Então, faremos um Juízo de Garantias!

31/01/2020

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Antes de quaisquer abordagens, vale a ressalva ao artigo publicado anteriormente nessa Coluna, quando o Professor José de Assis Santiago Neto apresenta uma breve exposição acerca da importância das inovações realizadas pela Lei nº 13.964/2019 – ora, denominado como projeto anticrime[1]; que em verdade, fez jus ao termo – ironicamente, pois nosso processo penal não será mais um crime contra o Estado Democrático de Direito –, isso é, quando o Juiz de Garantias for realmente efetivado!

Embora alguns falem em sepultamento de décadas de lutas –, não trabalharemos dessa forma. Pois, a luta encontra-se em seu auge, e neste momento –, não nos rendemos! Afinal, a decisão monocrática realizada na ADI 6.299 – contrária o próprio Plenário, nos termos da ADI 5.240[2]. Portanto, já demonstra totalmente incoerência da respectiva decisão, e por razões lógicas –, diga-se constitucionais, voltadas ao âmbito do processo penal –, decairá se a metáfora da Vênus de Milo fizer algum sentido.

O que já deveria ter feito sentido a tempos –, precisamente em 2010. Porém, nessa oportunidade, o Conselho Nacional de Justiça concluiu que o Juízo de Garantias era “incompatível” com a estrutura apresentada no País –, o que é preocupante[3]. Haja vista, que alguns desses argumentos elencados na época, estão também na suspensão liminar realizada pelo Ministro Luís Fux[4], demonstrando o tamanho do ranço inquisitivo no processo penal brasileiro, além – com a data vênia, a incompreensão dos analfabetos institucionais que não conseguem –, ou não querem distinguir as incoerências das teorias civilistas aplicadas no âmbito do processo criminal.

A partir dessas premissas, em tempos de fastfood processual[5] –, devemos desenhar no que consiste o Juízo de Garantias; eis que, visa potencializar a participação das Partes na construção do provimento. Sendo assim, o Juiz nessa concepção supera sua obsessão pela busca da verdade real –, pois veda a produção de provas por parte daquele que deve(ria) ser imparcial.

Como bem ressaltado pelo Professor dos Professores, assim conhecido –, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “o sério problema que surge – com certo ar de naturalidade – é que esse mesmo órgão jurisdicional que investiga e produz provas vai, depois, julgar, ou seja, acertar o caso penal[6]. O que atualmente é possível –, graças a origem do Código de Processo Penal de 1941 –, uma cópia do Código Rocco fascista de Vincenzo Manzini na Itália em 1930.

A paranoia da verdade real, dá origem a uma ampla atuação probatória –, ou melhor, uma forma de criação probatória para justificar o “primado das hipóteses dos fatos”; o que, não é algo excepcional ao Sistema Inquisitório; e não porque são Juízes, mas porque são humanos –, e todos possuem isso; a diferença que a decisão destes humanos, implicam em anos de liberdade de outros humanos. E por assim ser, nas concepções de Franco Cordeiro, ora demonstrada por Jacinto Coutinho, “tendem a prevalecer as hipóteses assumidas sobre os fatos e, com liberdade, o juiz orienta o êxito para onde quiser”[7].

Indaga-se, e quantas vezes não estivemos errados?!

Verifica-se que Cordeiro fala-se em “quadros mentais paranoicos”; o que, é natural em seres humanos. Afinal, a neurociência já ensina –, que quando as emoções dominam a concentração, toda memoria funcional é prejudicada, e por consequência –, afeta os circuitos límbicos que convergem no córtex pré-frontal. Isso faz, com que não conseguimos pensar direito[8].

Por estas razões, Chiovenda já considerava a preexistência dos diretos subjetivos no processo –, através das Partes. Acerca das contribuições do autor, somente essa será importante no decorrer da ciência processual –, como ressalta Flaviane de Magalhães Barros Pellegrini. E conclui ao final que –, para compreensão do sistema acusatório, tem-se o impedimento de uma simples transposição de conceitos estruturados nas teorias relacionistas[9].

Portanto, a contribuição de Chiovenda consiste naquilo que hoje denominamos de QE (emoções) –, ora denominados por alguns doutrinadores como impulsos sensíveis –, ora controlável através do QI (razão).

