A implementação do juízo das garantias e a potencialização do contraditório no Processo Penal: primeiras reflexões após a publicação da lei 13.964/2019

10/01/2020

Coluna Não nos Renderemos / Coordenadores: Daniela Villani Bonaccorsi Rodrigues e Leonardo Monteiro Rodrigues

A publicação da Lei 13.964, em 24 de dezembro de 2019, apelidada de Lei Anticrime, inovou em vários pontos a legislação penal e processual penal brasileira. Inicialmente, deve-se pontuar que não existe lei “anti” nada, a lei é a lei e ponto. Importa apenas a conformidade ou desconformidade da lei com a Constituição. De toda forma, interessa aqui nesse pequeno ensaio refletir, ainda que preliminarmente, sobre a figura do juízo das garantias, inserido no projeto de lei durante sua tramitação pelo Congresso Nacional e que não constava do projeto original do Ministério da Justiça.

Dizer que se deve buscar a efetivação dos direitos constitucionais é chover no molhado, talvez uma forma bonita de não dizer nada que não se saiba ou de não trazer nenhuma novidade na fala. Pois bem, é justamente a implementação de direitos constitucionais que a inserção do Juízo de Garantias visa estabelecer, potencializando-se o contraditório e a construção da decisão em simétrica paridade entre as partes na audiência, estabelecendo local destinado ao debate.

O processo penal não é mera aplicação infraconstitucional ou simplesmente instrumento da jurisdição penal para a aplicação do direito penal. Trata-se de um ramo do direito, e mais especificamente do direito processual, que se coloca como o termômetro entre autoritarismo e democraticidade de uma nação[1], ou o na expressão de Henkel, o processo penal é o direito constitucional aplicado[2]. Dessa forma, é no processo penal que se verifica de forma mais aguda a implementação ou a violação dos direitos fundamentais e se aplica de forma mais incisiva o próprio direito constitucional, verificando-se o grau de autoritarismo ou de democracia de uma nação.

Dessa forma, a implementação dos direitos e garantias fundamentais deve ocupar posição de destaque tanto na elaboração como na aplicação e na interpretação da legislação infraconstitucional. Qualquer operador e aplicador do Direito bem como aqueles que foram eleitos pelo povo, enquanto titular e destinatário de qualquer poder que se pretenda democrático, deve pautar toda sua conduta para a implementação dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição de 1988. É na Constituição e na efetivação dos direitos humanos-constitucionais que se estabelecem os valores máximos que devem ser buscados e efetivados.

O Direito Processual surgiu como ciência autônoma em 1868 com a obra de Bülow que entendia o processo como uma relação jurídica pública e que resgatou a obra do glosador romano Búlgaro para estabelecer o processo como uma relação jurídica entre juiz, autor e réu.[3]  Essa teoria foi desenvolvida no Brasil pelas mãos dos professores Ada Pellegrini Grinover, Cândido Rangel Dinamarco e Antônio Carlos de Araújo Cintra[4], alunos de Liebman em sua estada no Brasil durante a segunda guerra mundial. O desenvolvimento da teoria da relação jurídica estabeleceu o processo como um instrumento da jurisdição aplicar o direito[5]. Essas concepções colocavam na figura do juiz a posição de destaque, sendo ele o principal sujeito processual e colocando as partes em posição de menor importância, uma vez que a aplicação do direito era tarefa do julgador e o processo seu instrumento para tal finalidade.

A citada teoria da relação jurídica exerceu grande influência na construção do direito processual brasileiro, consequentemente, exerceu sua força também na formação do processo penal brasileiro que teve boa parte das reformas do Código de Processo Penal elaboradas pelos autores dessa teoria ou por seus seguidores.

Contudo, com a democratização do país, não mais se poderia conceber a adoção de um modelo que coloque o julgador como superpoderes em relação às partes. Coube a Aroldo Plínio Gonçalves trazer a teoria construída na Itália pelo jurista Elio Fazzalari[6], segundo a qual o processo é procedimento desenvolvido em contraditório para o Brasil[7]. A teoria fazzalariana provocou uma reviravolta na teoria do processo, uma vez que estabeleceu o processo como espécie de procedimento, aquele desenvolvido em contraditório entre as partes, abandonando a ideia anterior de que o procedimento é que seria espécie de processo.

