#74 - Garantismo e publicismo processuais: devemos atentar para as premissas filosóficas!  

10/08/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

O debate entre o garantismo e o publicismo tem sido um dos temas clássicos no direito processual, quer pela doutrina mais voltada ao âmbito cível, quer no âmbito criminal. Nada obstante, apesar dos grandes esforços teóricos, parece que ainda continua a ser necessário levar adiante trabalhos com uma pretensão mais analítica a fim de enquadrar devidamente o debate. Nesta seara, pelo menos é possível identificar três discursos muito diversos sobre o debate publicismo/garantismo: o histórico, o filosófico e o institucional. Cada um deles, em nossa visão, adquire traços muito particulares, premissas diversas e, também, conclusões que não necessariamente são compatíveis entre si.

Neste breve texto, falaremos sobre o discurso filosófico, entendendo-o como um esforço (meta)teórico com pretensão fundamentalmente conceitual e que visam a transcender à explicação de um sistema jurídico específico. No discurso filosófico existem diversos enfoques (como aquele de Mirjan Damaška), mas nos parece que o principal é centrado na vinculação entre Constituição e o modelo de processo desenhado por ela.

Especificamente, neste debate, estabelecem-se as principais características do fenômeno do constitucionalismo e, a partir daí, se identificam os diversos elementos dos modelos constitucionais de processo. Assim mesmo, como sói acontecer com teorias filosóficas, é possível encontrar teses descritivas e teses prescritivas (ou normativas), isto é, pretensões que fundamentalmente visam a salientar as características dos modelos e, a partir daí, retirar diversas conclusões, e pretensões que, pelo contrário, oferecem razões que, desde uma perspectiva de justificativa, levam a afirmar que o modelo defendido é o melhor possível diante de outros.

Nesse exato ponto, o discurso adquire uma particular complexidade, porque existem diversas formas de entender o conceito de constitucionalismo. Sem prejuízo de reconstruções históricas, surgiram teorias sobre o conceito do direito elaboradas posteriormente à Segunda Grande Guerra, que significaram um ataque ao positivismo ideológico do século XIX – como por exemplo, as teorias antipositivistas (o assim chamado «neoconstitucionalismo» ou os estudos da tópica), o positivismo jurídico inclusivo, o neojusnaturalismo - ou, ainda, outras correntes do positivismo, que continuam a abraçar teses epistemológicas do direito, mas rejeitam as teses ético-normativas.

Isto é muito relevante para o debate publicismo/garantismo no âmbito filosófico, já que a partir de uma maior ou menor abertura do direito para a moral, essas teorias sobre o conceito de direito acabam por reconfigurar os limites da atuação da jurisdição, seja no momento de interpretar o direito (diferenciando, por exemplo, a interpretação da Constituição e a interpretação da lei), seja na própria posição do Estado-juiz diante dos outros poderes do Estado.

De outro canto, há algumas décadas, existe um forte debate na seara da filosofia política, no qual se identificam duas grandes perspectivas no entendimento sobre a tensão entre o constitucionalismo e a democracia: a prevalência dos direitos como limitação ao poder das maiorias parlamentares, sob a égide da liberdade como controle do poder; e a prevalência do autogoverno das pessoas de uma comunidade política, mediante uma representação em órgãos majoritários e, portanto, a possibilidade de decidir sobre direitos, não sendo esses últimos precondições da democracia[1]. Tudo isso sob a égide da liberdade como não dominação.

Assim, uma concepção do constitucionalismo de direitos se revela compatível com um papel estelar do juiz na proteção dos direitos, alçando mão do controle de constitucionalidade para se afastar da aplicação da lei; já uma concepção do constitucionalismo democrático se mostraria particularmente favorável à deferência do juiz para o legislador, com a correspondente sujeição à lei democraticamente instituída.

