Desafios da Reforma da Lei Concursal Brasileira sob a óptica da Análise Econômica do Direito (AED)  

25/06/2020

No Brasil, o regime jurídico de recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária é regulado pela Lei n.º 11.101/2005. Infelizmente, tratou tão somente do empresário, olvidando-se dos agentes econômicos em geral.

Embora esse diploma ainda não possua vinte (20) anos, em 2018, o Poder Executivo tratou de encaminhar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei tombado sob o n.º 10.220/2018, ancorado em dois argumentos centrais, a saber: — aperfeiçoar o sistema de recuperação de créditos e de proteção aos credores; — garantir previsibilidade, transparência e celeridade ao processo concursal, repercutindo em mais eficiência tanto às empresas que devem ser recuperadas como àquelas que não têm viabilidade. Sucede que a versão final do projeto era tão distorcida dos seus fundamentos iniciais, inclusive com uma proteção exacerbada ao fisco, que conseguiu um efeito inesperado: a sociedade organizada em geral (empresários, empregados, bancos, dentre outros) manifestaram posição contrária à sua aprovação[i].

Perplexa com o projeto de lei n.º 10.220/2018, a sociedade organizada criou um grupo de trabalho englobando entidades acadêmicas, financeiras, empresariais e estatais que possuem interesse em uma legislação concursal célere, transparente e efetiva.

Em 2019 ressurgiram a preocupação e o interesse em reformar a atual legislação de recuperação de empresas e falência. Não houve, no entanto, a remessa de um novo projeto de lei, mas a decisão de aproveitar a tramitação em curso do PL 10.220/18 na Câmara Federal.

Foi desta forma, com a participação da sociedade organizada, procuradores da Fazenda Nacional, ministros do Superior Tribunal de Justiça, economistas, advogados e juristas, que se concluiu pela aprovação da matéria na forma do substitutivo ao PL 6.229/05, que tramita em conjunto com o PL 10.220/2018, tendo sido, inclusive, aprovado pela Câmara Federal, em sessão deliberativa extraordinária, o requerimento 2763/19, que prevê o regime de urgência para apreciação desse tema.

Dentre as principais novidades, o projeto de lei prevê que as empresas em crise financeira possam negociar suas dívidas com a Fazenda Nacional. Em outras palavras, se aprovada, possibilitará, às empresas em recuperação judicial, condições especiais para o pagamento das dívidas fiscais. De acordo com o projeto, os empresários em recuperação poderão quitar seus débitos com o fisco por parcelamento em até 120 (cento e vinte) meses, com deduções no débito principal. Poderão, outrossim, utilizar créditos decorrentes de prejuízo fiscal para abater parcela da dívida. Todavia, também, consta do projeto questão polêmica, ao permitir que o Fisco possa pedir falência na hipótese de os empresários não cumprirem com os parcelamentos fiscais. Esse ponto tem suscitado fervorosos debates no Parlamento.

O PL trata também sobre a falência transnacional, permitindo cooperação entre juízes brasileiros e do exterior, sendo que um dos efeitos práticos será a possibilidade de alcançar o patrimônio que o empresário possua fora do Brasil. E mais, outorga maior segurança jurídica ao comércio e investimento, sem olvidar o combate às fraudes. Em síntese, adota as regras da Uncitral (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional) nessa temática. Esse ponto constitui uma novidade na legislação brasileira.  Mas não é só.

Além da preservação da empresa economicamente viável[ii], o referido PL busca implementar “uma célere liquidação dos ativos da empresa que for verdadeiramente ineficiente, permitindo em decorrência a aplicação mais produtiva dos recursos; apostando, ainda na reabilitação de empresas que realmente forem viáveis e com a adoção de mecanismos para a remoção de barreiras legais para que empresários falidos – que não tenham sido condenados por crimes falimentares – possam retornar ao mercado tão logo após o trânsito em julgado da sentença que decretar o encerramento da falência[iii].