Afinal, Erasmo de Rotterdam já trabalhava os institutos em tom de sátira no século XVI, in verbis:

Júpider legou muito mais paixão que razão – pode-se calcular a proporção em 24 por um. Pôs duas tiranas furiosas em oposição ao solitário poder da Razão: a ira e a luxuria. Até onde a Razão prevalece contra as forças combinadas das duas, a vida do homem comum deixa bastante claro. A Razão faz a única coisa que pode e berra até ficar rouca, repetindo fórmulas de virtude, enquanto as outras duas a mandam para o diabo que o carregue, e tomam-se cada vez mais ruidosas e insultantes, até que por fim sua Governante se exaure, desiste e rende-se[10].

Porém, qual a importância dessa compreensão para esse artigo? Simples, aquilo que já foi retratado nessa coluna –, pelo colega Leonardo Monteiro Rodrigues ao alertar sobre o Esquadrão Suicida[11] que é aplaudido devido ao medo e a insegurança sentida –, ora características da Sociedades do Risco[12], e que certamente – é agravada no Brasil –, País mais ansioso do mundo, segundo a OMS[13].

Esse medo –, ocasionado pela insegurança sentida, faz com que Juízes temam o aumento criminalidade –, “no País da impunidade”, que por coincidência tem terceira maior população carcerária do Mundo. Cômico, se não fosse trágico! Além disso, o mesmo discurso leva o Judiciário a se emocionar, ouvindo as vozes da rua, como já também retratado nessa Coluna pela colega Monique Pena Kelles[14].

São as consequências elencas por Goleman, quando as emoções influenciam a tomada de decisões –, desiquilibram a coordenação entre as duas mentes (QE e QI). Portanto, aqueles que justificam a “Lei e a Ordem”, acreditam de boa-fé que estão fazendo o certo; todavia, não sabem justificar –, ou melhor, fundamentar suas respostas. Há não ser, pelo medo.

Nessa pegada, imperioso destacar o Promotor de Justiça, Harvey Dent em “Batman: O Cavalheiro das Trevas”, quando ressalta em diálogo informal com Bruce Wayne (Batman): “ou você morre herói, ou vive-se o bastante para ver você mesmo se tornar vilão”. Portanto, cuidado super-heróis brasileiros! Como já alertou Ministro Marco Aurélio no RExt nº 603.616/RO –, que de bem-intencionados o Brasil está cheio[15].

E de todas essas intenções, destaca-se o Juízo de Garantias –, feitos por quem – será o verdadeiro Juízo de Garantias –, os 43 Magistrados gaúchos que compreendem a necessidade dessa evolução –, e reconhecem a ‘imparcialidade’[16]. Objeto do estudo aqui já apresentado. Tendo em vista, que o próprio Magistrado tem ressentimento ao ter decretado a prisão de um homem por anos, e depois –, o próprio absolvê-lo? O que ele faria? Pediria desculpas?

O que você faria? Afinal, o que mais se vê –, são embargos declaratórios mantidos pelos “seus” próprios fundamentos. Ou, pelo primado das hipóteses dos fatos –, ainda que a contradição seja nítida.

Por isso, digno – a atitude dos Magistrados gaúchos, pois, reconhecem em si –, a própria essência da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III).

Isto é, reconhecem suas limitações como seres racionais, o que consiste na necessidade da origem do processo – que é abolir toda pré-compreensão do fato ali avaliado –, havendo uma suspensão do Juízo. Assim, restará satisfeito o sentido de “Justiça” –, quando as partes atuarem com paridade de armas; mas não, com um Juiz que faça gol para acusação, como diria Alexandre de Moraes da Rosa, outro Magistrado digno de admiração.

Os ilustres Magistrados deram sentido ao que Rui Cunha Martins chama de levantar a bandeira da democraticidade[17], abrem a caixa de pandora relacionada as emoções humanas, e suas implicações no âmbito do processo penal –, não deixando que medo tome conta de suas decisões em relação ao Juízo de Garantias em si mesmo, em perfeito equilíbrio entre o QE e o QI, como ressalta Daniel Goleman[18]. E isso não vem de hoje, afinal –, nas concepções dos Professores dos Professores, o Juízo de Garantias que aqui fazemos não se trata apenas em relação aos Magistrados, mas porque estes – são humanos, e possuem o simples modo de pensar (por sinal, de toda civilização ocidental)[19].

