“De todo nos cansamos, menos de poner en ridículo a los demás y vanagloriarnos de sus defectos”. William Hazlitt (The Pleasure of Hating, 1826).
Intentarei guiar suavemente e acomodar os neurônios do amável leitor (a) ao redor do que disse antes arrancando com um exemplo rápido para que não incorra em enganos: quando, sem sequer considerar o risco que implica especular sobre os motivos dos demais, afirmo que um determinado indivíduo atua (ou atuou) como “se fora infalível”, um “santo”, um “juiz de um tribunal da Inquisição” ou como um tipo débil guiado pela força de uma dada situação que influi (ou influiu) em sua conduta, o que estou dizendo é que eu sou um ser humano virtuoso, justo, racional, humilde, cauto e firme, e que «nunca jamais» atuaria do mesmo modo nem me curvaria ante o poder das circunstâncias[1]. Convenhamos: bastante forte.
Com a mensagem de desacreditar aos que não estão de acordo com nossas crenças, valores e pensamentos como indivíduos imorais, malvados, idiotas ou ignorantes, chega também, em um sussurro, o anelo egoísta de incrementar, melhorar ou adornar nossa reputação moral individual. Perguntarei outra vez: Há outro modo mais sutil e eficaz de autopromoção (tão sutil que raramente nos damos conta do impacto que exerce sobre nosso pensamento)? Por acaso não aprendemos que para conservar intacta ou aumentar nossa autoestima às vezes é necessário sentir-nos superiores aos demais? Deveras podemos confiar que alguém fanático da moral crê que sua identidade tem que ver com um autoconhecimento total das razões pelas quais se sente virtuoso? É o convencimento de que quando os demais veem o bom que sou isso eleva meu status, glorifica meu prestígio, me converte em alguém exemplar, uma pessoa desejável para trabalhar e cooperar ou me elogiarão e farão favores em caso de necessidade; e também me faz atrativo como companheiro sexual[2]. «Vanitas vanitatum omnia vanitas».[3]
Entendo que dar e receber razões são parte de nossa vida cotidiana, que consumimos razões e também as produzimos: para justificar nossa conduta, para julgar, criticar ou elogiar, para sopesar prós e contras de uma eleição, decisão ou ato. Também compreendo o inútil que resulta pedir a nossas paixões que sejam sensatas e que a todos nos satisfaz ver-nos baixo uma luz favorecedora e positiva, que nos produz toneladas de prazer a sensação de que somos uns indivíduos excelentes e que julgar e condenar aos demais nos faz sentir-nos muito melhores por contraposição. É um monstruoso deleite poder presumir com nossos comentários dos bons que somos diante dos demais. Mas há um limite! Há coisas em que se podem crer e outras que nem por assomo, já que o entusiasmo, a autoestima e/ou a honradez “no basta para tener la seguridad de que uno está en lo cierto”. (B. Russell)
Estou persuadido que todos compartimos a razoável opinião de que existe um grande perigo em todos os juízos e condenas morais que não se limitam somente às críticas baseadas em provas ou critérios objetivos, senão que em algumas ocasiões se traduzem em ações contra os demais, e que, às vezes, se demonstra que são (ou foram) injustas e precipitadas[4]. Sabemos muito menos do que cremos acerca do que impulsa as pessoas a tomar uma decisão ou a adotar uma conduta sobre outra. Os juízos e a ostentação moralista, o constante julgar e criticar aos demais, o santificar e pontificar sobre qualquer tema segundo nossos valores ou de nosso grupo pode arruinar a vida da gente sem mais referência que uma informação muito parcial (logo está a emoção humana da «Schadenfreude», que designa a dita ou a ledice que se sente pelo sofrimento ou desgraça alheia, e que “impregna toda nossa experiência, apesar de suas conotações vergonhosas” – R. H. Smith).
Ademais, ao excesso de crédito que outorgamos à nossa capacidade perceptiva, ética, intelectual e analítica para entender e explicar comportamentos complexos se soma nossa tendência a sobre-estimar nossas capacidades e subestimar as capacidades alheias. Pessoalmente, suspeito por princípio das divisões de pessoas em boas e más, porque a vida real é muito mais complexa e profunda que tudo isso, e com uma peculiaridade não menos aterradora: “el que quiere el «summum bonum», introduce también con esto el «summum malum»”. (P. Watzlawick)
Talvez o mais inteligente e sensato seja reconhecer que todos somos medíocres e limitados em quase tudo, que estamos prenhados de vieses cognitivos e prejuízos que são invisíveis para nós e que exigir o máximo moral dos demais é ridículo. Do contrário, corremos o risco de chegar a um nível de exigência moral e de virtude inalcançável para todo o mundo e/ou a um tipo de postura ou discurso moral cada vez mais cínico e vazio, lançando-nos a uma louca e interminável carreira de santidade e pureza, uma carreira em que ninguém quer ficar atrás e que lhe acusem de covarde, apático ou inferior desde o ponto de vista moral.
Por certo que a indignação moral é parte da natureza humana, mas é bom saber que a censura que dispara esta indignação se explica melhor não como uma reação proporcionada e justa, senão como o resultado de um sistema que vai mais além de nossas capacidades cognitivas e emocionais e que evolucionou para potenciar e engrandecer nossas reputações individuais, sem demasiado cuidado ao que isso supõe para os demais.
Assim, da próxima vez que o indulgente leitor (a) sinta a tentação de julgar ou indignar-se com alguém (e logo convencer a milhares de primatas para que o aceitem), recorde perguntar-se, independentemente do grupo a que pertence, se não está em realidade dizendo: “Mira que bom eu sou; mira que cauda mais bonita tenho!”. Pode, inclusive, que com essa sensata falta de impaciência obtenhas um elogio extra de alguns amigos adultos, sempre e quando faças o correto ao final. Teus filhos, por outro lado, sempre te julgarão com dureza.