Essa nova ideia de processo como procedimento em contraditório coloca as partes como protagonistas e faz com que o juiz ocupe seu real lugar de garantidor das regras processuais, de modo a estabelecer de forma clara o lugar de cada um na construção da decisão processual. A colocação das partes como protagonistas processuais somente é compatível com o sistema acusatório, sendo impensável em um modelo inquisitório que adota o juiz como protagonista do procedimento[8].

Assim sendo, a teoria do processo como procedimento desenvolvido em contraditório é a que melhor se adequa à efetivação e ao desenvolvimento do contraditório, colocado pela constituição entre os direitos e garantias fundamentais e que, portanto, deve ser implementado e construído em busca de sua potencialização em grau máximo. Nesse contexto, o contraditório não é mais o simples direito à informação e reação, ou o direito de dizer e contradizer como afirmam os adeptos da concepção instrumental do processo, mas na simétrica paridade de armas na construção participada da decisão, como definido por Fazzalari, que deve compreender não apenas a informação e a reação como também a influência e a não surpresa na construção do provimento[9].

Nesse contexto é que se insere a criação do juízo de garantias, estabelecido pela nova legislação processual penal e que provocou uma verdadeira guinada no processo penal pátrio. A nova lei, em sua parte processual, inseriu no Código de Processo Penal várias alterações, porém possui seu eixo de gravidade focado no novo art. 3º-A, que estabelece que o processo penal terá estrutura acusatória. Ao determinar de forma expressa o sistema acusatório, o legislador infraconstitucional não somente buscou se adequar à Constituição, que separou a atividade de julgar, acusar e defender, adotando, ainda que implicitamente, um modelo acusatório.

Ao se determinar a adoção do sistema acusatório a nova legislação modificadora do Código de Processo Penal, se implementada com seriedade e compromisso constitucional, provocará significativo avanço na legislação. Um Código que foi forjado sob a ditadura de Getúlio Vargas do Estado Novo (1937-1945) e serviu a regimes ditatoriais como o regime militar (1964-1985), não serve à democracia, o que nos leva a advogar que apenas a reforma integral poderia trazer efetivos ares democráticos ao processo penal. A reforma perpetrada pela lei 13.964, entretanto, deu um passo significativo no sentido do sistema acusatório e deve trazer a luz da Constituição ao Código de Processo Penal. Contudo, a mera mudança legislativa não é capaz de modificar séculos da forma de se administrar a justiça criminal, mudando abruptamente a forma de trabalho dos operadores do direito[10], é preciso mudar mais que simplesmente a legislação, é imprescindível a adoção de um modelo acusatório mudando a cultura  e a práxis dos operadores do direito, em resumo, é necessário refundar o processo penal[11].

Para melhor compreensão do que se passa com a nova legislação brasileira no que toca à adoção do juízo de garantias, é importante entender como era o modelo original e como ele restou desenhado, sob pena de não se compreender a amplitude da reforma proposta e da efetivação dos direitos fundamentais que ela propõe e que deve ser realizada pelos aplicadores do processo penal.

No modelo anterior, levando-se em conta a determinação da competência pela prevenção (art. 69 e seguintes do CPP), o juiz que primeiro conhecesse do caso penal, ainda na fase de inquérito seria o responsável pelo julgamento. Ou seja, um só juiz determinava as medidas reservadas pela Constituição à jurisdição (cláusulas de reserva de jurisdição) durante a investigação, determinando quebras de sigilo, interceptações telefônicas, prisões temporárias ou preventivas, e, ele mesmo recebesse a denúncia, instruísse e julgasse o caso. Isso fazia com que o juiz formasse seu convencimento ainda na fase inquisitorial, lembremos que os requisitos de prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria estão presentes em todas as decisões citadas e, o juízo condenatório jamais será feito com certeza plena, uma vez que a verdade é objeto inatingível no processo e que a busca da tão falada verdade não passa de uma ambição inquisitorial[12].

