Bazófia moral (Parte 1) - Por Atahualpa Fernandez

13/10/2017

“Muchísimos vamos por la vida dando por supuesto que en lo esencial tenemos razón, siempre y acerca de todo: de nuestras convicciones políticas e intelectuales, de nuestras creencias religiosas y morales, de nuestra valoración de los demás, de nuestros recuerdos, de nuestra manera de entender lo que pasa. Si nos paramos a pensarlo, cualquiera diría que nuestra situación habitual es la de dar por sentado de manera inconsciente que estamos muy cerca de la omnisciencia.”

Kathryn Schulz 

Por acaso já existiu alguma época ou lugar nos que não se tenha investido uma desmedida quantidade de recursos, tempo e sacrifício pessoal para julgar a conduta dos demais? Que levante a mão aquele que ainda se surpreende com a excessiva facilidade e rapidez com que “los seres humanos nos juzgamos los unos a los otros”. Ninguém? Comecemos por isto. 

Entre os recursos com que contam os seres humanos para justificar suas ínfulas de superioridade hierárquica no mundo animal se acha o juízo moral; e seguramente seja o mais socorrido e evocado de todos. Nossa capacidade de discriminar é um traço perceptual e cognitivo evolucionado. Julgar é uma característica central de nossa capacidade para discernir entre amigos e inimigos, potenciais relações morais e imorais, futuros cônjuges confiáveis ou não confiáveis, e um longo etcétera. Navegar através das complexidades da vida diária é julgar inumeráveis estímulos, objetos, ideias, crenças, valores e, fundamentalmente, pessoas. (G. Saad)

Lamentavelmente, como sucede amiúde com a linguagem, uma palavra pode ter dois significados, um dos quais é positivo e o outro negativo. No caso de "julgar", o termo se associa em grande medida com suas implicações negativas, enquanto que seu outro significado, mais neutro, em grande parte se borrou de nosso léxico coletivo. Admito que, em alguns casos, julgar é errar (sacamos conclusões errôneas sobre o mundo e a gente porque julgamos a partir do que vemos, não do que não vemos); em outros casos, a suspensão do juízo está mal quando não é diretamente imoral (sempre e quando se faça baseado em uma nutrida quantidade de elementos de juízo, sensatez e a melhor evidência disponível).

Também reconheço que muitas pessoas são profundamente contrárias a compartir uma opinião, tomar uma postura ou cometer o mortal faux-pas de emitir um juízo: “Deus não o queira!”. A negativa a julgar os demais e a capacidade de evadi-lo «ad absurdum et ad nauseam» se considera admirável, já que demonstra que se trata de uma pessoa pouco dada a satisfazer seu apetite de cuidar da vida dos demais recorrendo à ética (melhor dito, de “construir a própria bondade com a maldade alheia”). Julgar é equiparado com a estreiteza de miras e com a arrogância de não tolerar ou de não ponderar as distintas imperfeições da vida (por mais que este último seja o que de verdade nos faz seres morais).

Por desgraça para “os que não julgam” (exempli gratia Mateus 7:1-5) a ausência de juízos não é possível; tudo o mais que se pode conseguir é privilegiar a uns juízos frente a outros. Emitir juízos é uma característica integral do que nos faz humanos. Criamos nossa identidade ao fazer juízos de valor. Todos julgamos, todo o tempo. Sempre estamos tratando às pessoas de maneira que julgamos apropriadas para elas tal como nós as vemos, porque cremos firmemente conhecer os fatos, pensamentos e sentimentos relativos a ditas pessoas. O cérebro quer julgar. Quer criar mundos com o que sabe e o que não sabe, com o que imagina e recorda, com o que prediz e deseja. Evolucionou (o cérebro) para fazer juízos de valor e se o indulgente leitor (a) tem um problema com isso vive equivocado e/ou autoenganando-se. Somos uma espécie que em cada momento de vigília — e inclusive em sonhos — luta para dirigir o fluxo de sensação, emoção e cognição a estados de consciência que valoramos como bom ou mau (S. Harris), uma espécie desenhada (ou condenada) a etiquetar e julgar moralmente a conduta de nossos congêneres.[1]

A má notícia é que os sapiens são infinitamente mais complicados do que parece e os novos nichos virtuais apresentam oportunidades tão desconcertantes e novedosas para o juízo e o exibicionismo moral que de fato só começamos a compreender. Que dúvida cabe de que nos dias que correm somos cada vez mais exibicionistas e espectadores? Mostramos-nos para que nos mirem (evidentemente de forma seletiva) e, a sua vez, miramos aos demais. Gostamos de posar e manifestar nossas opiniões pessoais, ter uma audiência e vários amigos imaginários, expressar abertamente nossas preferências, idiossincrasias e obsessões, mostrar (sempre) a melhor versão de nós mesmos para que as pessoas nos vejam como nós nos vemos, criar testemunhas de nossa vida e que todo o mundo saiba (“quase”) tudo sobre o que fazemos, etc….etc.

