As armadilhas da percepção na decisão judicial penal

05/07/2015

Por Alexandre Morais da Rosa e Giseli Caroline Tobler - 05/07/2015

Obrigado quem nos acompanhou nas semanas anteriores (aqui). Hoje finalizamos o trajeto das possíveis contribuições de uma corrente da Psicologia Cognitiva no contexto da decisão penal, sem que esgotemos a questão. Partimos, desde sempre, de um modelo inautêntico de decisões, a saber, prenhe de decisionismo, tão bem criticado por Lenio Streck.

Apresentamos o funcionamento dos modelos de decisão S1 e S2, indicados pelo psicólogo Daniel Kahneman. No campo da decisão penal apontamos as armadilhas do intuitivo Sistema S1, responsável pelas respostas rápidas, involuntárias e inconscientes, muitas vezes utilizado sem reflexão (S2).  Em face da complexidade do Direito, bem assim para evitar reflexão todo o tempo, acabamos adotando padrões de comportamento, resultado das experiências passadas, das pressões internas e externas, situação que se estende à tomada de decisão judicial. O Sistema S2, por sua vez, igualmente exposto por Kahneman, embora seja o mecanismo ideal de tomada de decisão, sobretudo, nos julgamentos penais, por apresentar como características a postura consciente, racional, voluntário, reflexivo e deliberado, demandaria muito tempo, razão pela qual o conforto decisional (súmulas, decisões consolidadas, etc.), acabam sendo atalhos da decisão.

Esta constatação, ausente o intento de responder inteiramente a origem de todo conhecimento, bem como os métodos de interpretação efetivamente utilizados pelo magistrado, propõe a inclusão de uma nova percepção às decisões judiciais de acordo com os mecanismos cognitivos. Acolhida a existência de armadilhas e falhas no Sistema S1, isto é, sua predisposição em aceitar como verdadeiros fatos mais compreensíveis, assim como a consciência de que, embora o Sistema S2 seja de fato o mecanismo que mais aproxima o magistrado de um julgamento racional, ainda assim haverá momentos em que o inconsciente (não freudiano para psicologia cognitiva) será o responsável pela resposta final.

No Direito Penal e Processual Penal a racionalidade como modernamente é idealizada não persiste quando investigada sob o enfoque da Psicologia Cognitiva. A Filosofia da Consciência, tão bem criticada por Lenio Streck, excessivamente propagada como uma certeza em relação a fatos e acontecimentos carrega consigo uma racionalidade que ultrapassa todas os erros de previsibilidade já apresentados, segundo o entendimento de Nassim Nicholas Taleb.

A tão proclamada verdade real, presente inclusive em boa parte dos Manuais de Direito Processual Penal brasileiros, tem como características os mesmos preceitos expressos no sistema acusatório, porém inversamente idealizados. Em outras palavras, enquanto o sistema do devido processo legal está pautado nas garantias de defesa do acusado, sobretudo, os princípios constitucionais do contraditório, da legalidade, da ampla defesa, da dignidade da pessoa humana, entre outros, no sistema da verdade real as determinações inquisitoriais renascem ou apenas se manifestam, dada sua especificidade sempre presente no imaginário de alguns magistrados.

Esta postura inquisitória é um poderoso mecanismo do S1, dado que a resposta está pronta antes do processo penal, por prevalecer o mecanismo do S1. Neste ponto irrompe grande parte das arbitrariedades que caracterizam o juiz como sujeito paranoico, solipsista e discricionário. O Processo Penal segue, e assim deve ser, "etapas antecedentes que [legitimam] o procedimento como condição preparatória ao provimento final".[1] Estas etapas, todavia, na maioria dos processos são substituídas pela conveniência do magistrado, que desde o início da análise dos fatos concebe uma verdade cujos fundamentos no decorrer da ação terão como único intuito confirmar sua decisão inicial, alicerçada evidentemente em um pensamento racional e consciente.

Na contramão do senso comum teórico, que primeiro decide e depois julga, consoante um entendimento pré-compreendido, o processo como procedimento em contraditório, parte de uma etapa inicial, respeitando seu conteúdo e sua finalidade, bem como as etapas posteriores. O Processo Penal estará, destarte, legitimado quando seguir o "desenrolar correto dos atos e posições subjetivas previstos em lei".[2]

O procedimento em contraditório não representa, contudo, apenas a presença formal dos sujeitos "(juiz, auxiliares, ministério público, acusado, defensor)".[3] Antes reflete toda as garantias constitucionalmente previstas, devendo o magistrado obrigatoriamente julgar destituído de favorecimentos e parcialidades em relação a uma das partes. Do mesmo modo que ao juiz é defeso decidir conforme sua intuição no que concerne ao fato, igualmente não deve deslocar suas concepções pessoais com intuito de invariavelmente provar a culpa do acusado.

