Bazófia moral (Parte 2) - Por Atahualpa Fernandez

20/10/2017

 

Hombre, s. Animal tan sumergido en la extática contemplación de lo que cree ser, que olvida lo que indudablemente debería ser.” Ambrose Bierce (“The Enlarged Devil´s Dictionary) 

Por que todo mundo parece sentir-se ofendido nestes tempos? Por que nos sentimos tão indignados, inclusive quando determinados atos e ofensas não nos afetam diretamente? Realmente é nosso desinteressado compromisso com a justiça, nossa devoção pela ética, nosso férreo compromisso com a sociedade e/ou nossa tenaz empatia e dedicação ao “próximo” o que estimula nossa sede de juízo e indignação moral? Ou isso é o que queremos crer? Por que estamos todos tão honestamente enlouquecidos e tão moralmente agastados? Não resulta inquietante que os numerosos e arrogantes motivos que soem fazer com que algumas pessoas se sintam superiores moralmente aos demais as levem não somente a desvalorizar suas ideias e opiniões, senão que, ademais, amiúde convertem a essas pessoas em objeto de burlas? Não se trata simplesmente da necessidade (tão) humana de sinalar o bom que somos?

É bastante provável que as respostas a estas perguntas têm que ver em boa medida com a natureza humana, o substrato de todo humano que habita a terra, por muita variedade que se dê na superfície cultural. Um estudo publicado na revista Nature aporta provas de que as raízes de nossa indignação moral são, ao menos em parte, egoístas[1]. Segundo seus autores, a indignação moral é uma forma de propaganda pessoal, de anunciar ou publicitar a si mesmo: confiamos mais nas pessoas que dedicam tempo e esforço a criticar e condenar aos malfeitores, aos que se portam mal segundo nossas pautas morais e/ou os valores de nosso grupo[2], claro.

O artigo trata de resolver um problema evolucionista: como pode surgir uma conduta não egoísta como a indignação moral de um processo evolucionista “egoísta”? A resposta é que expressar um juízo de indignação moral beneficia ao que a manifesta, em longo prazo, porque melhora sua reputação. Os autores do artigo apresentam um modelo teórico que envolve os “sinais custosos” (costly signaling), cujo exemplo clássico é a cauda do pavão real. Somente os pavões reais machos saudáveis e com bons genes podem permitir-se ter essas caudas vistosas e extravagantes que funcionam como um anúncio de sua qualidade genética.

Da mesma maneira, exibir-se recriminando aos que se comportam mal (segundo nossos valores ou de nosso grupo) funciona como um sinal de integridade, de confiabilidade. E isto é assim porque censurar ou corrigir aos demais supõe um custo, mas esse custo se recupera se “a la larga los demás nos van a hacer favores o van a colaborar con nosotros al ver que somos personas moralmente respetables y de fiar”. Portanto, ao perceber que ser íntegro moralmente nos dá resultado, vamos estar mais dispostos a julgar, a reprochar e a condenar aos malfeitores, porque seremos recompensados por promover um comportamento moral. Isto explica, segundo os autores do estudo, o porquê de escolher exibir nossa desaprovação pelos maus pode funcionar como uma cauda de pavão: quem se dedica a reprovar e consertar uma má conduta provavelmente é digno, sério e (moralmente) decente.

Não sobra matizar aqui que estamos falando de causas últimas e de um processo evolucionista. Os autores não estão dizendo que conscientemente atuamos assim, isto é, que as pessoas que expressam ou exibem indignação estão deliberadamente tentando aparecer para os outros. É como praticar sexo: não o fazemos porque queiramos multiplicar nossos genes, senão porque nos satisfaz (já sabem: "la petite mort"); mas a explicação última é que praticar sexo serve para fazer cópias de nossos genes. [3]

Surpresos? Pois, a estas alturas e com tudo o que já sabemos sobre a natureza humana, não é para tanto: somos o que somos por nossa relação com outros. O «eu moral», algo que cremos muito íntimo e pessoal, “es en realidad un Caballo de Troya del grupo, un programa cargado en nuestro cerebro que en realidad no trabaja para nosotros, sino para los demás: nuestro yo trabaja para el otro, para asegurar que encajemos en el grupo (M. Lieberman). Como afirma David Eagleman: “Aunque solemos sentirnos seres independientes, nuestros cerebros están preactivados para la interacción social y una gran parte de los circuitos cerebrales tienen que ver con otros cerebros: la mitad de nosotros somos los demás”.

