ABPDRO #100 - PROCESSO: GARANTIA DE LIBERDADE OU GARANTIA DE LIVRAMENTO?  

28/08/2019

Coluna ABDPRO 

Em texto anterior, interpretando o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, tentei demonstrar que o processo é uma garantia fundamental tanto de 1) liberdade [freedom] quanto de 2) «liberdade» [liberty] (Processo: garantia de liberdade [freedom] e garantia de «liberdade» [liberty]. <https://emporiododireito.com.br/leitura/processo-garantia-de-liberdade-freedom-e-garantia-de-liberdade-liberty>). Garante à parte a liberdade [freedom] de decidir pelo que entende e pelo que lhe convém perante a jurisdição. A parte tem o poder de autodeterminar-se pela própria vontade e, a partir daí, escolher autonomamente os seus comportamentos. Isso implica, por exemplo: i) a liberdade de alegar fundamentos de fato; ii) a liberdade de alegar fundamentos de direito; iii) a liberdade de formular pedidos; iv) a liberdade de provar os fatos alegados como fundamento; v) a liberdade de indagar às testemunhas; vi) a liberdade de inquirir a parte contrária; vii) a liberdade de convencer o juiz; viii) a liberdade de impugnar; ix) a liberdade de recorrer. Todas essas escolhas, próprias à atividade de parte, se devem fazer sem a interferência do juiz, i. e., com «liberdade» [liberty]. O juiz não se intromete no exercício delas. Afinal de contas, é alheio, não-parte, im-parte, impartial, neutro. É iniciativa exclusiva da parte manejar os fatos, os fundamentos jurídicos, os pedidos, as provas, as indagações, as inquirições, as estratégias de persuasão, as impugnações e os recursos que lhe amparam a ação e a defesa. Nenhum aspecto desse manejo pode ser adicionado, alterado, suprimido, determinado, impedido ou punido pela autoridade judicial. Isso significa, v. g., que juiz não intro-duz fatos nem fundamentos jurídicos à ação e à defesa, não de-duz pedidos, não pro-duz provas, não con-duz indagações, não e-duz confissão, não in-duz convicção, não a-duz impugnações, não entre-duz recurso. Ab-duzindo a atividade das partes, o juiz lhes re-duz a «liberdade» [liberty] e, em consequência, a liberdade [freedom]. Torna-se um dux [= comandante, chefe, guia, diretor], que -duzducit (terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo latino ducere, que se tra-duz por comandar, chefiar, guiar, dirigir). Descai de garantidor imparcial em condutor material do processo. E, desse modo, o espaço de liberdade e de «liberdade» se degrada em uma mera circunscrição de autoridade. Na verdade, o processo como garantia contrajurisdicional de liberdade e de «liberdade» do cidadão se realiza mediante uma divisão ocupacional equilibrada, bem delimitada e rígida de tarefas entre o juiz e as partes: o juiz não arvora para si as liberdades da parte, nem lhes controla o exercício; em contrapartida, a parte não se arvora nos poderes do juiz, conquanto lhes controle o exercício. Enfim, o juiz não tem liberdade nem «liberdade», não interfere na atividade da parte, posto que a parte interfira na atividade do juiz (sobre a ideia de divisão equilibrada de tarefas: SOUSA, Diego Crevelin de. O caráter mítico da cooperação processual. <https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-10-o-carater-mitico-da-cooperacao-processual-por-diego-crevelin-de-sousa>). Como se nota, portanto, a liberdade ora significa 1) o desejo ativo que o ser humano tem de ser instrumento da própria vontade e não da vontade alheia [= liberdade = freedom = noção positiva-ativa] (noção mais afinada ao liberalismo moderno), ora significa 2) estar livre de coerções [= «liberdade» = liberty = noção negativa-passiva] (noção mais afinada ao liberalismo clássico).