Destarte, é bastante usual na doutrina processual, assumir como premissa o constitucionalismo de direitos ou, ainda, o «modelo do Estado constitucional» ou a «passagem do Estado de direito para o Estado constitucional», mesmo sendo esse um termo muito polissêmico e com profundas implicações na teoria e filosofia do direito do século XX que merecem ser esclarecidas[2]. A partir daí, sói compreender-se o processo como meio de tutela/proteção das situações jurídicas subjetivas mediante o respeito dos direitos fundamentais e/ou as garantias das pessoas pelo Estado. No entanto, a necessidade de proteção de direitos e garantias pelo/no processo pode ter diversos entendimentos.

Com base nisso, possível distinguir dois grandes modelos filosóficos sob os quais se reúnem um amplo conjunto de diversas teorias e teses sobre o modelo constitucional de processo: o «publicismo» e o «garantismo».

Dentro do publicismo é possível encontrar uma série de entendimentos diversos entre si, mas, de alguma maneira, complementares. Tratam-se de teses que defendem que o processo visa à efetiva/adequada tutela dos direitos, à aplicação do direito objetivo, à proteção do interesse público, à busca pela verdade material ou à paz social. O processo seria, então, um instrumento para o exercício do poder do Estado, em específico, do poder jurisdicional[3]. Em geral, concebe-se o Estado como o grande prestador da tutela no contexto de um serviço público (a justiça estatal) que é suportado pelos cidadãos, incluindo-se, também, o anseio pela efetividade dos direitos. O processo, diz-se, não é das partes nem (tão só) para as partes, mas também – e principalmente – para a sociedade, devido ao interesse que existe na resolução da controvérsia respeitando a ordem jurídica. Assim, se é bem verdade que existe um interesse privado, ele cede (ou deveria ceder) diante do interesse público/social/da nação[4] e não só no âmbito do processo criminal, mas também no direito privado.

A consequência natural de adotar esse modelo é elevar o papel do sujeito que representa o Estado no processo (o juiz) e, por conseguinte, a intensificação dos seus poderes. A esse respeito, existem algumas características nas legislações processuais que adotam, explícita ou implicitamente, esse modelo:

  • Controle inicial da petição inicial, em que o juiz passa a ter poderes discricionários para impedir que demandas condenadas ao fracasso sejam processadas.
  • Possibilidade de correção das postulações, traduzido no iura novit curia, requalificando juridicamente os fatos alegados na demanda, ou a «suplencia de queja deficiente», no âmbito do processo constitucional, que permite uma autêntica adição ou substituição oficiosa dos pedidos[5].
  • Juiz diretor, com o correspondente dever de impulso de ofício do processo
  • O dever de «colaboração processual» do Estado para as partes e das partes entre si, podendo ser objeto de sanção se não o fizerem.
  • Poderes oficiosos, os quais podem ser exercidos sem a promoção do contraditório.
  • Poderes probatórios mediante a incorporação de provas não oferecidas, nem produzidas pelas partes e a dinamização do ônus da prova (por exemplo, nos casos de dificuldade de provar).
  • Adaptabilidade procedimental, permitindo que o juiz possa modificar o procedimento legalmente previsto, adequando-o, segundo seu critério, às necessidades do direito material[6].
  • Restrições à autonomia da vontade das partes, através da consagração de normas que, por sua vez, indicam que as normas processuais são de ordem pública ou que são imperativas e imodificáveis e, em general, uma supressão da possibilidade de negociação entre as partes.
  • Amolecimento ou flexibilização na interpretação e aplicação das normas jurídicas, desde que seja necessário para obter uma decisão justa e adequada.
  • Paridade de oportunidades/armas das partes, sendo dever do juiz equilibrá-las ou igualá-las.

Dentro do amplo espectro de teorias, não é de duvidar que existem muitos matizes, mas aqui a função do Estado é chave: transita desde ser o «proprietário» do processo até assumir uma função prestacional (portanto, ativo, no sentido damaskiano[7]). A premissa filosófica que relaciona essas teses é que – por maior ênfase que se queira fazer na importância do respeito dos direitos fundamentais/garantias das partes (processo justo, direito à tutela efetiva, adequada e tempestiva etc.) – o Estado termina valendo-se do processo para cumprir certos fins, sejam esses políticos, jurídicos ou sociais. Isto leva, necessariamente, a negar que o Estado, diante desta função inexoravelmente ativa, possa ter o processo como uma autêntica contenção para o exercício do seu poder jurisdicional.