Esta «marca de qualidade» do ser humano já deveria ser suficiente para entender o muito que nos importa o que pensam os demais. A visão individualista, racional e separada da natureza humana é equivocada: somos criaturas profundamente sociais e tem toda a lógica do mundo que nos afete demasiado a opinião que os outros tenham ou o que pensam de nós (por isso há um tipo de informação que nos interessa sobre todas as demais: as informações sobre nós mesmos). Frente a nossos congêneres nos jogamos nossa reputação, nosso prestígio e, em definitiva, nosso status - nossos maiores e mais apreciados bens. Na verdade, nossa imagem e nosso sentimento de autovalia estão determinados pela maneira como os outros nos veem atuar e, inclusive, mais pelo que pensam e o que dizem de nós[4] - tampouco caberia esperar outra coisa de uma espécie que se move pelo mundo social julgando constantemente as intenções dos demais e cujo «ego» luta incessante e encarniçadamente por afirmar e defender sua existência, sua autoimagem, sua autoestima, sua honra e suas idiossincrasias. [5]

Desse modo, a teoria proposta pelos autores da referida investigação explicaria algumas coisas que estamos vendo amiúde, onde há casos absolutamente desproporcionados de linchamento moral a alguns indivíduos que eventualmente não estiveram muito acertados em algumas de suas decisões. De forma consciente ou não, as pessoas que se dedicam a julgar, censurar, denunciar ou depreciar sem moderação aos demais, o que estão fazendo não é realmente dizer o mau, imorais ou néscios que são esses indivíduos, senão o bom, o moral e ilustradas que são elas mesmas; quero dizer, que elas não são nem más, nem imorais, nem estúpidas e que jamais incorreriam nos mesmos equívocos.

Sigamos. 

 



[1] Jordan, J. J. et al. Third-party punishment as a costly signal of trustworthiness, Nature, 530, 473–476, (25 February 2016), doi: 10.1038/nature16981. Um bom resumo do artigo realizado pelos próprios autores: https://www.nytimes.com/2016/02/28/opinion/sunday/whats-the-point-of-moral-outrage.html?_r=0

[2]Tanto si pasamos mucho tiempo con esas personas porque estamos de acuerdo con ellas o si estamos de acuerdo con ellas porque pasamos mucho tiempo juntos, la cuestión fundamental sigue siendo la misma. No es solo que participemos de una creencia; es que participamos de una comunidad de creyentes.” Kathryn Schulz

[3] Desnecessário entrar em detalhe sobre o experimento realizado no estudo. Basicamente se dá dinheiro a uma pessoa que pode dedicá-lo a castigar aos que se portem mal, enquanto que outra pessoa observa sua conduta e decide se confiar nele ou não. O resultado é que efetivamente os que mais castigam são mais fiáveis e o observador faz bem em confiar neles. Nota bene: Em um interessante artigo, C. J. Clark, R. F. Baumeister e P. H. Ditto (Making punishment palatable: belief in free will alleviates punitive distress. Consciousness and cognition, 2017, 51:193-211) propõem que o livre-arbítrio serve para justificar os impulsos de castigar ao fazer aos que infringem as normas moralmente responsáveis, e assim justificar seu castigo sem sofrer o stress que fazer dano a um semelhante implica. Segundo os autores do artigo, há que fazer o castigo mais aceitável e que o livre-arbítrio serve precisamente para isso, para facilitar o castigo e para aliviar o mal-estar que produziria fazer dano a outro ser humano.

[4] Richard Feynman escreveu um livro titulado ¿Qué te importa lo que piensen los demás?, demonstrando assim que lhe importava tanto como para dedicar centos de páginas a intentar convencer aos demais de que não. Não podemos subtrair-nos às opiniões alheias (naquilo que dizia Austen de intentar condicionar a opinião que os demais tenham de nós) e menos ainda acerca de um tema tão transcendental como resulta ser “uno mismo”, e o curioso é que não importa que lugar se ocupe na hierarquia social, nem quanto poder se ostente, que essa dependência não diminui. De fato aumenta, multiplicando a necessidade de gastos suntuários que demonstrem essa posição, assim como a obsessão por autênticas banalidades. Não podemos evitá-lo, simplesmente.

[5] Seguramente o sofrido leitor (a), como ser humano que é, estará neste momento pensando que isto só ocorre com as outras pessoas. Uma ingenuidade sem paliativos. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para abandonar a cautela, buscar e encontrar padrões e narrações para interpretar a própria realidade, e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que se inventa. É natural nossa tendência a negar a relevância dos fatos, a rechaçar instintivamente as debilidades que nos caracterizam, a criar “pontos cegos” mentais no que à verdade se refere, e um longo etcétera. Nisso somos únicos: “la sensación de centralidad, sentirse epicentro del mundo y de las cosas, tomarse a sí mismo como unidad de medida y como promedio, como referencia y como verdad”. (E. Bruner)

 

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