A delação premiada e o Esquadrão Suicida.  

09/05/2019

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

Até que ponto estamos dispostos a abrir mão de garantias? Vale pagar qualquer preço para suposta proteção de bens jurídicos? O famigerado argumento de que vivemos num país da impunidade, justificaria a utilização de instrumentos de coerção como a delação premiada? Prender, provisoriamente, para induzir uma delação não seria uma forma de tortura psicológica? Afinal, vale tudo para tentar acabar com a criminalidade?

E se para salvar o mundo tivéssemos que pedir ajuda a nossos maiores vilões? Àqueles que deveriam estar “atrás das grades”? Mas não receber uma permissão para ficar do lado de fora ou ainda ganhar uma redução em sua pena...

Deveríamos lançar mão deste meio?

Exatamente sobre isso trata o filme Esquadrão Suicida. Os piores vilões dos quadrinhos são convocados para eliminar o mal que assola a humanidade.

E mais! O mal criado a partir da própria criação do Esquadrão Suicida. Afinal, para aqueles que assistiram o filme[1], o mal somente surge quando se procura criar um grupo de indivíduos, com extremas habilidades, para proteger a humanidade de um mal que pode surgir.

Saindo da imaginação e indo ao mundo real, vivemos um momento no qual todos que criam uma conta no Facebook se acham capazes de opinar, de forma fundamentada, sobre direito, justiça, constituição e sistema criminal[2]. Sem nunca ler uma doutrina sobre o assunto. Seria o mesmo que, aqueles que não são engenheiros, verem um prédio ser construído e questionar a sua fundação, o cálculo ou seu projeto, ou mesmo assistirem uma cirurgia cardíaca e manifestar a opinião sobre o procedimento em si, sem nunca terem estudado qualquer um desses temas. O “achismo” tem tomado conta do senso comum teórico, para usar a expressão de Lenio Streck.

Nessa toada, misturam a insatisfação política com a “necessidade”, ou não, de se proteger garantias constitucionais. Falam em impeachment sem nunca terem lido a Constituição. Debatem, contra ou a favor, sobre o “crime de responsabilidade” e não sabem o que é crime em seu sentido dogmático. Querem reduzir a maioridade penal, mas não sabem nem que argumento utilizar. Criticam advogados por ainda não terem precisado de um...

Fala-se constantemente em impunidade[3] e na necessidade de combatê-la. Como um país que tem a terceira maior população carcerária do mundo pode ser visto como um país “da impunidade”?

Como um país no qual impera o Estado Democrático(?) de Direito, em que quase metade da população carcerária é de presos provisórios, pode se dizer “país da impunidade”, sendo que o Estado de Inocência é um de seus princípios basilares? Pode ser o país da inconstitucionalidade! Não da impunidade...

Querem que existam mais tornozeleiras, pois existem poucas. Porém, não sabem qual o objetivo e objeto de uso destas. Não sabem sequer que a tornozeleira veio para abrandar as prisões, e não para impedir a liberdade sem tornozeleira, como é feito.

Não se gastará mais do que quatro linhas para lamentar um juiz ser favorável ao uso de provas ILÍCITAS, sob o pretexto de que, “de boa-fé”, pode. Ahn?! Agora tem procuradores, procurando justificar esse posicionamento também... Nem para falar do ativismo supremo!

E ainda temos a delação premiada! Viva!

Como podem instituições que, sob o pretexto de acabar com a impunidade, querem cada vez mais mitigar garantias constitucionais[4]? Utilizam-se de um mecanismo de “colaboração”, para ter indícios de cometimento do crime... Isso se não questionarmos eventual liberdade na delação, afinal, ela não deve ter como delator um sujeito preso, mas sim um livre[5]! Onde haverá espontaneidade ou voluntariedade? E será que a delação, quando o sujeito está preso, é feita de forma penosa, tortuosa[6]?  

Como lembra, sobre a luta pelas garantais constitucionais e a tentativa em reduzi-las, o grande Jacinto Nelson de Miranda Coutinho:

O perigo não é tão evidente, mas reside no fato de que se assumirem tal lugar (trata-se de um engajamento), viram – como diz ALEXANDRE MORAIS DA ROSA – os NICHOLAS MARSHALL de toga, prontos a lutar contra a lavagem de dinheiro, a corrupção, o tráfico de entorpecentes, etc., custe o que custar, nem que para isto direitos e garantias sedimentados e erigidos ao grau de dogma constitucional sejam passados para trás, como se obstáculos – e não conquistas históricas da humanidade – fossem. Agrava-se a situação, como é visível no cotidiano, quando os crimes que se “combatem” têm repercussão, por força dos meios de comunicação[7]. (COUTINHO, 2006, p.76)

O espetáculo da delação premiada cada vez mais incentivado pela mídia e pelos doutores das redes sociais. A exposição do acusado e seus delatores cobre quase que por inteiro os noticiários. E o Estado de Inocência aqui jaz[8]....