Por outro lado, o «garantismo», tal como o publicismo, conjuga uma grande quantidade de teorias e teses; nada obstante, é possível identificar, também, elementos comuns no discurso, mesmo que muitos autores não os explicitem devidamente. Ao nosso ver, eles giram ao redor do entendimento de que o processo é garantia para o cidadão e não para o Estado e nem mesmo para a sociedade. Nega-se (ou reduz-se) qualquer preponderância do interesse público ou social sobre o interesse privado, enfatizando-se a importância da proteção da liberdade como anteparo ao exercício do poder público em geral, não somente das funções da administração e/ou da legislação, mas principalmente do poder jurisdicional, entendido como aquele que, ao resolver um conflito, pode restringir a liberdade e os bens dos cidadãos (restrição que apenas seria viável através de um procedimento edificado a partir das sub-garantias). Por esse motivo, tem se afirmado que o próprio processo é uma «garantia individual contrajurisdicional»[8].

O processo, destarte, não é um instrumento da jurisdição, nem visa a atingir fins políticos, sendo essa concepção um signo de autoritarismo para os defensores de posições garantistas. Diante disso, a administração da justiça deve conduzir-se em pleno respeito pelas garantias, dentre as quais têm papel de destaque a liberdade e a imparcialidade, promovendo uma aplicação do direito sem desvios ou excessos. Como é notório, as teses sobre o garantismo processual soem partir de uma premissa forte do constitucionalismo liberal clássico, qual seja a necessária abstenção do Estado nas liberdades cidadãs, com uma menor ênfase na função prestacional do Estado, mais próprio, por exemplo, dos direitos sociais[9].

Como parece ser claro, o próprio embasamento na teoria política é indispensável para as teses garantistas, já que o discurso sobre a garantia remete diretamente à relação entre Estado e cidadão e, portanto, passa a ser necessário assumir (ou explicitar) uma certa teoria do poder. Nesse caso, pareceria ser defendido um entendimento clássico do poder, sendo definido relacionalmente entre sujeitos: o poder de A implica a não-liberdade de B, a liberdade de A implica o não-poder de B[10]. Assim, no final das contas, o poder reduz-se à possibilidade do exercício da força. Sendo o Estado o principal detentor do poder, ele tem o condão de afetar gravemente a esfera dos cidadãos e, precisamente para isso, existem as garantias como uma contenção do poder, de maneira que ele só possa ser materializado respeitando uma série de parâmetros previamente fixados pelo legislador[11].

Sem prejuízo da descrição dada precedentemente, existem muitos matizes nas teorias chamadas de garantistas. Inclusive, é possível apreciar que há teses tanto normativas quanto descritivas. Por exemplo, reivindicando os ideais do liberalismo clássico, há teses que defendem que o processo é (ou deve ser) das partes, defendendo que o papel do juiz deve ser mínimo, voltado principalmente ao ato da sentença[12]; há outras, pelo contrário, que defendem que o processo não seria das partes, mas para as partes, destacando que o processo se desenvolve necessariamente em um ambiente público[13].

Seja como for, a consequência prática de adotar alguma tese garantista é defender a necessária diminuição dos poderes do juiz e, como decorrência disto, um crescimento dos poderes das partes[14]. Por exemplo:

  • Restrição de espaços de discricionariedade judicial no momento de qualificar as postulações (há uma maior prevalência da legalidade, entendida também como garantia das partes).
  • Forte prevalência por um conteúdo mais exigente da imparcialidade, diferenciando rigidamente entre a função de postular e a função de julgar (proibição de «auxiliar» as partes e interferir na postulação da prova), inclusive com a preocupação de que o julgador se veja afetado por «vieses cognitivos».
  • Toda decisão judicial fica sujeita ao contraditório, forçando o juiz a desenvolver um processo mais dialógico, adicionado com uma maior exigência de motivação.
  • Compreende-se o procedimento legalmente estabelecido como garantia das partes, razão por que o juiz passa a estar restrito à construção procedimental feita pelo legislador.
  • Incrementa-se a possibilidade de negociação processual no que diz respeito a situações jurídicas das partes e, em geral, à conformação do procedimento, desde que sejam somente elas que, em exercício da sua autonomia da vontade, o façam. Fica vedado ao juiz a possibilidade de alterar o procedimento por ser este entendido como uma garantia de legalidade.
  • Paridade de oportunidades/armas para as partes, dado que o juiz não deve favorecer a nenhuma delas com suas atuações de oficio nem ter papel algum na isonomia ou equilíbrio[15].

Assim, essa reconstrução do modelo de garantismo processual já se afasta, desde logo, de teorias já consagradas e construídas também sob o rótulo do garantismo, como aquela de Luigi Ferrajoli, aparecido em contextos muito particulares[16], que também pregam o prestígio das liberdades diante do poder, mas que seriam plenamente compatíveis com um modelo processual publicista. Com efeito, a ideia de garantia, para Ferrajoli, é tutela contra a frustração, ou seja, nos casos em que há violações a direitos reconhecidos pelas normas do sistema jurídico[17]. Quando as garantias de primeiro grau (v. gr. obrigação de prestação, dever de não lesar), destinadas à imediata satisfação do direito, não são respeitadas, lança-se mão das garantias secundárias ou instrumentais para efetivar as primárias e, dessa maneira, reparar o direito, reduzindo o dano causado ou sancionando o responsável. São, portanto, garantias de justiciabilidade, dirigidas às autoridades públicas[18]. A atuação destas garantias secundárias requer uma intermediação: essa intermediação é o próprio processo, em cujo seio se encontram sub-garantias secundárias, tais como o direito de ação, o contraditório, a imparcialidade, a defesa etc.

Um detalhe importante, aliás, é que a obrigação de instituir um devido processo é obrigação/garantia primária de parte do Estado (se isso não for feito, existe a garantia secundária da reparação[19]). A obrigação de instituir o devido processo não se confunde, pois, com a própria garantia do devido processo: aquela é primária; esta, secundária.

De outro lado, note-se que na teoria de Ferrajoli também é muito importante a premissa liberal clássica de minimização do poder para assim prestigiar as liberdades[20]; porém, esse papel abstencionista manifesta-se nas garantias primárias (por exemplo, proibição de violação das normas penais primárias que protegem direitos) e não nas garantias secundárias, em que o Estado tem um papel de prestador. É por isso que, no contexto de atuação das garantias secundárias, processuais ou jurisdicionais, Ferrajoli enfatiza muito a importância da correta aplicação substancial da lei, o que leva à aceitação como verdadeira desde uma perspectiva processual ou aproximativa[21] e, com isso, a jurisdição, como instituição de garantia (e não o processo, que é instrumento), consegue legitimidade democrática[22].

De qualquer forma, algo que é importante salientar é que, os entendimentos teóricos sobre o que significa o constitucionalismo, a relação entre Estado e indivíduo, e, também, preferências ideológicas dos juristas, podem levar a que tanto o discurso publicista como um de corte garantista sejam discursos possíveis sobre o modelo filosófico-constitucional do processo. É claro que existem razões que podem levar a mostrar maiores ou menores inconvenientes em um ou outro, mas o ponto essencial é que se trata de um debate que, por se debruçar em complexas teorias filosóficas e, no final, na visão do papel do Estado diante do cidadão, é vigente e permanente. Para julgar a idoneidade como teoria, o primeiro que deve ser feito, em nossa opinião, é revelar as premissas e elucidar a coerência com as conclusões[23].

