A negociação, a mediação e a constatação prévia na reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência

03/06/2021

Discussões sobre a reforma da legislação falimentar não são exclusivas para o Brasil. Entre 2005 e 2006, por exemplo, a Itália aprovou duas leis para reformar sua lei de insolvência de 1942, com notável inspiração na legislação falimentar estadunidense, de forma a facilitar a reorganização empresarial.

No Brasil, as discussões e pleitos para a reforma da Lei nº 11.101/2005 (LRE) demandaram anos, com diversos pontos sendo destacados por especialistas como merecedores de revisão pelo Poder Legislativo. A reforma veio em 2020, com a promulgação da Lei nº 14.112/2020, oriunda do Projeto de Lei nº 4.458/2020, a qual entrou em vigor 30 dias após sua promulgação, começando a produzir efeitos em 24 de janeiro de 2021.

Antes da entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020, ponderamos sobre alguns aspectos fundamentais da reforma, estabelecemos uma ordem cronológica dos acontecimentos e destacamos a importância do uso das ciências comportamentais para dar solidez aos processos decisórios[i].    

Neste momento, já com a entrada em vigor da lei, a tarefa é outra, cabendo pontuar que, dentre as importantes alterações que ela trouxe para o sistema falimentar brasileiro, incluem-se a previsão de dispositivos sobre falência transnacional (Capítulo IV-A), permitindo a cooperação entre juízes brasileiros e do exterior, viabilizando-se, na prática, o alcance do patrimônio do empresário fora do Brasil; o incentivo ao uso de meios consensuais de solução de litígios (especificamente a mediação e a conciliação) em processos de insolvência (artigo 20-A), e a possibilidade de apresentação de plano alternativo de recuperação judicial pelos credores, em caso de desaprovação do plano apresentado pelo devedor, conforme artigo 56, § 4º.

O citado artigo 20-A corrobora com a visão que articulamos no mencionado texto que precedeu a este, no sentido de que a Lei Concursal Brasileira envolve vários processos decisórios, a serem demandados por diferentes agentes econômicos. Administrar diversos interesses em conflito é, de fato, um grande desafio, e assumir a autocomposição como regra, utilizando-se de meios alternativos em seu grau máximo, acarreta menos perdas para o ambiente de negócios, onde se insere a empresa recuperanda.

Observe-se, adicionalmente, que o legislador criou uma Seção exclusiva (Seção II-A) para tratar das conciliações e das mediações, que poderão ser antecedentes ou incidentais aos processos de recuperação judicial, além de que, instituiu-se, como dever do administrador, o de estimular, sempre que possível a conciliação, a mediação e outros métodos alternativos de solução de conflitos (art. 22, inciso I, alínea j). O que ainda está pendente de uma análise mais aprofundada, pelos teóricos da AED e de outras ciências comportamentais, é se de fato a nova lei concursal traz incentivos capazes de estimular a cooperação entre os diversos agentes econômicos que se envolvem em um processo recuperacional. Sem incentivos, não há cooperação e, portanto, ineficientes os caminhos pela conciliação e mediação. Deste modo, a criação de uma estrutura de incentivos é fundamental, e deve contemplar todos os sujeitos, não apenas as partes, mas o administrador, o juiz, o advogado, dentre outros.

Outra importante inovação, também aderente ao tema proposto, foi a previsão do instituto tradicionalmente chamado de perícia prévia pela doutrina e pela jurisprudência. Agora positivado como constatação prévia no artigo 51-A, trata-se de uma espécie de prova solicitada pelo juízo da recuperação judicial, para se averiguar as “reais condições de funcionamento da requerente e da regularidade e da completude da documentação apresentada com a petição inicial”.

No momento do despacho de deferimento do processamento da recuperação judicial, o juízo pode solicitar a realização dessa perícia especializada, que tem como objetivo uma verificação objetiva a respeito “das reais condições de funcionamento da empresa e da regularidade documental”, considerando-se que é vedado ao juiz indeferir o processamento da recuperação judicial com base na inviabilidade econômica do devedor (§ 5º).

Anteriormente sem previsão legal, muito doutrinadores vieram a criticar o que consideraram um uso excessivo desse instituto (perícia prévia) por parte de juízes, sob o argumento que a decisão de deferimento da recuperação deveria se dar exclusivamente pela análise de adequação da documentação listada no artigo 51 da LRE, não podendo o juízo se basear em outros fundamentos, especialmente de cunho econômico, para indeferir o processamento.