O juiz, apesar de estar inserido no procedimento em contraditório como sujeito do processo, não se confunde com as partes, sendo um terceiro imparcial. É esta qualidade, decorrente do sistema acusatório de decisão, "no qual são distintos o órgão acusador e o órgão julgador"[4], longe da gestão da prova, que garante a efetividade de um julgamento consoante o estabelecido pelo devido processo legal, sem juízos probatórios valorativos pautados no livre convencimento do magistrado.[5]

O processo, no senso comum teórico expressa "um conjunto de atos preordenados a um fim".[6] A interpretação formal unicamente não tem a capacidade de englobar a deliberação do magistrado, consequentemente, retira da decisão sua "estrutura democrática",[7] própria do sistema democrático. É imprescindível uma interpretação a partir das garantias constitucionais antes mesmo de iniciar a análise do Código de Processo Penal. Este deslocamento de compreensão, de garantia do contraditório como ponto inicial e anterior a investigação do processo "consiste em sua característica fundamental",[8] embora sua aparente evidência não seja usualmente aplicada pelo julgador.

Com a virada linguística a metafísica tradicional perde significativamente a validade de seus argumentos. A democracia processual, com fundamento no contraditório, na ampla defesa e no tratamento homogêneo das partes passa a questionar os julgamentos segundo as próprias limitações inerentes ao conhecimento de qualquer ser humano. A certeza sempre preconizada como fundamento último e legitimador das garantias de segurança e bem-estar da sociedade encontra no peculiar comportamento do magistrado a confirmação de uma racionalidade desde sempre parcial.

A decisão racional da modernidade assume, portanto, um caráter falacioso, assim como seus objetivos menosprezam a existência de fatores inconscientes, neste sentido, involuntários e intuitivos, próprios do Sistema S1 (não se confundindo com o pensamento inconsciente presente na Psicanálise), a partir de uma noção de verdade inexistente e imaginária. E aqui, a Psicologia Cognitiva pode de fato servir como suporte para desmistificar este imaginário conceito, ainda que não obtendo uma resposta definitiva ao menos desvela as falhas da intuição e as limitações tanto do Sistema S1 quanto do Sistema S2.

Na perspectiva de uma decisão penal democrática a proposta da Psicologia Cognitiva remete o magistrado para uma nova compreensão acerca dos fatos, ciente das armadilhas da cognição. Estes devem ser analisados respeitando-se as etapas próprias do Direito Processual Penal, sendo defeso o direcionamento de percepções arbitrárias e parciais. Ao acusado é imprescindível proporcionar todas as garantias que lhe são específicas, sendo o mero cumprimento de formalidades insuficiente. Ao magistrado é fundamental atuar dentro dos limites de sua racionalidade e competência, ouvindo as testemunhas bem como as partes sem formular entendimentos anteriores a decisão final e principalmente se obstando de investigar provas que comprovem sua certeza metafísica. Aliás, a nova teoria da decisão adotada pelo Novo CPC (art. 489), pode auxiliar na democratização da decisão, evitando-se, por exemplo, a surpresa.

Sem adentrarmos nas complexas transformações que ocorrem no cérebro durante a captação e conversão das informações adquiridas, é certo, todavia que as respostas não surgem de elementos atemporais e impossibilitados de alterações. A resposta tanto em relação as decisões cotidianas quanto no que concerne ao julgamento penal, dito de maneira simplória, respalda-se nas limitações do conhecimento humano bem como na consciência de que os comportamentos mentais através dos Sistemas S1 e S2 efetivamente existem e expressam uma interferência preponderante na tomada de decisão.

Os comportamentos cognitivos não se encontram aquém das ciências ditas interpretativas, ao contrário, é um componente fundamental e condicionante da autêntica interpretação judicial. É certo que as inovações trazidas por essa concepção do ato de decidir alicerçado em perspectivas no âmbito da Neurociência ainda provocam sobressaltos na maioria dos juízes, sobretudo, aqueles que concretamente desprezam em suas decisões as influências desses comportamentos. Este reconhecimento não é algo que se mostre racional em um primeiro momento. Faz sentido. No entanto, esta constatação é evidente e os estados mentais cognitivos efetivamente podem alterar uma decisão judicial, quer pelo rápido Sistema S1, quer pelo lento Sistema S2 de Daniel Kahneman. Até que ponto esses sistemas estarão aptos a modificar uma decisão judicial dependerá apenas da compreensão do julgador de que sua racionalidade termina onde seu inconsciente inicia. No tocante a este local de convergência resta apenas a reflexão.

Com os acréscimos da Psicologia Cognitiva a intenção foi a de trazer os complexos sistemas cerebrais o mais próximo possível da realidade dos julgamentos. A Psicologia Cognitiva assume, portanto, uma nova perspectiva na eterna busca por um julgamento efetivamente democrático, dando-se ciência das armadilhas da percepção. Obrigado por nos acompanhar.


Referências:

[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Decisão Penal: a Bricolage de Significantes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p.261.

[2] MORAIS DA ROSA, 2006, p.261.

[3] MORAIS DA ROSA, 2006, p.263.

[4] FILHO, Vicente Greco. Manual de Processo Penal. 8ª Ed. São Paulo: Saraiva 2010, p.232.

[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13ª Ed. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2010, p. 464.

[6] MORAIS DA ROSA, 2006, p.258.

[7] MORAIS DA ROSA, 2006, p.258.

[8] MORAIS DA ROSA, 2006, p.259.


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Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui

     


. Giseli Caroline Tobler é Acadêmica de Direito da UFSC.                                                                            


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