Todo o conhecimento do juiz produzido sem a participação da defesa e, portanto, sem contraditório faz com que a decisão seja produzida de forma antecipada, fazendo com que a hipótese da acusação prevaleça sobre os fatos, ou, o que Franco Cordero denominou de quadro mental paranoico[13]. Nesse contexto, o juiz forma a hipótese com os elementos que lhe são apresentados durante o inquérito e, antes mesmo do acusador apresentar a tese de acusação na denúncia o juiz já tem em sua mente a decisão final, o que transformava a segunda fase em mero jogo de cena, um teatro, no qual não se decidia mais nada e apenas se legitimava a decisão previamente estabelecida pelo juiz em sua mente e que precisava da simulação do contraditório para vir ao mundo.  

Esse modelo do juiz que sabia de tudo que se passava, desde o inquérito até a sentença fazia com que o convencimento do juiz sobre os fatos e, consequentemente sobre o resultado do processo, se fizesse logo no início, antes de qualquer participação da defesa. Isso se devia à armadilha armada por Napoleão no Código de Instrução Criminal de 1808 que, ao dividir o processo penal em duas fases, uma inquisitória e outra acusatória permitiu com que os elementos da primeira fase fossem levados à segunda, fazendo o modelo que se convencionou chamar de misto mas que, na verdade, não passa de um sistema inquisitório travestido. Graças ao sistema napoleônico muitos regimes autoritários se declararam democráticos[14]. Tal sistema foi adotado no Código de Processo Penal Brasileiro e permanece em vigor desde 1941, tendo se perpetuado desde sua entrada em vigor mesmo após inúmeras reformas pontuais e da promulgação da Constituição de 1988, somente agora é que se realizou uma reforma capaz de aproximar efetivamente o Código da Constituição.

Dessa forma, a reforma proporcionada pela Lei 13.964/2019, apesar de profunda, ainda é insuficiente para a necessária refundação do processo penal, é necessário mais que somente a reforma realizada é necessário um código integralmente concebido com as exigências da democracia e da Constituição e a mudança da mentalidade do operador do direito processual penal, juízes, advogados, membros do ministério público, delegados, policiais, etc., para que se adequem às exigências de um modelo acusatório que se baseia na presunção de inocência.

É nesse contexto que deve ser interpretada a figura do juízo de garantias, criado pela nova lei. Trata-se de um juiz que atuará no inquérito policial e que será responsável pelo controle da legalidade da investigação e pela salvaguarda dos direitos individuais nas cláusulas de reserva de jurisdição (art. 3-B do CPP, inserido pela lei 13.964/2019). Esse órgão jurisdicional tem por objetivo atuar na fase de investigação criminal impedindo que o juiz do caso penal tenha contato com os elementos do inquérito e, dessa forma impeça que se contamine subjetivamente com os elementos produzidos no inquérito. A competência do juízo de garantias termina após o recebimento da denúncia, que agora restou claro que se dará apenas após a citação e a apresentação de resposta escrita à acusação por parte do acusado (art. 3ºB, XIV), sendo o juiz de garantias impedido de instruir e julgar o caso penal (art. 3ºD).

Essa separação se torna ainda mais efetiva com a determinação de que os autos que compõe a matéria de competência do juízo de garantias devam ser acautelados na secretaria desse juízo após o oferecimento da acusação à disposição das partes, seguindo ao juízo da instrução e julgamento apenas os documentos relativos às provas não repetíveis (art. 3ºC, §3º). Tal dispositivo revoga tacitamente o art. 12 do Código de Processo Penal e determina a exclusão dos autos do inquérito, ou seja, que o juízo responsável pelo julgamento do caso penal não tenha contato com os elementos produzidos na fase de inquérito.

A reforma deseja com isso que a prova da acusação seja integralmente produzida em contraditório jurisdicional, garantindo-se que o acusado possa participar em simétrica paridade de armas com a acusação. Mais do que isso, potencializa-se o contraditório, fazendo com que a decisão seja fruto do debate endoprocessual e evitando que a fase processual se torne um jogo de cartas marcadas para legitimar a decisão. Ao receber a acusação o juiz competente pela instrução e julgamento do caso saberá apenas os argumentos da denúncia e da resposta escrita, somente tendo contato com os elementos que não possam ser repetidos. Além disso, o juiz estará proibido de produzir provas, o que faz com que o art. 156 tenha sido tacitamente revogado pela reforma, estando impedido de substituir a acusação, uma vez que o juiz não precisa produzir provas para a defesa diante da presunção de inocência que, se levada à sério, faz com que a dúvida beneficie o acusado.

