional, mesmo porque, como afirma Lothar Kuhlen, “la interpretación conforme la Constitución pertenece hoy, como ´instrumento totalmente indiscutible`, a las ´reservas seguras del método de la ciencia jurídica`. (…) Uma norma há de ser interpretada conforme a la Constitución cuando existen varias posibilidades interpretativas de las cuales por lo menos una conduce a la conformidad de la norma a la Constitución, y por lo menos outra, a la inconstitucionalidad de la norma.”[1]

Não se pode pretender que, antes de uma sentença transitada em julgado, alguém seja impedido de gozar de um benefício legal em razão da suposta prática de um crime, pois, do contrário, fere-se o referido princípio, bem explicitado por Aury Lopes Jr., como “um princípio fundamental de civilidade, fruto de uma opção protetora do indivíduo, ainda que para isso tenha-se que pagar o preço da impunidade de algum culpável, pois sem dúvida o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção, estejam protegidos”.[2]

Como acima assinalado, interpretam-se as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! A Constituição Federal “não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos.”[3]

Ademais, como assinala Ferrajoli, “solamente con la introducción de las garantías de la rigidez de las constituciones cambia la estructura de los sistemas jurídicos. Naturalmente el cambio se debe no solamente a factores institucionales, sino también, y quizás sobre todo, a factores culturales.”[4]

Ainda refletindo sobre a vedação contida no § 5º. do art. 1º, uma vez se orientando pela interpretação normativa de que o impedimento somente alcança condenados definitivos com decisão transitada em julgado, cabe ainda questionar se tal solução está em plena conformidade com os princípios penais constitucionais.

Como cediço, a coisa julgada em matéria processual penal deve ser interpretada em conformidade com as particularidades que o princípio da anterioridade guarda neste ramo do Direito. Isto porque a constituição Federal disciplina, em seu art. 5º, inciso XL, que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Note-se que, do mencionado dispositivo constitucional, extraem-se dois princípios reitores da aplicação da norma penal, são eles a irretroatividade da lei penal gravosa, e a retroatividade da nova lei benéfica. Concordamos aqui com a observação de Andrei Zenkner Schmidt, quando adverte que “a retroatividade da lei benéfica não é uma exceção à  irretroatividade da lei prejudicial”[5] e conclui “trata-se de duas regras distintas para o tratamento da sucessão de leis penais no tempo”[6].

A compreensão da retroatividade benéfica como regra autônoma, e não como mera exceção à irretroatividade gravosa, pode parecer, para muitos, questão terminológica de menor relevância. Tal compreensão, todavia, traduz um posicionamento hermenêutico diante da interpretação dos princípios e garantias fundamentais, especialmente no sentido de compreendê-los num sentido ampliativo e seguro, sem que se dê espaço para flexibilizações e relativizações – infelizmente hoje tão comuns.

Desta maneira, compreendendo a retroatividade da novatio legis in mellius como uma determinação constitucional, há que se notar, também, a inexistência de quaisquer ressalvas à sua eficácia normativa. Significa dizer que não se admite norma infraconstitucional alguma criar exceção à sua incidência, o que representaria ofensa frontal à legalidade penal.

Seguindo, mais uma vez, os ensinamentos de Luigi Ferrajoli, podemos afirmar que “a irretroatividade das leis penais é um corolário do princípio de mera legalidade, cuja formulação completa é nulla poena, nullum crimen sine praevia legi poenali[7].

Portanto, não há respeito à legalidade se esta não estiver, logicamente, vinculada à anterioridade penal, atentando-se para o fato de que, em matéria penal, o respeito à anterioridade impõe, a um só tempo, a impossibilidade de uma nova lei gravosa alcançar fatos passados e a imposição do alcance de fatos já julgados quando a nova lei introduzir benefício ao agente – ainda que este já tenha sido condenado por decisão transitada em julgado.

Por tal razão, a vedação contida no art. 1º, § 5º, da nova lei não encontra sustentação quando confrontada com o art. 5º, inciso XL, da Lei Maior, uma vez que inova pela introdução de novatio legis benéfica irretroativa.

Observa-se aqui um dos exemplos denunciados por Alexandre Bizzotto de inversão ideológica do discurso garantista, traduzida na ignorância ou aplicação superficial do modelo garantista, ocasião em que “a formação de esboços de resistência constitucional precisa ser fomentada e  desenvolvida perante a atividade jurisdicional para que os parâmetros preestabelecidos pelas regras infraconstitucionais do processo penal (anteriores e posteriores à Constituição Federal) sejam substituídos pela ‘consolidação de uma cultura democrática’[8], com a construção de vetores constitucionais para o processo penal”[9].

Com isso, podemos concluir que os benefícios introduzidos pela Lei nº 13.254/16 não podem ser vedados seja a condenados em primeiro grau, seja a condenados definitivos, cabendo, neste último caso, a aplicação retroativa por meio do Juízo das Execuções, como esclarece o enunciado nº 611 da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal.


Notas e Referências:    

[1] KUHLEN, Lothar. La interpretación conforme a la Constitución de las leyes penales. Madrid: Marcial Pons, 2012, págs. 23 e 24.

[2] LOPES JR., Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 5.

[3] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Epistemología Jurídica y Garantismo. México: Fontamara, 2004, p. 258.

[5] SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 231.

[6] Id. Ibd. loc. cit.

[7] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do Garantismo Penal. 4. ed. Trad. Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 351.

[8] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais, p. 41 apud BIZZOTTO, Alexandre. A inversão ideológica do discurso garantista: a subversão da finalidade das normas constitucionais de conteúdo limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 149-150.

[9] BIZZOTTO, Alexandre. op. cit. loc. cit.


 

Daniela Portugal.
Daniela Portugal é Advogada criminalista. Mestre e Doutora em Direito Penal pela Universidade Federal da Bahia. Professora da Universidade Federal da Bahia, da Escola de Magistrados da Bahia e da Faculdade Baiana de Direito.
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Rômulo Moreira

Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.

 


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