[1] É deveras sabido que não julgamos igual os atos dos demais e os próprios, que vemos muito bem “a palha no olho alheio, mas não a viga no próprio”. Não somente tendemos a pensar que temos (e atuamos com) razão e que os que atuam motivados por interesses são os outros, senão que sofremos de uma grande quantidade de vieses cognitivos que distorcem nossa visão do mundo e de nós mesmos. Somos vítimas de nosso delicado e “sobre-excitado” ego, cegos aos nossos próprios equívocos, tendenciosos em nossas avaliações, e muitas vezes não serve de nada que nos expliquem, porque seguiremos pensando o mesmo. Ademais, está o que se conhece como «erro fundamental de atribuição»: uma assimetria - demasiado recorrente em relações humanas - na atribuição da causa quando estamos considerando a conduta alheia em oposição à nossa própria. A ideia fundamental é que, ao intentar compreender o comportamento dos demais, as pessoas tendem a atribuir à conduta observada uns fatores de personalidade, em contradição às características das situações. Ao fim e ao cabo, é fácil explicar o comportamento dos demais em termos de personalidade (tanto no que se concerne aos traços relativos ao «caráter» como os vinculados com o «temperamento»), especialmente quando os conceitos e os correlatos de nossas «teorias da personalidade» intuitivas não estão bem definidos (por exemplo: «Sabia que faria isto porque é uma pessoa muito egoísta, um canalha empedernido»). Por outro lado, quando interpretamos nossas próprias ações, costumamos explicá-las desde uma perspectiva das circunstâncias em que nos encontramos (por exemplo: «Explodi porque me encontrava em uma situação insuportável e baixo muita pressão»). Somos sempre vítimas das circunstâncias; os demais, vítimas de uma personalidade viciada e/ou de um caráter débil ou deformado. A personalidade/caráter rege a conduta dos demais, mas a situação o faz com a nossa. Assim que ao tratar de compreender ou quando penso na atitude do outro percebo que sua personalidade destaca sobre um fundo de diferentes situações, isto é, não tenho nenhum problema para julgar que seu comportamento se baseia fundamentalmente em um determinado tipo de temperamento ou tendências que contribuem à incoerência das pautas de sua vida emocional, de seus pensamentos e de seus atos (como assinala Richard Alexander, ao estabelecer o conceito de «reciprocidade indireta», “se trata de un matiz importante de la psicología moral humana, a saber, que los seres humanos atribuimos con más facilidad la virtud a la persona y consideramos que la virtud es un atributo de la persona más que pensar que la virtud es un atributo de los actos o de las decisiones, es decir, que no tendemos a pensar que alguien puede ser bueno en una situación y malo en otra.”). Ao tratar de compreender ou explicar minhas próprias ações, no entanto, percebo os câmbios das circunstâncias destacados sobre o fundo estável e fiável de meu caráter, de meu «eu» (https://www.researchgate.net/publication/282869932_Sobre_o_mito_e_a_maldicao_do_Eu_Parte_1). Minha ablepsia unicamente se aplica a meus próprios motivos e atos, não aos dos demais. Em outras palavras, “não existe o bem e o mal, só meu bem e vosso mal” (L. Bruce): miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. Como vítimas inocentes dos estragos produzidos pelas circunstâncias, o nosso é o mundo ético, verdadeiro, evidente e normal (a despeito de todo e qualquer indício em contra); imoral, desquiciado, egoísta, falso, ilusório, excêntrico, profano, sacana, infiel, disparatado ou ao menos estúpido é o mundo dos demais. Para uma compreensão sobre a arte de equivocar-se e a dinâmica da conduta humana com relação ao alcance e os limites do poder pessoal, do poder situacional e do poder sistêmico: Philip Zimbardo, The Lucifer Effect; Kathryn Schulz, Being Wrong. Adventures in the margin of error.
[2] Geoffrey Miller (The Mating Mind: How Sexual Choice Shaped the Evolution of Human Nature), por exemplo, defende que as principais capacidades da mente humana que estão detrás da cultura, da moral, da linguagem, da música, da arte, da criatividade, do exibicionismo ideológico, etc... etc., evolucionaram tanto em homens como em mulheres por mútua seleção sexual. Nas palavras de Robert Ford (Westworld):“I read a theory once that the human intellect was like peacock feathers. Just an extravagant display intended to attract a mate. All of art, literature, a bit of Mozart, William Shakespeare, Michelangelo, and the Empire State Building just an elaborate mating ritual.”
[3] Em um famoso estudo realizado por Erin E. Buckels e colaboradores, titulado Trolls just wanna have fun (2014), os investigadores concluíram que há uma relação entre a forma (e o conteúdo) de fazer comentários on-line e a personalidade do usuário. Segundo o informe, o comportamento “troll” tem três traços fundamentais, um conjunto que a psicologia batizou como dark triad (a tríada escura): narcisismo, psicopatia e maquiavelismo. Buckels e colaboradores confirmaram a aparição destes três e incluíram outro traço essencial: o sadismo. Denominaram dark tetrad (a tétrade escura). Há um gosto deliberado “hacia la agresión porque sí, gratuita y fácil”. Apetite pela crueldade, aponta o estudo. Este perfil é o que gera mais ruído em internet, e em sua maioria são os hombres os que mais tempo ao dia dedicam a comentar, opinar ou julgar.
[4] No que à opinião sobre os demais se refere, em muitíssimas ocasiões sim que há fumaça sem fogo. Daí a cautelosa advertência de Patrick Stokes: “Salvo que tengas argumentos y pruebas, no, no tienes derecho a una opinión”.
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