Isso leva, portanto, a uma leitura cuidadosa dos autores para chegarmos a manifestar os nossos acordos e desacordos. À guisa de exemplo, não é possível equiparar os discursos de três dos nomes mais famosos do garantismo processual (Franco Cipriani, Juan Montero Aroca e Adolfo Alvarado Velloso). No caso de Cipriani, o seu propósito fundamental não foi criar propriamente uma teoria, mas desmascarar ideologicamente o Codice di Procedura Civile de 1940. Para isso, analisa as bases históricas e ideológicas que subjazem a esse diploma, concluindo que é antiliberal, autoritário e fascista[24]. No caso de Montero Aroca, como profundo seguidor de Cipriani, também parte de uma análise histórica-comparativa para identificar algumas ideologias inspiradoras de certas ordens jurídicas, como é o caso do próprio Codice di Procedura Civile italiano e a Ley de Enjuiciamiento Civil da Espanha[25]. O discurso de Montero também não é propriamente construir uma teoria do garantismo, mas elaborar uma série de críticas contra as legislações e um setor da doutrina publicistas, centrando-se no papel da ideologia no direito processual[26] e, especificamente, na crítica do aumento dos poderes do juiz, pela nítida intenção de ocultar as preferências políticas, através de mera técnica[27].

Já em Adolfo Alvarado se aprecia uma tentativa de discurso filosófico que tem uma pretensão de normatividade. O modelo garantista por ele defendido – um tertium genus entre os velhos modelos clássicos do dispositivismo e inquisitivismo[28] - concebe o processo a partir de duas perspectivas (poderíamos dizer, funcional e estrutural): (a) como uma garantia em si mesmo, consagrado pela Constituição, para defesa das liberdades das pessoas e (b) como método de discussão dialógico, cuja «causa» é o conflito intersubjetivo e a «razão de ser» a erradicação da força ilegítima para promover a paz na sociedade[29]. Esse seria, segundo o autor, o modelo que melhor estaria em conformidade com a Constituição e que prestigiaria melhor as garantias processuais como a imparcialidade, a independência e a igualdade[30]. No final das contas, porém, parece que a tese garantista alvaradiana passa, fundamentalmente, por defender as garantias da Constituição.

Do outro lado da ribeira, destaca-se a conhecida teoria de Cândido Dinamarco[31]. O autor desenha uma autêntica teoria normativa sobre a jurisdição e o processo, em que defende que a teoria do direito processual deve deslocar o seu centro da atenção da ação (como reminiscência de um modelo privatístico) para a jurisdição. A partir daí, o Estado, através da função jurisdicional, cumpre diversos fins, objetivos ou escopos que, segundo Dinamarco, são sociais, políticos e jurídicos. O processo passa a ser compreendido desde uma perspectiva teleológica, como um instrumento para a consecução desses escopos, isto é, instrumento para o exercício do poder público. Como tal, a construção do ato de poder (o principal: a sentença) deve ter legitimação nos seus destinatários e, precisamente por isso, Dinamarco encontra tal legitimação na participação das partes mediante o contraditório. As premissas de teoria política na tese de Dinamarco não estão ocultas; pelo contrário, ficam bem evidenciadas: ele parte de uma doutrina (com grande apogeu no século XIX) em que a sociedade não existe antes do Estado. Este último, através das leis, outorga direitos aos seus cidadãos e eles são, na realidade, súditos do poder estatal, que nada podem fazer para evitar tal submissão[32]. Daí que o juiz, com a missão de cumprir os escopos do Estado, deve possuir amplos poderes de direção e instrução, e também, no contexto da decisão judicial, pode chegar ao ponto de desconsiderar o texto legal para privilegiar valores da nação e seu sentimento de justiça[33].