Daí o enorme êxito das redes sociais (onde a incapacidade de refrear uma pessoa orgulhosa de sua estupidez sem atenuantes é mínima e a facilidade para propagar juízos e/ou ideias estúpidas e contagiantes é máxima[2]), esta espécie de vacina psicológica contra uma duvidosa ou empobrecida autoestima e um eficaz mecanismo não somente de controle da reputação (similar ao que se utilizava com o boca em boca e a fofoca nas sociedades de caçadores-coletores[3]), senão também para empurrar à pessoa a desenvolver «amizades indiscriminadas» e/ou a uma aceitação por um número cada vez maior de desconhecidos.[4]

E em nossa brumosa obscuridade mental, esta baixada aos infernos que às vezes propõe nossos neurônios e sinapses ávidos de ufania, estima e atenção social tampouco deixamos passar a ocasião de formular e vociferar enlouquecidos juízos morais sobre os demais (a expressão da indignação), como um intento desesperado de atuar ou falar de maneira dirigida a atrair a boa opinião da gente que observa, de fazer uma contribuição ao discurso moral público cujo objetivo é convencer aos demais de que somos “moralmente respeitáveis” (em inglês chamam  virtue signalling  à exibição de valores morais que permite melhorar o conceito que os demais têm de nós).

Quer dizer, usar o discurso moral para que os demais também façam certos juízos desejados acerca de nós como alguém que é digno de admiração por uma qualidade moral particular. Também a intenção pode ser outra: a de silenciar a um rival ou minar a credibilidade dos demais, mas sempre se apresentando o exibicionista moral como mais honrado moralmente e desvalorizando as contribuições dos demais porque provém de alguém moralmente ínfero. Fazer exibicionismo moral (moral grandstanding, como denominam Justin Tosi e Brandon Warmke[5]) intentando sacar benefício mediante a autoatribuição descarada de valores morais absolutos e axiomáticos é, em síntese, transformar nossa contribuição ao discurso moral em um projeto de vaidade (sem olvidar que a expressão da indignação moral muitas vezes tem suas satisfações: julgar ou criticar é entretido e a sensação de ser virtuoso resulta abertamente agradável). [6]

Em uma época em que a opinião está de moda, que os fatos já não importam, que se pode dizer qualquer coisa das que não temos nenhuma prova, que temos direito a tudo (menos a conformar-nos com qualquer coisa) e afetados por uma espécie de “platonismo incurável”, denunciamos aos “malfeitores” e aos “imorais” porque, ao refugiar-nos em nossa própria identidade (que consideramos incompreensível para os demais), cremos estar dotado de uma grande sensibilidade moral ou de um sentido profundo da justiça (quase sempre gerados pela distorção intrínseca de toda intervenção da mente humana que altera a percepção da realidade de maneira recorrente) que nos autoriza a inflar o peito para arrogar o direito a ir julgando e golpeando gente à tort et à travers com um só critério de valoração: o nosso. [7]

Como seres morais, nossa indignação é – pelo menos em um nível consciente – muito simples: Ética es lo que les falta a los otros” (para utilizar a definição mais operativa de ética formulada por Fernando Savater). Logo, e dado que parece quase impossível evitar cair em um egotismo extremo quando pensamos em valores morais, está justificada - ainda que esta facilidade acarrete a intrigante possibilidade de que a gente possa expressar indignação moral inclusive sem senti-la, quer dizer, sem que experimentem realmente a indignação que seu juízo dispara para designar virtude ante os demais.

Mais em concreto, igual a um feitiço que congela o pensamento e desconecta a reflexão, abraçamos a fé de que desfrutamos de um superavit moral e, como  plasmação da verdade moral para sempre, carregados de valores definitivos e inquestionáveis, verbo moral que se faz carne em forma de guardião angelical da ética, engendramos nossos juízos com esta ideia na cabeça. De fato, o mundo está cheio de santos e puros sem pecha moral, a quem resulta muito, muito fácil, fixar-se em defeitos, reclamar superioridade moral por isso e encher páginas e páginas explicando como reivindicar um comportamento ético “para fazer deste mundo um mundo melhor” ou deduzir um código de conduta moral com a (imaculada) razão. E não creio que exagero se digo que vivemos uma autêntica pandemia de juízos, uma era de asfixiante indignação e de hipertrofia da moral. 