A reforma em questão estabelece a supressão de procedimentos desnecessários, incentivando o uso de meios eletrônicos de comunicação, a profissionalização dos administradores judiciais e especialização dos juízes encarregados do julgamento dos processos de recuperação e falência, tanto que determina a criação de varas especializadas nos Tribunais brasileiros.

Por óbvio, qualquer reforma na legislação suscita dúvidas e críticas, especialmente diante da Lei Concursal, que completa 14 anos, e muitas questões fundamentais ainda estão pendentes de consolidação pelo STJ, destacando-se aquelas voltadas ao agronegócio, a liberação de coobrigados, a conceituação de bens de capital e de essencialidade do bem, dentre outros aspectos. Essa dificuldade é estimulada por interesses divergentes, levando parte relevante dos estudiosos sobre o tema, inclusive Ministros do STJ, a encaminhar críticas no sentido de que agora não seria ainda o momento para alterações[iv]. Outra crítica diz respeito ao fato de que a reforma não trata do agente econômico. Isto quer dizer que ainda se mantém a vetusta dicotomia sujeito empresário e não empresário, o que é inadmissível. É fato que não se pode mais tratar apenas do sujeito empresário e, sim, do agente econômico. Afinal, o núcleo essencial do direito da insolvência compreende a recuperação ou liquidação dos agentes econômicos e todos os efeitos causados à sociedade em geral. Prova disso é que a legislação da insolvência tutela normas obrigacionais, processuais, trabalhistas, penais, dentre outras.

Ocorre que, durante esse debate legislativo, consumou-se um fato imprevisível: em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu o estado de pandemia mundial instaurado pelo COVID-19, cujas repercussões nefastas, derivadas dessa crise mundial econômica e sanitária, são imensuráveis. Para se ter uma simples ideia, segundo levantamento do Serasa Experian, o número de pedidos de recuperação judicial entre as Companhias Brasileiras cresceu 46% no mês de abril em relação ao mês de março deste ano. O setor de serviços foi o mais afetado e representa 76%[v]. Lembre-se que a crise econômica iniciada no ano de 2014 repercutiu em forte recuo do PIB nos anos de 2015 e 2016 (7%), ocasionado um aumento exponencial dos pedidos de recuperação judicial, a exemplo do mês de abril de 2016 que registrou um aumento histórico de 94,8%[vi].

Surge, pois, o Projeto de Lei 1397/2020, aprovado tardiamente pela Câmara dos Deputados, que cria o sistema de prevenção à insolvência, com a finalidade de minimizar o impacto do isolamento social causado pelo Covid-19, evitando que outras empresas formalizem pedidos de recuperação judicial ou até mesmo de falência. Assim, a reforma substancial da Lei n.11.101/2005, pretendida pelo PL 6.229/05, fica esquecida.

Não obstante, o PL 1397/2020 propõe flexibilizações às obrigações do devedor, tais como: suspensão por 30 dias, após a publicação da lei, de execuções e cobranças de obrigações vencidas após 20/03/2020; impossibilidade de decretação de falência; impossibilidade de despejo no mesmo período; ausência de mora; a possibilidade de negociação prévia (extrajudicial), dentre outras. E mais: é aplicável a qualquer devedor, seja empresário individual, pessoa jurídica de direito privado, produtor rural ou profissional autônomo. Estão incluídas as empresas com menos de dois anos de existência, que, pela lei anterior, não teriam esse direito. A proposta é uma tentativa de possibilitar a criação de um ambiente de negociação extrajudicial entre os credores e devedores, antes do processo de recuperação judicial. Caso aprovado e sancionado terá vigência até 31/12/2020, sendo limitado o marco temporal. Todavia a mora legislativa, praticamente, está prejudicando todos os efeitos desse projeto.