Agora, com previsão legal expressa no sentido de que a decisão de deferimento da recuperação não pode se basear em fatores econômicos, espera-se que a constatação prévia não seja utilizada para fundamentar decisões de indeferimento de recuperações judiciais.

É possível analisar a constatação prévia, bem como verificar sua utilidade, com base na economia comportamental. Esse ramo da ciência econômica, ao contrário de outras vertentes, não tem como fundamento a teoria da escolha racional, entendendo que seres humanos são falhos e tomam decisões que, nem sempre, atingem seus principais interesses, com base em uma análise de custo-benefício.

A economia comportamental utiliza as categorias de vieses, que são distorções no julgamento que temos, e heurísticas, que são atalhos mentais que utilizamos nos processos mentais. O conceito de viés é particularmente útil para estudar a utilidade da constatação prévia.

Um dos principais vieses do pensamento humano é o otimismo em excesso, que nos leva a superestimar nossa capacidade de realizar determinados atos ou as chances que temos de eventos acontecerem, ou não, conosco. Por exemplo, mesmo que as estatísticas de processos de recuperação judicial que obtêm sucesso sejam baixas (um estudo avaliou essa chance em 18,2%[ii]), devedores ainda ingressam com essas demandas, acreditando que seus processos serão diferentes e que conseguirão se reerguer da crise.

O excesso de otimismo por parte de devedores pode os levar a redigir petições iniciais, bem como planos de recuperação, irreais, que criem um cenário muito favorável para a recuperação da crise quando, em realidade, a situação econômico-financeira real era de impossibilidade de recuperação, cenário em que seria mais eficiente a maximização dos ativos e pagamento dos passivos de forma organizada, por meio de uma falência.

A constatação prévia, que possui o objetivo exclusivo de averiguar as reais condições de funcionamento do estabelecimento e a regularidade documental que foi apresentada junto à petição inicial, pode servir como auxílio para que credores nesses processos tomem melhores decisões a respeito da aprovação ou da reprovação do plano apresentado. Ela servirá como uma prova objetiva produzida por um especialista, sem informações enviesadas por parte do devedor.

Pode-se presumir, com base na chamada teoria do prospecto, que credores tomarão decisões diferentes a depender do ponto de partida e da quantidade de informações que lhes for fornecida no começo do processo e que, quanto mais claras e mais completas forem, menores serão as assimetrias informacionais e melhores decisões tomarão, no sentido de maximizarem seus interesses.

A perícia prévia (constatação prévia) nos pedidos de recuperação judicial, antes da nova lei, já foi objeto de outro texto publicado na Coluna Empório, oportunidade em que se criticou o uso indiscriminado, e em cuja conclusão, estabeleceu-se o seguinte: “pondera-se que a ideia de se realizar a perícia prévia pode contribuir para uma interpretação mais acurada, pelo juiz, no que diz respeito à interpretação dos documentos contábeis, sendo, excepcionalmente, admitida, em caso muito particular, porém, desde que haja alteração legal específica para tal, que contemple não apenas o método que será utilizado, mas também a metodologia melhor para aferição do resultado, com base na experiência do expert”[iii]

Entende-se, deste modo, que serão necessários anos de aplicação e aperfeiçoamento da jurisprudência para verificar o sucesso das alterações promovidas pela Lei nº 14.112/2020, porém há motivos para juristas se manterem otimistas com as inovações trazidas, dentre elas a previsão legal da constatação prévia, para evitar seu uso exacerbado por parte de juízes e como uma potente ferramenta comportamental para auxiliar credores a tomar decisões em processos recuperacionais. Espera-se, assim, o uso racional deste instituto, pois somente bem utilizado e com as metodologias adequadas, servirá de suporte para a tomada de decisão dos agentes econômicos envolvidos na lide recuperacional.

 

Notas e Referências

[i] CASTRO, Carlos Alberto Farracha de e ZOLANDECK, João Carlos Adalberto. Empório do Direito. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/desafios-da-reforma-da-lei-concursal-brasileira-sob-a-optica-da-analise-economica-do-direito-aed>Acesso em 02 junho 2021.

[ii]Disponível em <  https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/09/15/em-sp-quase-60-das-empresas-em-recuperacao-judicial-viram-zumbis.htm>Acesso em 02 junho 2021.

[iii] ZOLANDECK, João Carlos Adalberto e VIEIRA, Lucas Vasconcelos. Empório do Direito. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/pericia-previa-nos-pedidos-de-recuperacao-judicial>Acesso em 02 junho 2021.

 

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