[1] Parodiando a Pierre-Jean-George Cabanis (1802) podemos dizer que o cérebro humano produz juízos morais igual que “el hígado segrega bilis”.

[2] Recordemos a afirmação de Umberto Eco: "Las redes sociales les dan el derecho de hablar a legiones de idiotas que primero hablaban sólo en el bar después de un vaso de vino, sin dañar a la comunidad. Ellos eran silenciados rápidamente y ahora tienen el mismo derecho a hablar que un premio Nobel. Es la invasión de los necios."

[4] Segundo Molly Crockett, para quem as redes sociais são «estímulos supernormais» para a indignação moral e disparam uma indignação (moral) maior da que disparariam os estímulos da vida diária, a indignação moral é tão antiga como a civilização, mas os meios digitais, Internet e as redes sociais, cambiaram por completo sua expressão de três maneiras principais: a) exacerbam a expressão da indignação moral ao inflar os estímulos que a desencadeiam, b) reduzem os custos da expressão da indignação (moral), e c) amplificam enormemente os benefícios pessoais (no caso, o efeito sobre a reputação e a qualidade moral do sujeito). Nota bene: «Estímulo supernormal» é um conceito evolucionista muito potente que consiste em um estímulo artificial que exagera as características do estímulo natural fazendo-o irresistível e muito mais atrativo para o animal que o estímulo natural; por exemplo, um bolo coberto de chocolate é um «estímulo supernormal» que exagera os traços doces pelos que nos sentimos atraídos de forma natural, uns seios de silicone são um «estímulo supernormal» e o programa Big Brother é um «estímulo supernormal» que sacia nosso grande apetite pela informação social. Resumindo, os meios digitais transformam a indignação moral ao cambiar tanto a natureza como a prevalência dos estímulos que a disparam.

[6] Na verdade, se nos detemos atenta e cuidadosamente sobre as condições do impulso de exibir-se saltará à vista que o exibicionismo não é um fim em si mesmo, senão um dos meios possíveis na realização de um propósito indicativo de baixa autoestima e de narcisismo pessoal ligado ao egocentrismo. Para dizê-lo de alguma maneira menos rebuscada: é um enorme «sem-sentido» (salvo o «sentido pessoal» da estimação, compreensão, diferenciação e individualização do mundo que nos rodeia) e com invisíveis consequências práticas se não julgamos e recriminamos para demonstrar aos demais que sabemos mais que o «outro», que vemos mais longe, mais rápido, mais profundo, mais preciso, mais elaborado e que nossa inatacável virtude moral é mais poderosa que a do «outro». Do contrário, julgar seria como rezar pelos enfermos, isto é, um pouco como a masturbação: os que a praticam podem sentir-se bem,  “pero no hace nada por la persona en la que están pensando” (no caso, à pessoa a quem se está julgando).

[7] E não é isto tudo. Somos uma espécie com uma predisposição especial para moralizar a tudo e a todos. E com esse processo pelo qual qualquer coisa que previamente se considerava fora do campo moral entra dentro do mesmo (moralização) quer dizer, no campo moral que tem que ver com o bem e o mal, com o que se deve e não se deve fazer, e que se impõe , surge o que Tzvetan Todorov denominou de moralismo (a lição moral ditada aos outros, da qual quem dita a lição se sente orgulhoso); e com o moralismo, o moralista. Para Todorov, o indivíduo moralista “no pierde su tiempo en elogiar el bien, ni en los otros, ni siquiera en él mismo; el beneficio indirecto — que él extrae de su postura, la de denunciador del mal en general — le basta. Siempre ha sido así: aquel que delataba a la mujer adúltera para la venganza de los otros gozaba secretamente de su propia superioridad. El moralista se parece, entonces, a aquel a quien se llama algunas veces el fariseo, si se pone el acento menos en su ocasional hipocresía, o en su formalismo, que en su tendencia a juzgar a su prójimo con severidad. El moralista vive en la buena conciencia, está animado de lo que se llama en inglés self-righteousness; como complemento de ello, vigila meticulosamente las faltas de los otros. Un precepto para el próximo siglo podría ser: comenzar por combatir, no el mal (en los otros) en nombre del bien (que nosotros detentamos), sino la confianza de quienes pretenden saber siempre dónde se hallan el bien y el mal; no al diablo sino —en principio— a los maniqueos.  Lo contrario de un mal no es forzosamente un bien; puede ser otro mal.”

 

Imagem Ilustrativa do Post: When More Is Less... // Foto de: Allan Dcosta // Sem alterações

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