Feitas as considerações acerca da Lei Concursal a contar da entrada em vigor da Lei n.º 11.101/2005 e sobre a atual pauta, em um momento de crise econômica e sanitária, é possível partir da Análise Econômica do Direito (AED) e refletir sobre a eficiência da norma jurídica em seu objetivo fim. Percebeu o legislador, o Poder Judiciário, o empresário e quem milita nessa área que a respectiva norma concursal, tal como construída, não traz incentivos para empreender, diante dos elevados riscos e custos de transação a que submete o empresário. Trata-se de uma questão comportamental, pois envolve vários processos decisórios, não apenas do juiz na avaliação de um caso concreto, submetido ao sistema de recuperação judicial ou de falência, mas das partes daquela relação. De um lado a empresa recuperanda, o empresário, trabalhadores, e, de outro, o conjunto de credores, em um ambiente de mercado.

Administrar todos esses interesses para obter um resultado eficiente constitui um grande desafio, logo controlar os agentes econômicos envolvidos e interferir de forma proativa em seus processos decisórios implica a utilização não apenas do direito e da economia, mas da neurociência, da ciência política e da psicologia.

A economia faz perceber o direito de uma nova maneira, de um lado sob o ponto de vista do clássico provedor de justiça e, de outro, como um conjunto de normas a estimular e a induzir comportamentos que favoreçam o alcance dos objetivos-fins de uma Nação, a partir de políticas públicas mais eficientes e distributivas, servindo, assim, portanto, ao profissional do direito. O direito serve, igualmente, aos economistas, na medida em que estes podem se apropriar de técnicas e teorias, como, por exemplo, da complexa teoria do direito contratual para criar modelos mais próximos da realidade, com maior taxa de previsibilidade[vii], assim como da complexa teoria da Lei Concursal para compreender as estratégias empresariais aplicadas ao mercado, quando deparam com a empresa em crise.

Neste contexto, para que se possa criar um ambiente favorável no âmbito empresarial, com a geração de riquezas, alocação de investimentos e novas tecnologias, faz-se necessário que o sistema jurídico brasileiro seja compatível com o núcleo essencial do direito da insolvência, que compreende tanto a recuperação, mantendo-se a fonte produtora e preservando as atividades econômicas, quanto a liquidação dos agentes econômicos, além da minimização dos efeitos maléficos da insolvência causadas à sociedade em geral.

Em muitas situações-hipóteses o referido núcleo central não é observado pelas dificuldades criadas pela própria norma jurídica, ineficiente, portanto para os efeitos práticos desejados, repercutindo em ineficácia. É o caso, por exemplo, das hipóteses previstas nos artigos 6º, parágrafo 7º, e 57 da Lei em comentário, que impedem, respectivamente, a suspensão das execuções fiscais em curso e exigem a apresentação de certidões negativas de débitos tributários para o efeito de concessão da pretensão recuperacional. Nestes pontos, o legislador não fez um estudo coerente dos impactos e das externalidades negativas, pois tais conteúdos contrariam os postulados pertencentes ao núcleo central dos sistemas de controle da insolvência, ancorado no princípio da preservação da empresa e nas condições para o soerguimento, nos termos do artigo 47 da Lei 11.101/2005.

Esses entraves não precisam esperar a consolidação da interpretação de outros temas e conceitos no âmbito dos tribunais, como anteriormente relatado, cabendo ao legislador efetivar alterações pontuais das normas geradoras de externalidades negativas. Explica-se: em qualquer análise séria dos impactos e das consequências, a exclusão dos créditos tributários em razão da não suspensão das execuções fiscais em curso implica, invariável e rotineiramente, inviabilidade econômica para que a empresa recuperanda cumpra com o plano de recuperação. Por sua vez, a inviabilidade da recuperação ou até mesmo de acesso a ela, ainda que no âmbito do processo decisório do empresário, faz cessar a atividade produtora e, também, por consequência óbvia, a geração de receitas e de tributos dali derivados, considerando-se toda a cadeia produtiva. Que inteligência normativa é essa?

Desta perspectiva bifocal pode-se perceber que o direito e a economia se encontram, servindo, esta, como uma ciência auxiliar. A AED é capaz de dar norte, orientar o processo decisório, pois ancorar-se em conceitos econômicos e perceber o direito de uma maneira diversa fazem toda a diferença no caso concreto, já que todo o processo decisório estará orientado por verdadeira gestão sobre os riscos, os custos de transação (processuais e extraprocessuais), as externalidades, as consequências e impactos deste ou daquele posicionamento, desta ou daquela norma jurídica ou decisão. De fato, praticar a AED no dia-a-dia de seu mister mostrará como são gratificantes os resultados que emanam desta primorosa convergência e da intimidade entre esses dois saberes.