 

Notas e Referências

[1] SANTIAGO NETO, José de Assis. A Implementação do Juízo de Garantias e a Potencialização do Contraditório no Processo Penal: primeiras reflexões após a publicação da lei 13.964/2019. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-implementacao-do-juizo-das-garantias-e-a-potencializacao-do-contraditorio-no-processo-penal-primeiras-reflexoes-apos-a-publicacao-da-lei-13-964-2019. Publicado em 10.01.2020. Acesso em 14.01.2020.

[2] LOPES JR. Aury. ROSA. Alexandre Morais. A liminar de Luiz Fux (ADI 6.299) revogou decisão do Plenário (ADI 5.240)?. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-24/limite-penal-liminar-ministro-fux-revogou-decisao-plenario. Publicado em 24.01.2020. Acesso em 24.01.2020.

[3] BARBIÉRI, Luiz Felipe. TORRES, Heloísa. Estudo do CNJ de 2010 concluiu que juiz de garantias era 'incompatível' com estrutura da Justiça. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/11/estudo-do-cnj-de-2010-concluiu-que-juiz-de-garantias-era-incompativel-com-estrutura-da-justica.ghtml. Publicado em 11.01.2020. Acesso em 14.01.2020.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6298.pdf. Publicado em: 22.01.2020. Acesso em 26.01.2020.

[5] Leia a McDonaldização do Processo Penal e analfabetos funcionais por Alexandre Moraes da Rosa. Publicado em 19.10.2013. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2013-out-19/diario-classe-mcdonaldizacao-processo-penal-analfabetos-funcionais. Acesso em 26.01.2020.

[6] COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/46/183/ril_v46_n183_p103.pdf. Publicado em set. de 2009. Acesso em 26.01.2020.

[7] Idem.

[8] GOLEMAN. Daniel. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser inteligente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 102.

[9] PELLEGRINE. Flaviane de Magalhães Barros. O Processo, a Jurisdição e a Ação sob a ótica de Elio Fazzalari. Texto disponível na Unidade 03 da matéria “Teoria Geral do Processo Penal”, ministrada pela Professora Aline Nahass no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais em 2018-2019.

[10] Apud GOLEMAN. Daniel. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser inteligente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 35.

[11] RODRIGUES. Leonardo Monteiro. A delação premiada e o esquadrão suicida. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-delacao-premiada-e-o-esquadrao-suicida. Publicado em: 09.05.2019. Acesso em 26.01.2020.

[12] Conteúdo das aulas da matéria de Crimes Econômicos ministrada pela Professora Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues da pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais.

[13] ________________. Brasil é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS. Disponível em: https://exame.abril.com.br/ciencia/brasil-e-o-pais-mais-ansioso-do-mundo-segundo-a-oms/. Publicado em 05.06.2019. Acesso em 26.01.2020.

[14] KELLES.

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=3774503&numeroProcesso=603616&classeProcesso=RE&numeroTema=280#. Publicado em 10.05.2016. Acesso em 26.01.2020.

[16] VALENTE, Rubens. Manifesto de magistrados federais cita 'imparcialidade' e defende juiz das garantias. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/manifesto-de-magistrados-federais-cita-imparcialidade-e-defende-juiz-das-garantias.shtml. Publicado em 03.01.2020. Acesso em 14.01.2020.

[17] MARTINS, Rui Cunha. O mapeamento processual da "verdade". In: PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas; CUNHA MARTINS, Rui; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Decisão judicial: a cultura jurídica brasileiro na transição para a democracia. Madrid: Marcial Pons, 2012. Disponível em: http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=99710. Acesso em: 29 set. 2019. p. 71-85. Disponível em: http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=99746. Acesso em: 29 set. 2019, destaques do original.

[18] GOLEMAN. Daniel. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que define o que é ser inteligente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p. 102.

[19] COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/46/183/ril_v46_n183_p103.pdf. Publicado em set. de 2009. Acesso em 26.01.2020.

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