Finalmente, um caso bastante peculiar é Eduardo José da Fonseca Costa, que constrói uma teoria do garantismo qualificada por ele de uma teoria dogmática[34]. Note-se, entretanto, que o autor parte de um conceito de dogmática muito mais abrangente daquele aqui empregado quando contrapomos o discurso teórico ao dogmático, diferenciados segundo à pretensão de explicação de um sistema jurídico dado. A concepção da que parte Eduardo é a defendida por Tércio Sampaio Ferraz Jr., quem, por sua vez, contrapõe duas visões do direito: uma zetética e outra dogmática, enfatizando que a primeira tem uma função mais informativa e especulativa e a segunda uma visão mais diretiva, isto é, focada na ação e no dever-ser[35]. Esse esclarecimento leva a entender que a teoria garantista de Eduardo, chamada de «garantística»[36] não se limita aos confins do direito processual, mas que constitui um autêntico modelo jusfilosófico normativo do constitucionalismo (tal como o é aquele de Ferrajoli). É normativo porque para o jurista o modelo elaborado e defendido por ele é o mais adequado possível diante de determinados valores (liberdade, democracia). A garantística de Eduardo é teoria sofisticada que parte claramente do entendimento do constitucionalismo como um fenômeno jurídico e político que, por sua vez, se assenta numa teoria política que vê o poder (público) como algo a ser limitado a partir do seu fracionamento horizontal trissegmentado (check and balances) e sua contenção mediante as garantias no nível vertical. Dado que se trata de uma leitura histórico-filosófica do constitucionalismo, a garantística é uma «constitucionalística especializada nas garantias dos cidadãos», que reclama da estruturação conceitual, as bases metodológicas para uma teoria da interpretação específica e fórmulas práticas para efetivação das garantias (analítica garantística, hermenêutica garantística e pragmática garantística).

Porém, partindo da sua própria garantística, Eduardo elabora um outro discurso, dessa vez descritivo, relativo ao Brasil (portanto, de corte dogmático) e voltado ao âmbito do direito processual, já que um dos grandes propósitos do autor é propor uma reinterpretação ou releitura da Constituição Federal brasileira de 1988 e, a partir daí, analisar criticamente a conformação institucional do sistema processual infraconstitucional brasileiro, a doutrina dominante e a prática jurídica e jurisprudencial brasileira. Note-se, consequentemente, que são discursos estreitamente vinculados, mas inconfundíveis: um é o arcabouço conceitual e filosófico do segundo. Precisamente isso é o que faz com que seja uma teoria muito diferente daquelas posições garantistas mais conhecidas.

Uma outra deste texto é que a riqueza do debate também exige o jurista não limitar seu campo de análise aos argumentos que normalmente são levantados, mas perceber que «o buraco é mais embaixo». Assim, dialogar em termos de filosofia do direito (especificamente do direito constitucional), teoria política e filosofia política, pelo menos garantirá a elevação do nível do debate e, portanto, melhores e mais profícuos acordos e desacordos. E isso não é pouca coisa: diríamos nós que quase equivale a uma reinvenção do processualista.

 

Notas e Referências

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* Os autores agradecem os queridos amigos Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho Filho pela troca de ideias e pela leitura e correção de uma versão mais longa deste trabalho. Esperamos que ela, em que explicamos melhor as nossas ideias, seja publicada em breve.

[1] Sobre o assunto, amplamente, cfr. Bayón (2000 y 2004). É neste âmbito do autogoverno que se desenvolvem, por exemplo, diversas teorias da democracia deliberativa. Cfr. Martí (2006).

[2] Um bom esclarecimento a esse respeito tem sido feito por Sotomayor (2020). Do contrário, em nossa opinião, corre-se o risco de não passar de um mero slogan.

[3] Como fica claro no entendimento de muitos juristas: cfr. Dinamarco (2009); Nieva Fenoll (2014: 62 ss.). Sobre o assunto, cfr. Carvalho (2019).

[4] Cfr. Carvalho (2019).

[5] Por exemplo, o art. III do Título Preliminar do Código Procesal Constitucional do Peru.

[6] Cfr. Marinoni (2004).

[7] Damaška (1986: 80 ss.).

[8] Costa (2018a).