No texto anteriormente publicado nessa coluna Empório do Direito, destacamos a importância da mediação e da prioridade pela autocomposição no equilíbrio entre a perspectiva da recuperação de créditos e da recuperação da empresa[viii]. Como visto acima, o PL 1397/2020 prevê a possibilidade de negociação prévia (extrajudicial). Para isso, é necessários criar ambientes cooperativos.

Sob o título cooperação levada a sério, Erik Navarro Wolkart destaca que o comportamento cooperativo serviria como antídoto à tragédia da justiça, a partir da união de esforços em prol de benefício comum, cujo conteúdo deveria abranger o compromisso dos sujeitos capazes de auxiliar o sistema como um todo, para que fosse possível proferir tempestivamente tutelas justas e efetivas[ix].

A proposta de soluções cooperativas deveria ser prioridade em qualquer alteração da Lei Concursal, porém se observa que isso é incipiente, faltando aos respectivos projetos conteúdo cooperativo e ambientes formativos, até mesmo para corroborar a previsão contida no artigo 6º do CPC/15.

Segundo o autor antes citado (Erik Navarro, p. 231), a cooperação acarreta o funcionamento suave e efetivo da máquina da justiça, porém ressalva que, no mundo real, caberá investigar quais seriam os incentivos cooperativos capazes de, ao menos, apontar para soluções eficientes. No caso em análise, não há como desprezar o ambiente coletivo, pois há o envolvimento de muitos agentes econômicos, unidos a um propósito comum, em cujo contexto os interesses individuais não devem se sobrepor aos coletivos. Porém, para que isso ocorra o legislador deverá criar uma estrutura séria de incentivos para as duas pontas dessa relação, reavaliando-se, inclusive, a classificação dos créditos e a coerência ou não de submissão de todos ao regime concursal, considerando-se o princípio da preservação da empresa ou a liquidação menos ruinosa, com o menor custo social possível.

Conclui-se, pois, que, a despeito de inúmeros projetos de lei, de fato, alguns temas relevantes e polêmicos não estão sendo tratados na reforma da legislação de falência brasileira, destacando-se a ausência de estruturas de incentivos, para que propósitos caros e comuns tenham perspectivas de concretização. Espera-se, de fato, que a reforma da legislação em andamento propicie novos horizontes ao direito concursal brasileiro.

 

Notas e Referências

[i] Texto inspirado na exposição de motivos do referido PL.

[ii] O referido PL afasta a preservação da empresa a qualquer custo. Ou seja, busca afastar a proteção àquela empresa ineficiente ou inviável.

[iii] Cf. relatório do Deputado Hugo Leal ao Projeto de Lei n.6.229 de 2005, cujo regime de urgência foi aprovado na Câmara Federal, nos termos do requerimento n.2763/2019.

[iv] BEZERRA FILHO, Manoel Justino. In A Reforma da Recuperação Judicial. Jornal Valor Econômico, 21/11/2019, caderno E2.

[v] Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/business/2020/05/26/pedidos-de-recuperacao-judicial-crescem-46-em-abril-veja-como-funciona.>Acesso em: 23 junho 2020.

[vi]  SALOMÃO, Luis Felipe. https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/04/coronavirus-e-a-recuperacao-de-empresas.shtml.>Acesso em: 23 junho 2020.

[vii]  COOTER, Robert e ULEN, Thomas. Direito e economia. 5ª ed. São Paulo: Bookman, 2010, p. 33.

[viii]Empório do Direito. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/a-recuperacao-de-credito-e-a-mediacao-no-ambito-do-processo-de-recuperacao-judicial-covid-19>Acesso em: 23 junho 2020.

[ix] WOLKART, ERIK NAVARRO. Análise econômica do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 230-231.

 

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