A delação tem algo muito em comum com a confissão. A delação, de certa forma é mais ampla, pois além de confessar o próprio crime, delata outros infratores. Sobre a confissão, Sílvia Alves cuidando do Direito Penal Setecentista adverte:

A confissão do acusado é por si insuficiente para a condenação. Presume-se que a confissão é o resultado do desespero e como tal contrária às leis da natureza e da religião, que não deixam aos homens a livre disposição da sua vida e da sua honra[9]. (ALVES, 2014, p. 784).

Mutatis mutandis, o mesmo serve para a delação premiada, e, assim como a confissão já o é, a delação deve ser vista com todas as reservas.

A própria confissão já perdeu seu valor em razão das inúmeras vezes em que foi obtida mediante tortura. Deixou, há muito, de ser a rainha das provas. Assim, percebe-se de pronto, que as bases morais e éticas da delação também farão com que ela não perdure. Ainda mais se for obtida através de decretos de prisão

Interessante notar que os mesmos agentes públicos que buscam as delações, permitem uma transformação, no inconsciente coletivo, dos vilões (delatores) em heróis(?!), pós-delação. E ainda atuam, tais agentes, para que seja diminuída, ou mesmo não aplicada, a pena. Melhor nome, não teria. São o Esquadrão Suicida

Para acabar com a impunidade, cria-se a impunidade[10].

E assim, os bacharéis em direito pela Faculdade do Vale do Facebook, aplaudem, sem perceber que os maiores vilões podem[11] estar saindo impunes.

A vida imita a arte ou arte imita a vida?![12]

 

 

 

Notas e Referências

[1] Sem a intenção de atrapalhar para os que ainda não assistiram.

[2] Neste sentido, seguimos Leandro Karnal. https://www.youtube.com/watch?v=dGrNc3LkcdM

[3] Que escapa ou escapou à punição; que não é ou não foi castigado; impunido. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 4ª ed. Curitiba: Positivo, 2009. P. 1082)

[4] Basta ler o famigerado projeto das 10 medidas contra a corrupção. Naturalmente somos contra qualquer tipo de corrupção, como também somos contra qualquer tipo de mitigação de garantias constitucionais.

http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/#

[5] Nesse sentido o Ministro Sebastião Reis demonstra sua preocupação com o tema em palestra proferida na EMERJ em 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?list=PLN3KoXwOXUoidtokudsF-OqKPqygbpvov&v=ZOhhgGiabcA

[6] Nesse sentido o Ministro Marco Aurélio Mello também revela a mitigação da espontaneidade quando o indivíduo está encarcerado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AELI0oPJjfY

[7] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Acordos de delação premiada e o conteúdo ético mínimo do Estado. Revista Estudos Criminais PUC/RS. Ano VI, nº 22, 2006.

[8] 05 de outubro de 2016, marca o um dos grandes retrocessos do Brasil. Daqui uns anos perguntarão, o que era o Estado de Inocência? Para que servia? Eu vivi num tempo em que as pessoas ainda era presumivelmente inocentes... Não sei em que tempo viverão os que nascerem nas próximas décadas.

[9] ALVES, Sílvia. Punir e Humanizar. O Direito Penal Setecentista. Lisboa; Fundação Calouste Gulbenkian, 2014.

[10] Em todos os dispositivos precitados, a regra comum é uma redução de 1/3 a 2/3 na pena que será futuramente aplicada àquele que delatar (a semelhança com o brocardo “a confissão é a rainha das provas” não é mera coincidência) Veja-se: a redução ou isenção de pena vem de uma decisão judicial; salvaguardada, portanto, das máculas processuais, pois a palavra final sobre o conteúdo do processo ainda cabe ao Judiciário. (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Edward Rocha de. Acordos de delação premiada e o conteúdo ético mínimo do Estado. Revista Estudos Criminais PUC/RS. Ano VI, nº 22, 2006, p. 78).

[11] Diga-se podem pois, apenas por debate, cria-se a hipótese teórica de o serem.

[12] Expressão aqui inserida após debater o presente artigo com o amigo, advogado e professor Leonardo Guimarães Salles, que bem lembrou-me dela.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações

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