[9] A partir da diferenciação entre liberty (liberdade negativa) e freedom (liberdade positiva), chegou-se a defender que o processo, sob a égide garantista, também é uma garantia para o indivíduo poder autodeterminar-se espontaneamente, não devendo o juiz afetar ou ter ingerência nos seus espaços de autonomia. O garantismo, pelo menos nessa particular perspectiva, assume um outro conceito de liberdade muito mais próprio do liberalismo moderno. Trata-se da reflexão de Costa (2018b).

[10] Bobbio (1985: 68), com base na clássica lição de Robert Dahl.

[11] Uma teoria alternativa a essa reside em ver o Estado não como um inimigo, mas como um autêntico prestador, o que, como dito, é mais próprio de teorias sobre os direitos sociais e também dos direitos humanos. Por exemplo, Alexy (2000: 32), que fala de um direito humano ao Estado para, por sua vez, efetivar o cumprimento dos direitos humanos em geral.

[12] É contra este tipo de tese que, em grande maioria, os juristas adstritos a uma concepção publicista têm dirigido as suas principais críticas: cfr. Taruffo (2020: 21 ss.). Pensamos que o debate teria sido diferente, muito mais centrado na filosofia do direito constitucional e na teoria política se acaso os autores garantistas tivessem evidenciado com maior nitidez as premissas das quais (in)conscientemente partiam.

[13] Cfr. Costa (2016).

[14] Destarte, entender que o debate entre «eficientistas» e «garantistas» seja na maior ou menor amplitude dos poderes do juiz (como parece entender Priori Posada, 2019: 25 ss.) é, na verdade, confundir causa e consequência.

[15] Note-se que a defesa dos direitos fundamentais/garantias é algo que pode ser encontrado em teses publicistas. No entanto, na seara garantista há um contexto diferente: é necessário respeitar as garantias porque, do contrário, não haverá autorização jurídica do Estado na afetação da esfera jurídica dos cidadãos e, portanto, resta violada a legalidade constitucional.

[16] Cfr. Andrés Ibáñez (2013: 20 ss.).

[17] Bem apontado por Costa (2019b)

[18] Ferrajoli (1995: 917 y 2013: 630 ss.).

[19] Cfr. Andrés Ibáñez (2013: 27).

[20] Ferrajoli (1995: 931 ss.).

[21] Ferrajoli (1995: 50 ss.).

[22] Ferrajoli (2013: 828-829).

[23] Por isso, o debate iniciado pelas posturas garantistas estão longe de simplesmente querer politizar uma questão «simplesmente técnica» como seria a condução do processo pelo juiz ou pelas partes, e a solução também não passa por buscar a compatibilidade entre eficiência e garantias. Sem razão, por tanto, neste ponto, Picó i Junoy (2006).

[24] Cipriani (2003), sendo que ele mesmo confessa sua surpresa por seu pensamento ser conhecido por processualistas não italianos, sendo que o seu discurso era visto por ele como dirigido fundamentalmente à Itália.

 [25] Cfr. Montero Aroca (2001).

[26] Para uma análise do papel da ideologia na obra de Montero Aroca, cfr. Pereira (2018).

[27] Montero Aroca (2006: 148 ss.).

[28] Alvarado Velloso (2005: 306).

[29] Alvarado Velloso (2009: 25 ss. e 2013: 14 ss.).

[30] Alvarado Velloso (2013: 14-19), que se remete a Diritto e ragione de Ferrajoli como a origem do termo «garantismo». Não fica claro, porém, como é que é possível vincular a teoria garantista de Ferrajoli com aquilo que é defendido por Alvarado Velloso, sobretudo porque ele, segundo pensamos, teria de rejeitar o papel que Ferrajoli outorga à busca da verdade e ao papel do Estado na atuação das garantias secundárias.

[31] Para ensaios críticos sobre ela em que, previamente, se identificam os pontos nevrálgicos da teoria: cfr. Abboud & Oliveira (2008) e Abboud & Pereira (2019).

[32] Isto é bem evidenciado por Abboud & Oliveira (2008).

[33] Dinamarco (2009).

[34] Costa (2019a).

[35] Ferraz Jr. (2003: 39 ss.).

[36] Costa (2018a).

 

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