Dessa forma, a reforma proporcionada pela lei 13.964/2019 no que tange à criação do juízo de garantias e a separação do processo penal brasileiro em duas fases isoladas, se levada a sério e aplicada com o necessário compromisso com a Constituição, nos colocará no rumo da construção de um modelo acusatório. Tal mudança potencializará o contraditório e a efetivação dos direitos de defesa, fazendo com que o processo penal se dê pela construção das partes e não seja uma mera simulação de um jogo com resultado preconcebido.

É preciso dizer, porém, que a mudança foi um passo importante para a efetivação do contraditório, mas é necessário mais para um processo efetivamente acusatório. O código forjado sob o autoritarismo do governo Vargas e reformado inúmeras vezes no regime democrático pós Constituição de 1988 se transformou numa colcha de retalhos que merece ser integralmente substituído por uma legislação sistematicamente organizada e integralmente voltada para a Constituição.

Também é necessária uma mudança de mentalidade, de nada adiantaria uma reforma acusatória, ainda mais profunda da que fora realizada, se não se mudar a mentalidade dos operadores. É preciso que se estabeleçam aplicadores do processo penal que estejam cientes e preparados para as necessidades do processo penal acusatório, construído com sujeitos com papeis determinados, oralidade e publicidade. Sem isso, de nada adiantará mudar a lei, pois seus aplicadores seguirão interpretando, aplicando e agindo em conformidade com o modelo inquisitório e, consequentemente afastados da Constituição.

Finalmente, à guisa de conclusão, como se iniciou o presente ensaio dizendo da importância de se potencializar os direitos fundamentais. A nova lei deu um passo importante no sentido de se potencializar o contraditório e a decisão construída de forma comparticipada entre as partes, resta agora ao operador do Direito Processual Penal ter consciência de aplica-la através dos contornos constitucionais, implementando e fomentando a construção e a efetivação dos direitos fundamentais, principalmente do contraditório, ampla defesa e da presunção de inocência, estabelecendo o acusado inocente até o trânsito em julgado, sentença essa que somente poderá ser fundada por prova produzida em contraditório e não mais pela prova requentada do inquérito e meramente confirmada em juízo.

O contraditório, por fim, ganhou novos contornos, nova força e restou potencializado pela nova lei. Agora, é papel dos aplicadores, ao interpretar e aplicar as novas regras, também buscarem efetivar os direitos fundamentais. Sem dúvida, ainda há muito que se fazer, mãos à obra!

 

Notas e Referências

[1] GOLDISCHMIDT, James. Problemas jurídicos y políticos del proceso penal. p. 67. Citado por LOPES JR. Aury, Direito Processual Penal. 15ª edição. São Paulo: Saraiva, 2018. p.34.

[2] HENKEL, citado por ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre as proibições da prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2013.

[3] BULOW. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires: Libreria El Foro.

[4] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pelegrini. Dinamarco. Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 18ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002.

[5] DINAMARCO. Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 9ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001.

[6] FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. 8ª edição. Padova: CEDAM, 2005.

[7] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992.

[8] SANTIAGO NETO, José de Assis. Estado democrático de direito e processo penal acusatório: a participação dos sujeitos no centro do palco processual. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

[9] BARROS, Flaviane de Magalhães. (Re)forma do processo penal. 2ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.

[10] BINDER, Alberto. Fundamentos para a reforma da justiça penal. Santa Catarina: Empório do Direito, 2017.

[11] CHOUKR, Fauzi Hassan. Permanências inquisitivas e refundação do processo penal: a gestão administrativa da persecução penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. PAULA, Leonardo Costa de. SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Mentalidade inquisitória e processo penal no brasil: diálogos sobre processo penal entre Brasil e Itália. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. Capítulo 3, p. 65-77.

[12] KHALED JR. Salah. A busca da verdade no processo penal para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

[13] CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale.Torino: UTET, 1986, p. 51.

[14] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Observações sobre os sistemas processuais penais. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.

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