Sublinhe-se: quando o juiz se arvora ex officio na liberdade das partes, deixa de ser alheio, não-parte, im-parte, impartial, neutro. Quando introduz fundamento, deduz pedido, produz prova, conduz indagação, eduz confissão, induz convicção, aduz impugnação e entreduz recurso, o juiz auxilia a parte negligente. Coadjuva a parte que deixou - a tempo e modo oportunos - de introduzir o fundamento, deduzir o pedido, produzir a prova, conduzir a indagação, eduzir a confissão, induzir a convicção, aduzir a impugnação e entreduzir o recurso. Pré-exclui a preclusão. Beneficia o omisso. Desequilibra o debate. Favorece quem, tendo um ônus processual, dele não se desincumbiu a contento. Logo, sempre que o juiz se evade à liberty e invade uma freedom, ele quebra a alienidade, o alheamento, a não-partialidade. Deixa de ter impartialidade [= neutralidade funcional = imparcialidade objetiva], ainda que tenha imparcialidade [= neutralidade psicológica = imparcialidade subjetiva] (para uma distinção entre impartialidade e imparcialidade, v., p. ex., VARGAS, Carlos Adolfo Picado. El derecho a ser juzgado por un juez imparcial. Revista de IUDEX - revista oficial de la Asociación Costarricense de la Judicatura. n. 2. ago/2014, p. 34-44). Ainda assim, suspeita-se que toda quebra de impartialidade induza alguma perda de imparcialidade, que toda ruptura de neutralidade funcional induza alguma contaminação de neutralidade psicológica por enviesamento egocêntrico (obs.: fala-se obviamente aqui em imparcialidade possível, visto que nenhum juiz goza de assepsia bacteriológica e, destarte, de «grau zero de neutralidade»; nesse sentido, a imparcialidade não é uma «virtude angelical», porém um esforço humano de contenção) (sobre o tema, v. nosso Levando a imparcialidade a sério. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 168 e ss.). O juiz tenderia a supervalorizar o fundamento que introduziu, o pedido que deduziu, a prova que produziu, a indagação que conduziu, a confissão que eduziu, a impugnação que aduziu e o recurso que entreduziu. O fundamento, o pedido, a prova, a indagação, a confissão, a impugnação e o recurso seriam «seus». Se isso for verdade, então se estará diante de uma unidade dinâmica de quatro fatores interimplicados: liberty-freedom-impartialidade-imparcialidade. Se o juiz ignora a «liberdade» das partes e se apropria de liberdades das partes (introduzindo de ofício, por exemplo, fundamento de defesa não invocado na contestação), ele perde a impartialidade (pois favorece funcionalmente o réu) e, em consequência, tende a perder a imparcialidade (pois tende a supervalorizar o fundamento que invocou e desvalorizar eventual contrafundamento). Por sua vez, se o juiz não tem imparcialidade [ex.: juiz cônjuge da ré], ele tende a perder a impartialidade, ignorar a «liberdade» das partes e apropriar-se de liberdades das partes, favorecendo funcionalmente o polo para a qual pende [ex.: introduzir de ofício fundamento de defesa não invocado na contestação]. Essa é uma das razões por que a motivação do julgado não basta ao controle da imparcialidade: o dolo de favorecimento pode não ser visível no iudicare, mas apenas no procedere. Daí por que o caminho para a imparcialidade sempre perpassa por uma divisão ocupacional equilibrada, bem delimitada e rígida de tarefas entre o juiz e as partes. Sem isso é impossível que o processo opere como garantia constitucional contra-arbitrária. Essa divisão é «a» condição infraconstitucional de possibilidade da garanticidade processual.

No âmbito procedimental penal, nada é diferente. Afinal, o procedimento penal não passa de uma concretização do processo - do «devido processo legal» [CF/1988, art. 5º, LIV] - em função das especificidades do direito penal, que é o direito material aplicável; não é propriamente instrumento, método ou ferramenta à aplicação do direito penal, mas garantia a que essa aplicação não se faça de maneira arbitrária. Tanto o órgão acusador quanto o órgão defensor são partes e, por conseguinte, titulares de liberdades [freedoms] e de «liberdade» [liberty]. Nem se afirme que o Ministério Público não as tem. O sistema de direito positivo vigente houve por bem impedir que a investigação, a acusação e o julgamento se fizessem pelo mesmo órgão; por isso, reservou a investigação ao Estado-administração (i. e., ao órgão da Polícia Judiciária), a acusação ao Estado-ministerial (i. e., ao órgão do Ministério Público) e o julgamento ao Estado-jurisdição (i. e., ao órgão do Poder Judiciário). Nesse sentido, o MP entra aí como benfazeja «creación artificial» (AROCA, Juan Montero. Principios del proceso penal. Valência: Tirant Lo Blanch, 1997, p. 49-50; idem. Processo penal y Libertad. Navarra: Aranzadi, 2008, p. 119 e ss.). De toda forma, sendo parte no procedimento penal, não obstante pública, e sujeitando-se assim à jurisdição penal e aos eventuais arbítrios que dela possam decorrer, deve o MP ostentar garantias constitucionais contrajurisdicionais (direito ao juiz natural, à isonomia, ao contraditório, à fundamentação das decisões judiciais, ao devido processo legal, ao duplo grau de jurisdição, à publicidade, à duração razoável do processo, à reclamação às ouvidorias de justiça etc.). Se assim é, tanto a acusação quanto a defesa têm, e. g., as liberdades de alegar fundamentos de fato, alegar fundamentos de direito, formular pedidos, provar os fatos alegados como fundamento, indagar às testemunhas, inquirir o acusado, convencer e recorrer, sem que o juiz penal se intrometa nesses exercícios. O juiz penal não pode introduzir fundamento, deduzir pedido, produzir prova, conduzir indagação, eduzir confissão, induzir convicção, aduzir impugnação e entreduzir recurso. Pouco importa que se trate de iniciativas pro accusatione ou pro accusatis. Acusação e defesa têm igualmente direito a um juiz impartial e imparcial. Frise-se: o procedimento penal serve não só ao acusado, nem só à acusação, mas a ambos, indistintamente, porque serve às partes tout court; serve-as contra os eventuais arbítrios da jurisdição. Não se trata de um instrumento de perseguição criminal pro societate (como querem os punitivistas), nem de uma garantia de soltura pro reo (como querem os abolicionistas), mas de uma proteção contra-arbitrária (aliás, o termo garantia significa precisamente isto: proteção contra arbítrio). E pode haver arbítrio jurisdicional em prejuízo tanto da acusação [ex.: absolvição por cerceamento de prova incriminatória, falta de fundamentação em rejeição de denúncia, denegação de seguimento a recurso admissível, revogação ex officio de prisão preventiva] quanto da defesa [ex.: condenação por cerceamento de prova inocentatória, falta de fundamentação em recebimento de denúncia, denegação de seguimento a recurso admissível, decretação ex officio de prisão preventiva].

Se o juiz penal ignora a «liberdade» das partes e se apropria de liberdades das partes (ordenando de ofício, por exemplo, prova inocentatória), ele perde a impartialidade (pois favorece funcionalmente o acusado) e, portanto, tende a perder a imparcialidade (pois tende a supervalorizar a prova que produziu e desvalorizar eventual contraprova). Por sua vez, se o juiz penal não tem imparcialidade [ex.: juiz cônjuge da acusada], ele tende a perder a impartialidade, ignorar a «liberdade» das partes e apropriar-se de liberdades das partes, favorecendo funcionalmente o polo para a qual pende [ex.: ordenar de ofício prova inocentatória]. Ainda que não se possa antever quem se aproveitará da prova per officium iudicis, há quebra de impartialidade, pois sempre tira proveito a parte que tinha o ônus de provar, entretanto, não provou; ou seja, o juiz penal não sabe quem se beneficiará, mas sabe exatamente quem quer beneficiar (cf., p. ex., OAKLEY, Hugo Botto. La congruencia procesal. Santiago de Chile: Editorial de Derecho, 2007, p. 302). Logo, é inconstitucional a iniciativa oficial probatória em qualquer situação, seja em favor da acusação, seja em favor da defesa (sobre a inconstitucionalidade da prova de ofício: OAKLEY, Hugo Botto. La inconstitucionalidad de las medidas para mejor proveer. Santiago de Chile: Fallos del Mes, 2001). Não se pode circunscrever a doutrina procedimental penal a uma doutrina defensória de libertação à tout prix. Isso seria confundir «liberdade» e liberdade com livramento. Processo é garantia de «liberdade» e de liberdade, não de livramento. Livramento é antônimo de reclusão, encarceramento, encarceração, enclausuramento, encerramento, aprisionamento, recolhimento. No entanto, o direito procedimental penal não se insurge contra as prisões em si, mas contra as prisões arbitrárias e contra os tantos outros arbítrios não-prisionais que possam prejudicar a defesa ou a acusação. Entendimento contrário estabeleceria a inconcebível figura da «partialidade positiva pro reo» (a qual implicaria, por consecução lógica, a inconcebível figura da «partialidade negativa contra accusatione). Embora respeitabilíssimas, teses como o custos vulnerabilis, a irrecorribilidade da absolvição pelo órgão acusador e a clemência contrária à prova dos autos pelo tribunal do júri não configuram autêntica interpretação-aplicação da lei, porém exercício heterotópico de política de descriminalização. É bem verdade que, por força do primado da liberdade sobre a autoridade, há uma pouquidade de ações impugnativas e recursos que são privativos da defesa [embargos infringentes e de nulidade, habeas corpus e revisão criminal]; entretanto, essa excepcional assimetria anti-isonômica se pode estabelecer tão somente dentro da lei, não apesar dela. O juízo de ponderação ou balanceamento entre a liberdade e a autoridade é in-nexado à lei pelo legislador, não ad-nexado a ela pelo juiz; é realizado antes da edição da lei [momento pré-legislativo], não quando de sua aplicação [momento pós-legislativo ou jurisdicional]. Afinal, ainda se vive em um Estado democrático-parlamentar de direito legislado [CF/1988, preâmbulo e artigos 1º, caput, e 5º, II], não em um «Estado aristocrático-tribunalício de direito jurisprudencial».

É chegado o tempo de se erradicar o «garantismo processual ad hoc», aceito pela metade, como mero artifício de argumentação, segundo conveniências de momento, que aqui e ali goteja de improviso em arrazoados forenses. Quem aceita as premissas garantistas, há de aceitar todas as suas consequências, ainda que uma vez por outra colidam com sentimentos pessoais de justiça e equidade. Nisso reside a coragem da coerência. É preciso que a processualística seja menos advocacia que doutrina, menos eloquência que ciência, menos postulação que explicação, menos tópica que sistemática, menos pragmática que analítica, menos retórica que lógica, menos emoção que razão, menos moral que direito, menos princípio que regra, menos fluidez que fixidez, menos subjetividade que objetividade, menos informalidade que formalidade, menos vontade que realidade. O livramento [deliverance] é apenas uma das vias ocasionais para o gozo da «liberdade» [liberty] e da liberdade [freedom]. Comete reprovável metonímia intelectual quem toma uma coisa pela outra.

 

Imagem Ilustrativa do Post: DSC_5457.jpg // Foto de: Robert // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/rrachwal/26017459914/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura