Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho
Como era de se esperar, a entrada em vigor do CPC/2015 acendeu vários debates. Esse texto se interessa por aqueles acerca do art. 139, IV, isto é, sobre as medidas executivas atípicas. Já é extensa a produção dogmática a respeito do dispositivo,[3] despontando, aqui e ali, julgados conflitantes a respeito do assunto.
Em verdade, não temos aqui maiores pretensões dogmáticas (quase nenhuma, em verdade). O que propomos é uma reflexão crítica a respeito do imaginário[4] subjacente à parte da doutrina que festeja e estimula o emprego profundamente alvoroçado e criativo do dispositivo.
Espera-se que essas reflexões, posto que firmes, sejam recebidas como uma tentativa genuína de despertar para a necessidade de um manejo comedido e prudente dos poderes executórios do juiz,[5] sempre voltados à satisfação do crédito do exequente, mas reconhecendo, serenamente, que essa empresa esbarra em limites materiais e político-normativos, ainda que isso gere – e sói ocorrer de gerar – frustração, sobretudo, entre exequentes e seus advogados, que legitimamente esperam ter seus créditos satisfeitos, e juízes, já que para todo profissional cioso nada é frustrante que se deparar com a infrutuosidade do seu labor. Caso não seja possível convencer integralmente do que aqui se irá expor – e temos certeza de que não será possível –, que sirva pelo menos como instância de reflexão, de comedimento antes de levar a cabo a defesa de uma aplicação lassa do art. 139, IV, CPC.
Demarcado que se trata de atuar como força de contenção dos rompantes bem-intencionados, mas de uma precipitação quase despótica, e de direcionar a tensão para quem de direito – o Poder Legislativo –, passa-se à explicitação das ideias.
AFINAL, O QUE HÁ DE NOVO É MESMO PARA TANTO?
Segundo o art. 139, IV, CPC, incumbe ao juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.
A redação do dispositivo é paupérrima. Sugestiona-se que medidas indutivas e coercitivas são coisas distintas, quando estas são espécies daquelas, e ainda dispõe sobre efeito (mandamental) da decisão como se técnica executiva fosse.[6] Uma lástima analítica, pois.
Nada obstante, o texto legal não comporta nenhum sentido revolucionário. Substancialmente, ele não difere do art. 461, CPC/73, introduzido no direito positivo brasileiro em 1994, nem do art. 84, CDC, vigente entre nós desde 1990. Há tempos tais dispositivos consagraram o emprego de medidas executivas atípicas no bojo das execuções de fazer, não fazer e entrega de coisa (neste caso, expressamente, com a inclusão, em 2002, do art. 461-A no CPC/73), âmbito no qual jamais se viu a criatividade inconsequente que ora grassa. Se há[7] alguma inovação digna de nota no novel dispositivo é estender as medidas indutivas às execuções de pagamento de quantia,[8] de resto dado incapaz de justificar a legitimidade do que se tem feito a seu pretexto. Quem quer que defenda hoje essas medidas deveria ser capaz de explicar por que não se cogitou algo parecido sob os auspícios do CDC e do CPC/1973 no âmbito da execução das obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa, embora já se reconhecesse que a tutela específica constitui direito fundamental do cidadão e estivesse o juiz municiado de amplos poderes executivos atípicos para tanto. Não foram vistas apreensões de CNH, suspensões de CPF/CNPJ, cancelamentos de cartão de crédito, retenções de passaporte, privação do sono (tortura, pura e simplesmente!), restrição de uso de áreas comuns em dívidas condominiais etc.,[9] como vias indutivas para compelir ao cumprimento de obrigações daquelas espécies. Medidas desse naipe não eram vistas sequer em casos sensíveis como aqueles em que apenas a realização in natura pode servir ao exequente, inútil a conversão em perdas e danos (v.g. pleito de procedimento cirúrgico em face do iminente risco de morte; hipóteses em que se divergia (e diverge) sobre o emprego da prisão civil).[10] De algum modo, a dignidade da pessoa humana e a regra da menor onerosidade (antes, art. 620; hoje, art. 805) fizeram barreira. Remanescia algum escrúpulo, enfim.
Inadvertidamente, cruzamos um limite sensível. E o horizonte não se anuncia auspicioso.
E O QUE MUDOU, NÃO MUDOU: A CONCEPÇÃO TELEOLÓGICA DO PROCESSO E SUA PERMANENTE APOSTA NO INCREMENTO DOS PODERES DO JUIZ
Sem exaurir o fenômeno, a mudança se identifica num dado claro: o frenesi doutrinário de estimular empolgadamente esse pulso novidadeiro.
De inopino, parte da doutrina resolveu dar asas ao imaginário e emprestar “legitimação científica” a tais alvitres. O comedimento deu lugar à propaganda de mudança e nela colou a promessa de progresso. Pulula a crença de que se completou o elo da efetividade: o dado faltante para o êxito retumbante da execução de pagamento de quantia era dotar o juiz de poderes executivos atípicos. Como se tomar mudança como equivalente a progresso, no sentido positivo do termo, fosse mais que “frívola precipitação”.[11]
Quem observa com olhos minimamente atentos o que vem se passando nas reformas legislativas brasileiras, máxime desde a década de 1990, não se surpreende com o estágio atual. Apenas insiste-se em efetividades quantitativas (Lenio Streck) como única resposta para a crise do Poder Judiciário.[12] É o continuum da ideologia em sentido estrito travestida de ciência que fez crer na existência de uma relação natural entre ampliação dos poderes do Estado-juiz e efetividade do processo[13], o que remonta ao mito da publicização do processo,[14] com seus ecos mais remotos em Oscar von Bulow (em Lei e Magistratura), Anton Menger (em O Direito Civil e os Pobres) e Franz Klein (em sua ZPO de 1895).[15]
Em maior ou menor medida, isso deriva da compreensão teleológica do processo.[16] Sem especular sobre a intenção de quem quer que seja, o fato é que se deu uma mistura perigosa: a insistência na efetividade como maior valor a ser perseguido[17] gerou, sobretudo nos práticos, uma (inconfessável) associação entre executado e meliante,[18] atiçando com gasolina o fogo da intolerância. Ignorando que o juiz jamais realizará legitimamente o direito se o executado não tiver patrimônio expropriável e suficiente – nenhuma técnica executória supera legitimamente esse dado da realidade socioeconômica[19] –, a compreensível (mas descuidada e perigosamente estimulada) indignação com o insucesso da execução foi forjando o imaginário de que os fins justificam os meios, redundando nas referidas soluções de duvidosa legalidade e constitucionalidade, não raro bancadas com o fito de constranger o executado a dispor “voluntariamente” do que não lhe pode ser tomado à força.[20] Tudo em pleno Estado Democrático de Direito.
O raciocínio é circular e capcioso: pressupondo que “o propósito e a promessa são corretos” e que “o fim perseguido só não é atingido porque o executado é renitente e o juiz não tem poderes suficientes para efetivar seus provimentos”, chega-se à conclusão de que a única solução possível é atribuir cada vez mais poderes executórios ao Estado-juiz. Quando se trata da efetividade da tutela executiva – por todos desejada, frise-se –, o discurso hegemônico despreza a substancialidade garantística do processo[21] – como se pudesse haver efetividade legítima ao arrepio das garantias constitucionais; desconsidera as alternativas lícitas possíveis – v.g. discutir seriamente o rol de bens absolutamente impenhoráveis para buscar a sua alteração por lei; e aposta quase exclusivamente no empoderamento do juiz, via regras de malha aberta, embora a experiência não comprove o sucesso da opção.[22] Porque se trata de uma compulsão, não se percebe que insistir em discurso irrealizável gera frustrações e revanchismos, produto ideal para alimentar o monstro do autoritarismo.[23]-[24]
Não se nega que desde uma mirada mais ampla a mudança de parte da doutrina – já com reflexos em decisões – é apenas o dado aparente de uma equação complexa. Mesmo no contexto atual, de seu notório enfraquecimento[25] - situação pela qual tem sua parcela de culpa, pois se deixar subjugar pelos tribunais –, impossível precisar, conquanto interessante a especulação, se ela emulou algo novo ou se foi apropriada estrategicamente pela jurisprudência. Sem poder definir quem é causa ou consequência, é fato que, de uma maneira ou de outra, tudo está implicado.
Na dinâmica interna à execução, exequentes partem da legítima pretensão de satisfação de seus créditos, mas não se incomodam em receber “seja como for”.[26] Por outro lado, executados não abrem mão de proteções legitimamente erguidas em seu favor pela lei processual (v.g. regras de impenhorabilidade), embora, aqui e ali, abusem do processo mediante condutas protelatórias (o que explica, mas não justifica a prática de certos abusos contra eles praticados). Entre os dois, o Estado-juiz se vê pressionado a realizar pronta e integralmente o direito, mas sem esquecer os limites impostos pelos direitos e garantias fundamentais que acodem também o executado.[27]
Também não se deve olvidar a influência da realidade circundante, presente na figura da fantasmagórica “opinião pública(da)”. Veículos de mídia não especializada e o público em geral estão cada vez mais metidos em assuntos jurídicos, antes restritos às raias dos especialistas, com a diferença de que, em regra, suas preocupações são gravadas por rasteiro utilitarismo, sem qualquer compromisso com as contenções impostas pelo direito, particularmente pelas garantias processuais.[28] Em alguma medida, isso tem comprometido o poder simbólico da doutrina e da jurisprudência. Dificilmente será possível apontar para esse ou aquele caminho como lícito e ilícito enquanto estiver distante a obtenção de consenso sobre o que pode, ou não, ser feito em termos de efetivação da tutela executiva[29]. Alguns identificam e respeitam o que compreendem como limites, enquanto outros, decerto munidos dos mais nobres propósitos, divisam nos mesmos espaços insuficiência normativa pela qual é possível avançar e inovar. Cedendo ao “clamor das ruas”, o discurso jurídico se espetaculariza (basta assistir as sessões plenárias do STF) e acaba banalizado pela assunção de razões leigas tanto na explicação teórica (doutrina) como na condução dos processos e tomadas de decisões (jurisprudência), fragilizando a autonomia do direito.[30]-[31] Enfim, há sempre uma tensão entre visões concorrentes de mundo cujos modos-de-ser conduzem a resultados diversos, sendo inegável que, hoje, a pretensão de satisfação “a todo custo” ganhe com folgas e avance a passos largos, mesmo que não se saiba exatamente pra onde...[32]
Reconhecido esse intrincado amálgama, insiste-se: no tema em questão, o primeiro sinal claro no sentido da mudança de orientação foi dado pela doutrina e por isso essa reflexão se volta a ela. Partiu dali, sem lastro jurídico-positivo suficiente, o apontamento para esse caminho, sempre na crença de que outorgar cada vez mais poder ao Estado-juiz mediante cláusulas gerais e medidas atípicas é a única (ou principal) alternativa à efetividade da tutela executiva. Receita velha de sucesso não demonstrado.
SE O DESEJO (DE PODER) SEMPRE SURGE NA FALTA E TUDO QUE SE TEM É EFÊMERO, HÁ SEMPRE UM RESTO A GOZAR (E MAIS PODER PARA CONQUISTAR)
Tudo o quanto exposto parece indicar que há um desejo de que seja assim. Sucede que o desejo surge na falta, e nunca se goza o bastante. Psicanaliticamente falando, há sempre um resto a gozar. Daí que o risco evidente é se tornar refém dos desejos e cair num ciclo vicioso de infindável frustração.
O exemplo do consumismo[33] é irritantemente irrefutável: ligando o consumo à satisfação, sempre se quer consumir mais. Contudo, como aí o consumo visa suprir um vazio que vem de outro lugar, ele nunca basta. Então, preenche-se (falsamente) o vazio com novas aquisições (que geram mais vazio). O consumismo é o réquiem da satisfação do ato de consumir.
O mesmo se passa com o desejo de poder (até mesmo por quem está a ele submetido, como percebeu Étienne De La Boétie ainda no século XVI). Quando se atrela a concessão de poderes à obtenção de determinados resultados sem se indagar sobre sua legitimidade e seus limites, cai-se na armadilha acima aventada: não alcançados os fins, rogar-se-á por mais poder, ainda que os fins sejam irrealizáveis e o poder, por isso, se converta arbítrio. Esperar tudo do poder é pavimentar o caminho para o poder total.[34] E para o viciado, o problema do poder jamais será o seu excesso, mas a sua falta. Nesse movimento, poder reproduz poder em escala infinitesimal, até o ponto em que se concebe (até sem perceber) o poder como um fim em si mesmo. Poder pelo poder. Talvez isso explique, pelo menos em parte, o que se passa com a empolgação de parte da doutrina em torno das medidas indutivas.
Por outro lado, o valor da novidade, conquanto efêmero – o tempo de validade dessa condição é cada vez mais curto, vide, v.g., o ritmo frenético de sucessão dos ciclos tecnológicos –, tem um extraordinário poder de distrair a atenção de tudo que é estabelecido.[35] E isso também dialoga com a questão em liça.
É que, ao tempo do CPC/1973, setores da doutrina e da jurisprudência buscavam inúmeras justificativas para estender o uso da prisão civil além da execução de alimentos, ainda que em caráter excepcional. Chegou-se a argumentar em prol da prisão civil invocando a figura do contempt of court, de largo emprego nos países aderentes à tradição do common law.[36] Tão obcecada pela tutela da autoridade da Corte, tal solução sequer se constrangia por arrostar texto expresso da Constituição erigido exatamente para garantir a proteção do cidadão contra os abusos do poder. Tão simples deveria ser compreender que o respeito às garantias é o que confere legitimidade aos Tribunais...
Contudo, a tese mais corrente e pretensamente sofisticada era a de que ponderação do constituinte originário (=definir que só cabe prisão civil contra o devedor de alimentos – a hipótese do depositário fiel foi afastada pelo STF, no RE 466.434/SP) não impediria uma segunda ponderação pelo juiz, no caso concreto. Porém, ao admitir o afastamento do art. 5º, LXVII, CRFB,[37] regra fechada com antecedente e consequente definidos com elevada clareza e precisão,[38] jamais se explicou satisfatoriamente o que restaria das garantias individuais contra os abusos do poder (inclusive do Judiciário), em si, e do papel do Legislativo (e, portanto, da soberania do povo) como fonte produtora dessas proteções mínimas, corroendo a força da tripartição de funções (art. 2º, CRFB).[39]
Realmente, o princípio da proporcionalidade, máxime pelo modo como sempre foi manejado no Brasil, inclusive pela doutrina, prestou enormes serviços à desintegração do direito[40]. Dizer que só há colisão entre princípios resolve pouco, dada dificuldade hercúlea de discerni-los das regras. Problema “resolvido” por aqueles que afirmam que regras e princípios são normas prima facie e, logo, ambas são ponderáveis. Já não mais se interpretam conceitos, ponderam-se valores[41]. Tamanha fluidez enseja a insinuações ideológicas de toda ordem e representa uma reserva de juízo em todas as normas constitucionais,[42] o que encerra uma dupla distorção: o jurídico é colonizado pelo político (numa República, almeja-se justamente o contrário: a limitação jurídica do político) e esvazia-se papel da política representativa na definição do direito, ao menos à guisa de normas gerais e abstratas. Dá-se o agigantamento antigarantístico do Poder Judiciário, que, sem legitimidade democrática para tanto, assume tanto a jurisdição como a jurislação.[43]
Hoje, entretanto, tem-se sugerido que na execução de alimentos que a prisão civil seja substituída pela suspensão da CNH do executado. A solução atípica seria uma alternativa à medida extrema.[44] Discorda-se, porém.
Como corretamente apontado,[45] o direito de dirigir é manifestação da liberdade, positivada no art. 5º, caput, CRFB. A CNH tem natureza jurídica de licença administrativa, o ato de emissão é vinculado e se caracteriza pela definitividade. Logo, estamos no plano de legalidade estrita, tal direito só pode ser restringido mediante autorização legal expressa. O direito positivo brasileiro só cuida do tema no Código Brasileiro de Trânsito e no Código Penal, permitindo a cassação ou suspensão do direito sempre que, no bojo de um devido processo jurisdicional ou administrativo, conforme o caso, restar comprovada a prática de ilícitos relacionados ao mau uso do direito de dirigir, pelo que claramente possuem natureza punitiva. Precisamente por concordar com todos esses argumentos é que se discorda da substituição da prisão civil pela suspensão da CNH. Ora, também aí há “verdadeira criação judicial de hipótese de suspensão de licença, cuja definitividade é de sua essência”. E posto que limitada a uma hipótese específica – o devedor de alimentos stricto sensu –, também se acaba por agregar, por decisão judicial, mais uma hipótese de suspensão, que é “campo exclusivo de reserva legal” destinada a punições. Nem se invoque a interpretação sistemática para justificar a aplicação da suspensão de CNH como medida coercitiva para compelir o executado a pagar. Nada é mais assistemático que estender a dispositivo que congrega medidas de natureza coercitiva a incidência de medida que o direito positivo prevê apenas como medida de natureza punitiva.
E também não cabe argumentar com a menor gravidade da medida atípica (art. 805, CPC). Essa regra só entra em cena quando concorrem meios igualmente eficazes à satisfação do direito, o que não ocorre in casu. O executado pode encontrar meio alternativo de locomoção mesmo sem pagar os alimentos devidos. A prisão civil, por outro lado, só pode ser afastada pelo pagamento – ou o transcurso do limite temporal de três meses, que a relatividade faz longo quando situado no cárcere. Não há paridade eficacial entre as medidas, portanto.
Em verdade, a experiência revela que nada constrange mais ao cumprimento do que o risco de prisão.[46] Como quer que seja, a proposta descuida da opção político-constitucional de acudir especialmente o credor de alimentos. Porque meio coercitivo superlativamente eficaz, a prisão civil deve ser utilizada sem recalcitrância. A única alternativa tolerável é o desconto em folha (art. 529, CPC), a um só tempo mais eficaz para o exequente e menos onerosa para o executado. Fora daí, o uso da prisão civil é imperativo.
Por fim, nada mudaria se ficasse empiricamente demonstrado que a suspensão do CNH tem levado os executados a pagar. Ora, a validade de uma solução jurídica não se mede por sua efetividade prático-fática. A tortura é extremamente efetiva, mas o direito positivo a repele (art. 5º, III, CRFB). Não estamos comparando a suspensão da CNH à tortura – o que seria um despropósito –, apenas ressaltando que a aptidão à efetividade não é per se critério idôneo para se defender qualquer medida. O que importa é definir (i) quem tem competência para instituir restrições à liberdade e (ii) os seus limites. Sobre (i), podemos – e devemos - discutir a respeito da possibilidade, conveniência e oportunidade da suspensão da CNH nesses e/ou noutros casos, mas o locus para tanto é o Congresso Nacional. Em uma Democracia cabe ao povo, no exercício do autogoverno através de seus representantes eleitos, selecionar os antecedentes e consequentes dos enunciados normativos definidores das restrições do direito de liberdade, não a uma elite judiciária e sua juristocracia, ainda que sob um regime de criação ad hoc do direito em comparticipação com os destinatários[47]. Aos membros do Poder Judiciário se ressalva um modesto e autocontido exercício de controle de constitucionalidade. E isso não é (e não pode ser visto como) pouco[48].
SEPARAR O JOIO DO TRIGO E FICAR COM... UM POUCO DE DOGMÁTICA ANALÍTICA E ORTODOXIA CONSTITUCIONAL
Dado preocupante é a utilização das medidas atípicas como simples forma de punir o executado. Certo, a execução civil é sanção aplicável em face do descumprimento do dever ressarcir os prejuízos causados.[49] Contudo, o significante “sanção” é ambíguo, reúne uma gama de reações bastante diferentes do ordenamento jurídico. São sanções, v.g., a pena restritiva de liberdade imposta ao homicida, a medida coercitiva fixada para pressionar psicologicamente o executado a pagar e a isenção do pagamento de custas do réu que cumprir o mandado monitório (fala-se em sanções premiais). Aqui não se trata de discutir se as medidas coercitivas possuem ou não natureza executiva, e, portanto, se constituem espécie de sanção – os dois questionamentos são respondidos positivamente, como é curial. O que importa é delimitar quais tipos de sanções são imputadas pelo ordenamento jurídico a cada tipo de conduta socialmente indesejável. O fato de, v.g., a medida de segurança e as astreintes serem espécies de sanções não autoriza o intérprete a escolher livremente quando utilizá-las. O livre câmbio das medidas sancionadoras só é possível se assim dispuser a lei – ainda que passível de controle de constitucionalidade. Em suma, cuida-se de atentar para evitar o desvio de finalidade.
Com efeito, há sanções que incidem apenas para punir determinada conduta. Não se pretende modificá-la, apenas retribuir a lesão por ela gerada. São voltadas para o passado. E há sanções que incidem para desencorajar determinada conduta, impedindo que seja praticada ou que se repita. Pretende-se modificá-la, evitar a ocorrência ou a manutenção da lesão por ela gerada ou que ela pode vir a gerar. São voltadas para o futuro. São as sanções punitivas e sanções coercitivas, respectivamente. O art. 139, IV, CPC, cuida de sanções coercitivas. O seu escopo não é castigar o executado, apenas criar estímulos para que ele cumpra. Não se atém a essa finalidade a “medida coercitiva” imposta ao executado quando frustradas as medidas ordinárias de busca de bens expropriáveis do executado. Em tais casos, ordenar a suspensão da CNH, a retenção do passaporte, o cancelamento de cartão de crédito etc., é aplicar sanção punitiva travestida de sanção coercitiva. São medidas com os olhos voltados para o passado. Não há como negar que a aplicação desse tipo de medida após a constatação de inexistência de bens penhoráveis tem a clara finalidade de forçar o executado a dispor “voluntariamente” dos bens que não lhe podem ser tomado à força, em evidente desvio de finalidade da sanção coercitiva. Como os bens impenhoráveis escapam à regra da responsabilidade patrimonial, o que se faz aí é repreender o executado que exerce o legítimo direito de resistir à constrição de bens que a lei põe a salvo da expropriação. O que se anuncia como medida coercitiva na verdade não passa de punição à sorrelfa. É medida punitiva mal disfarçada de medida coercitiva. Nada disso significa que não possamos – e não devamos – discutir a (in)adequação dos róis legais de bens impenhoráveis e de como eles impactam na efetividade das execuções, com vistas a harmonizá-los à realidade socioeconômica brasileira. Porém – e de novo –, o lugar para isso é o Congresso Nacional, na esfera da discricionariedade política dos representantes democraticamente eleitos pelo povo,[50] não o Judiciário – seja mediante a elaboração de teses ou na difusa discussão caso a caso –, como se ele fosse uma espécie de terceiro turno permanente do processo legislativo (Streck). Decididamente, “um pouco de ortodoxia faz bem”.[51]
Por isso, nada é mais abusivo que empregar o art. 139, IV, CPC, ante a inexistência de tem bens penhoráveis. Na hipótese, o caminho legítimo é o da execução universal ou da falência, conforme o caso, não o da pequena e egoísta expiação moral.[52]
CONCLUSÃO: AS VANTAGENS DO PESSIMISMO NO DIREITO[53]
A pergunta persiste: o que mudou de 1990, 1994 e 2002 para cá? Por que ninguém pensou em aplicar as medidas que hoje temos visto, ainda que, naquele tempo, apenas nas obrigações específicas? Entendem a doutrina e a jurisprudência que a execução para pagamento de quantia é digna de maior inventividade?[54] Seria o desejo de poder? A devoção pelo “novo” (que sequer existe enquanto novo)? Afinal, o que aconteceu para, não mais do que de repente, termos tanta ousadia?[55]
Contra todas as evidências – para não falar da inadequação jurídico-normativa –, acredita-se que conceder mais poderes ao juiz inexoravelmente nos conduzirá a resultados bons. Impera um incontido imaginário otimista.
Enxergamos mais vantagens no pessimismo. As coisas são como são. O êxito da execução encontra limites institucionais (jurídicos e políticos), práticos e econômicos. E as mudanças jurídicas possíveis, por meio do debate político-legislativo, passam longe de uma ingênua concessão de poderes moduláveis pela inventividade do juiz de ocasião. A solução monocórdica não tem vencido o teste da realidade, mas a crença se mantém intacta. Não se vê mais efetividade, mas o aumento de arbitrariedade se eleva a olhos vistos. Os casos estão aí. Dizer que constituem excepcionalidades – e talvez constituam mesmo, ao menos por enquanto –, para tachar de alarmista a crítica aqui manifestada, é apenas deixar livre o espaço necessário para que frutifiquem. Ora, o momento adequado para combater o arbítrio é justamente quando ele se apresenta de modo episódico e modesto. Depois que é naturalizado, quando não é sequer compreendido como um mal a ser combatido, fica muito mais difícil refreá-lo. Nesses casos, tempo é liberdade.
O motivo para tanta resistência e pessimismo é o fato de que as “relações humanas e governamentais” – incluídas as relações intraprocessuais entre partes e juízes – “são demasiado instáveis para serem mapeadas e domadas apenas pela melhor razão”. Feliz ou infelizmente, não é assim que a coisa se passa. Deixado ao próprio alvitre, o poder tende à expansão – e, pois, ao arbítrio[56]. “Esperar o pior é uma maneira racional de lidar com adversidades, construir planos abrangentes e despistar a decepção. A decepção é a derrota do otimista. O mundo não nos dá o luxo de subestimar a complexidade e a vastidão de seus caprichos. Um colega de trabalho que parece confiável pode agir de fora dissimulada; um governo pode tornar-se tirânico em pouco tempo. O pessimista prepara-se de antemão porque prevê algo doloroso. Começa a se desviar antes mesmo do soco começar a ser dado pelo mundo”.[57] Há quem prefira remediar...
Com a licença da metáfora, pense-se numa criança que, querendo uma bola e estando frustrada por ter sido presenteada com um livro, resolve usar o presente recebido como se o querido fosse: não o lê, chuta-o. Pura pirraça. O que fazer? Incentivar a conduta? Admitir que finja e não encare o real? É uma alternativa, certamente, mas os efeitos colaterais de uma personalidade ensimesmada podem ser devastadores quando se está condenado a interagir e conviver socialmente. Melhor sinalizar o limite, fazer entender que nem sempre ganhamos o que queremos (ou julgamos merecer – e às vezes até merecemos). Interditar o imaginário pelo simbólico. Afinal, viver exige conviver e conviver é complexo. Deparamo-nos com beleza e feiura, generosidade e egoísmo, bondade e maldade, confiança e traição, expectativas e frustrações. E, ao fim e ao cabo, o papel do Direito é (em boa dose) justamente definir como devem ser tratadas as frustrações da vida social. Lidemos com isso. E não chutemos os livros.
Notas e Referências
[1] Professor Adjunto II de Direito Civil do Departamento de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo –UFES. Doutor e Mestre em Direito Civil (PUC-SP), sempre orientado pelo Prof. Dr. Nelson Nery Júnior (PUC-SP). Visiting Researcher do Institut Suisse de Droit Comparè – ISDC, em Lausanne. Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Privado (RDPriv). Coordenador Acadêmico da Escola da Magistratura do Espírito Santo – EMES, no biênio 2018/2019. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo – TJES.
[2] Mestrando em Direito Processual na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp, em parceria com o Instituto Brasileiro de Direito Processual – IBDP (2012). Membro efetivo e conselheiro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro. Parecerista ad hoc da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Professor do curso de Direito das Faculdades Integradas de Aracruz – FAACZ.
[3] Representativo a esse respeito: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC). A obra reúne 36 textos a respeito do tema, totalizando a expressiva quantidade de 893 páginas.
[4] “A memória consiste na capacidade de trazer de volta ao presente as representações construídas no passado. A imaginação, por outro lado, produz a expectativa de espera, isto é, tem a capacidade de combinar as representações do passado com os ideais do futuro. Imaginamos como deverá ser o futuro a partir da combinação fornecida pela imaginação. (...) A imaginação, em suma, desempenha uma função crucial: ordenar e projetar as ideias. O grande filósofo David Hume (1711-1776) tem uma expressão muito boa para definir essa capacidade: “a imaginação domina todas as suas ideias”. O problema da imaginação, portanto, está na sua abertura para a construção de mundos possíveis e, sobretudo, impossíveis. Essa capacidade de ordenar, combinar e sintetizar o conteúdo de nossas experiências passadas com as expectativas futuras gera o conjunto de nossas crenças. Por sua vez, ao promover um sentimento maior de segurança, certeza e convicções mais elevadas com relação à realidade, as crenças motivam as ações que foram antecipadas pelos poderes da imaginação. O problema do ato de imaginar consiste justamente na tentativa de dar vida à própria realidade imaginada”. (RAZZO, Francisco. A imaginação totalitária. Rio de Janeiro: Record, 2016, p. 17).
[5] Em verdade, permeia essas reflexões a visão mais ampla do próprio papel do processo e do juiz, genericamente, não apenas na atividade executiva.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 273.
[7] É perfeitamente possível questionar, antes de qualquer coisa, se o art. 139, IV, CPC, autoriza a aplicação de medidas coercitivas para forçar ao cumprimento de obrigação de pagar quantia. Nesse sentido: “De cara, duas objeções poderiam ser feitas à intepretação conferida por parte da doutrina e por alguns juízes e tribunais ao art. 139, IV, do CPC, no sentido de compreender nele uma autorização para a utilização de “meios de coerção”, também chamados de “meios de execução indireta”. A primeira, refere-se ao termo “assegurar”, o qual poderia ser compreendido para abarcar exclusivamente medidas voltadas ao acautelamento, e não à satisfação do direito material; a segunda, refere-se ao termo “ordem judicial”, que restringiria o emprego de “medidas necessárias” somente para a “efetivação” de provimentos mandamentais (v.g, ordem para informar a localização de um bem determinado), e não para a efetivação dos próprios atos executivos, que, não por acaso, ocorre com o emprego de medidas sub-rogatórias. É claro que essas objeções renderiam reflexões que vão muito além do espaço desta coluna; no entanto, elas já denotam que a interpretação a favor da utilização de meios de coerção para o cumprimento de obrigações pecuniárias enfrenta contra-argumentos restritos às próprias palavras empregadas no art. 139, IV, CPC” (RAATZ, Igor. Devedor é proibido de sair de casa nos finais de semana; fake news? Revista eletrônica Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-06/devedor-proibido-sair-casa-finais-semana-fake-news).
[8] Nesse sentido: ASSIS, Araken de. Cabimento e adequação dos meios executivos “atípicos”. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11, p. 111-112. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC). Sem razão, a nosso ver: GAJARDONI, Fernando da Fonseca. A revolução silenciosa da execução por quantia. A parte conta apenas com o Estado-Juiz para fazer valer a decisão judicial. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-revolucao-silenciosa-da-execucao-por-quantia-24082015>.
[9] Para um competente e cuidadoso exame dessas e outras medidas, conferir: CARREIRA, Guilherme Sarri; ABREU, Vinícius da Gama. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11, p. 241 e ss. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC)
[10] Para Eduardo Talamini: “prestações estatais positivas atinentes a direitos fundamentais também podem revestir-se de natureza alimentar – tais como, o direito a medicamentos, tratamento médico, vagas em instituições hospitalares ou de ensino etc. Nesse último campo, a prisão civil pode ser importante instrumento coercitivo a acompanhar as ordens de cumprimento de deveres de fazer”. (TALAMINI, Eduardo. Poder geral de doção de medidas executivas e sua incidência, nas diferentes modalidades de execução In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11, p. 33. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC). Posto não se concorde com a extensão que o autor outorga ao significante “responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia”, presente no inciso LXVII do art. 5º da CRFB, seu argumento é mais interessante e defensável que a lugar-comum invocação do dúctil “princípio da proporcionalidade”, cuja solução todos sabemos de antemão...
[11] QUINTÁS, Alfonso Lópes. A tolerância e a manipulação. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 190. Relevante a advertência do filósofo espanhol: “sempre que um termo é falado, suscitam-se na mente, por vibração, outros termos que podem lhe transferir prestígio ou descrédito. Essas vibrações e interconexões que se produzem (...) exercem sobre os espíritos um influxo tanto mais fascinante e perturbador quanto mais difusa é a operação mental em jogo. Assim como os ideias utópicos, mais entrevistos do que criticamente analisados, suscitam com frequência, no interior das pessoas, uma espécie de “mística”, que se torna fonte de energia explosiva na hora da ação, assim também as conexões ambíguas entre conceitos que podem impulsionar toda uma dialética mental apaixonada, intelectualmente precária, mas suficientemente sedutora no caso de pessoas que agem de modo mais espontâneo, e dependem mais das emoções do que das opções reflexivas”. (QUINTÁS, Alfonso Lópes. A tolerância e a manipulação. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 191-192).
[12] Em perspectiva crítica, conferir: FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flávio Quinaud. O Poder Judiciário e(m) crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
[13] É o que se nota de maneira bastante clara na entusiasmada defesa do instituto por Marcelo Abelha: “A adoção do “princípio da atipicidade dos meios executivos” encontra-se expressamente prevista no art. 139, IV, do CPC e consagra, de uma vez por todas, a postura irreversível do legislador brasileiro de transformar o papel e a atuação do magistrado, de mero espectador (fruto de um Estado liberalista) em partícipe (Estado social intervencionista), na busca da efetividade da tutela jurisdicional”. (ABELHA, Marcelo. Manual da Execução Civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 40). Em passagem anterior, fica claro como, sob o manto da passagem do Estado Liberal para o Estado Social, viceja no pensamento do autor aquele imaginário segundo o avanço do direito processual em direção à efetividade passa pelo aumento dos poderes dos juízes: “Registre-se, ainda, um elemento de ordem axiológica e histórica que é decisivo para se compreender como deve pautar-se a função jurisdicional executiva. Com a substituição do Estado liberal pelo Estado social, houve mudança do comportamento do Estado-juiz, que passou a “atuar”, em vez de ficar “inerte”, sob o manto de uma “neutralidade”. Se antes a sua atuação, mesmo na execução, era milimetricamente medida, regulada, discriminada e seguia a regra da tipicidade da atividade a ser exercida, hoje a regra não é mais assim, pois, com a mudança de paradigma, o Estado liberal cedeu lugar ao Estado social e passou a ter um papel ativo, participativo e atuante, de forma a privilegiar o respeito e a credibilidade à jurisdição, no sentido de que o Estado deve dar a efetiva prestação da tutela jurisdicional. Enfim, se antes, em um Estado liberal, o direito de propriedade deveria ter superlativa proteção e intocabilidade, outorgando ao executado todas as maiores e possíveis oportunidades de retardar ou evitar a expropriação (ou cerceamento da liberdade), hoje já não é mais assim. Atualmente, privilegia-se a jurisdição e busca-se a credibilidade da justiça. Nesse passo, as regras processuais liberais, individuais e privatistas limitadoras da intervenção do Estado na propriedade alheia (limitação da própria atividade executiva), com definições estanques sobre o que o juiz pode e o que não pode fazer, quais os passos, quais os remédios, qual o ato presente e o respectivo ato futuro, tudo de forma a se ter um máximo de previsibilidade e objetividade possível, hoje dão lugar às interpretações razoáveis do magistrado, com ampla liberdade de escolha de meios e fins executivos que sejam adequados a uma situação posta em juízo (art. 139, IV). Além disso, tenta-se desburocratizar o processo, permitindo uma cooperação mais rente das partes na solução do litígio, inclusive por intermédio dos negócios processuais (art. 190)." (ABELHA, Marcelo. Manual da Execução Civil. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 8). Muitos pontos aí lançados são passíveis de crítica – pontualmente, o autor: (i) apresenta o Estado Liberal de modo caricatural, (ii) estabelece uma errônea relação entre normas de matriz liberal e privatismo, (iii) fala dos laivos do Estado Social quando nos constituímos como Estado Democrático de Direito, que com aquele não se confunde e (iv) insiste na inoportuna metáfora do juiz espectador –, mas essa não é a oportunidade para fazê-lo.
[14] PEREIRA, Mateus Costa. Eles, os instrumentalistas, vistos por um garantista: achegas à compreensão do modelo de processo brasileiro. 2018. 279f. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2018.
[15] A propósito, conferir: LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo e(m) crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008; RAATZ, Igor. Autonomia privada e processo civil. Negócios jurídicos processuais, flexibilização procedimental e o direito à participação na construção do caso concreto. Salvador: JusPodivm, 2017, em especial, p. 75 e ss.; NUNES, Dierle José Coelho. Processo constitucional brasileiro. Análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2012, em especial o cap. 3; LUCCA, Rodrigo Ramina de. Disponibilidade processual. A liberdade das partes no processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, especialmente o cap. 2.
[16] Claro que estou me referindo ao instrumentalismo processual.
[17] O vociferado processo de resultados, que em vez de moderar o discurso transformou-se em veleidade que promete muito mais do que é capaz de entregar, e, por isso mesmo, se constituiu em inesgotável fonte de frustrações. Frustrações que se convertem em autoritarismo envernizado com expressões performáticas como efetividade, justiça e verdade, adverte Calmon de Passos: “Cumpre, portanto, não se pugnar pela efetividade do processo, como se fosse ele um “fim” bem determinado e valioso a ser alcançado. Prévia é a questão de definir-se, inclusive, qual a sua função sócio-política do próprio processo, o seu valor. Se por efetividade traduzirmos a pura e simples solução do conflito, logrando-se a pacificação social (péssimo modo de dizer, pois em verdade o que há é a sujeição do vencido mediante a chamada violência simbólica, não necessariamente seu convencimento, que pacificaria) pouco importando a que preço e com que consequências, essa efetividade está maculada em sua origem e em sua destinação. Jamais pode ser vista como valor. Essa crítica perdura se associarmos a efetividade do processo à efetividade do que foi decidido pelo magistrado, enquanto agente do poder político. Teríamos, aqui, retrocedido no tempo, revalorizando um decisionismo da pior espécie, reentronizado o déspota que se pretendeu banir. Se o parâmetro for a efetividade da decisão justa, teremos de definir, antes, o que seja decisão justa. Sem essa imprescindível determinação prévia, falar-se em decisão justa, pura e simplesmente, é pura e simplesmente dizer-se nada sobre nada, com manifesta intenção manipuladora.Se decisão justa é aquela que mantém exata correspondência entre o pretendido e o decidido, o contraditório, inerente ao direito, impossibilita qualquer resposta, pois há pretensões contrapostas e sempre apenas uma delas é tutelada, obtendo o usuário efetivamente o que postulou. Sem esquecer que incidiríamos, assim dizendo, em tautologia ou no círculo vicioso de afirmar que toda decisão é justa porque decisão. Se decisão justa é aquela que guarda perfeita correspondência com a verdade dos fatos do prescrito pelo ordenamento jurídico, a justiça do decidido é totalmente dependente do procedimento que a procedeu e da qualificação dos operadores que decidiram. Destarte, por mais que se pretenda mascarar, a efetividade é algo de todo dependente do que se precede a decisão, vale dizer, da cognição e da certificação que a antecedera. Nestas é que cumpre colocar a ênfase. A efetividade do injusto é, na verdade, a consagração da inefetividade do processo e da tutela jurídica. Caso nosso exacerbado pragmatismo pretenda transpor para o direito a lógica da avaliação pelo resultado, no processo, esse resultado tem que se submeter ao controle de sua valiosidade, inferível necessariamente da avaliação de quanto o precedeu o processo de sua produção. Essa perspectiva é que foi perdida pela geração do autoritarismo de direita e de esquerda, que mudou o discurso mas conservou a filosofia. Enfim, e para concluir, propugnar trombeteando a efetividade do processo como valiosa por si mesma é usar uma palavra equívoca, carregada de emocionalidade, que simplesmente mascara o propósito, consciente ou inconsciente, de se recuperar o exercício anti-democrático do poder político na sua dimensão jurisdicional”. (PASSOS, José Joaquim Calmon de. Cidadania e Efetividade do Processo. Ensaios e Pareceres. V.I. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 389 a 395).
[18] De fato, há devedores contumazes e desprezíveis, mas isso não lhes tira a condição de sujeitos de direito e, pragmaticamente, eles sequer representam a totalidade daqueles que se veem impossibilitados de solverem seus débitos e se encontram às voltas com uma execução.
[19] “inexistindo patrimônio, o poder de executar deparar-se-á com limite inequívoco: em princípio, não há como realizar o crédito”. (ASSIS, Araken de. Cabimento e adequação dos meios executivos “atípicos”. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11, p. 122. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC)). Essa, aliás, talvez seja a grande diferença entre a efetividade do processo de conhecimento e do processo de execução: “enquanto o processo de conhecimento sempre atingirá os fins que lhe são próprios, embora o autor A mova, v.g., ação de reparação de dano contra o réu B, porque atingido seu automóvel pelo carrinho metálico do catador de papéis, desenvolvendo-se as atividades processuais de acordo com o melhor figurino (petição inicial, contestação, instrução, decisão e recursos), não se passará o mesmo com a futura execução (cumprimento de sentença): a falta de patrimônio do catador de papéis impede que o prejuízo do vencedor seja ressarcido”. (Cit., p. 122-123).
[20] À boca miúda, não é raro encontrar entre processualistas a afirmação de que, devidas ou não, tais medidas têm-se mostrado eficazes...
[21] Na verdade, tal concepção é alvo da mais atenciosa indiferença. A leitura de entrada é: COSTA, Eduardo José da Fonseca. O processo como instituição de garantia. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia>.
[22] É malograda a utilização de enunciados normativos abertos como limites à atividade interpretativa. Prova disso é que foi necessário introduzir em nosso direito positivo um enunciado como o do inciso II do § 1º do art. 489 do CPC. E a constrangedora obviedade do dispositivo não inibiu a AMB, a AJUFE e a ANAMATRA de tentearem o veto do dispositivo. De modo que devemos ser céticos quanto à aptidão desses tipos normativos efetivamente servirem como critérios de contenção do poder estatal.
[23] O direito processual civil brasileiro é do tipo autoritário desde o Código de Processo Civil de 1939. Veja-se a lição de Moacyr Amaral Santos sobre o referido diploma: “Na verdade, ao fator político, considerado primordial e mesmo decisivo, como expressão histórica do Estado naquela fase da vida brasileira, procurou o legislador, na reforma processual, associar o fator científico – mas tudo fazendo, sem qualquer dissimulação, para deste –, extrair princípios consorciáveis com a orientação autoritária do regime instituído”. Sobre a exposição de motivos do referido diploma, destacou: “porque ao legislador tão só agradava na reforma acentuar a preponderância do fator político ao científico, e assim transfundir ao processo o espírito de que se blazonava o Estado, os princípios regentes do processo como instrumento da jurisdição teriam que acomodar sua inteligência à raiz de onde provinham. Para que assim se compreendesse a nova lei, proclamou-se que à "concepção duelista do processo haveria de substituir-se a concepção autoritária do processo". Para o legislador, portanto, concepção publicística e concepção autoritária do processo eram expressões equivalentes”. Ora, se o processo é compreendido como instrumento do Estado/Jurisdição, é subserviente à autoridade, é um processo autoritário. Afinal, “por processo autoritário se qualifica aquele em que predomina o princípio da autoridade”. (SANTOS, Moacyr Amaral. Contra o processo autoritário. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66314>.
[24] O processo autoritário descamba em autoritarismo processual, que pode assumir variados matizes, tantos quantos sejam os perfis do Estado/Jurisdição a que serve. Quando se fala em processo autoritário é comum lembrar apenas dos modelos processuais de corte socialista e fascista, deixando de fora o processo edificado pela ideologia neoliberal, cujo discurso eficientista, porém, é igualmente corrosivo dos direitos e garantias fundamentais. Atentando para o ponto, conferir: NUNES, Dierle José Coelho. Processo constitucional brasileiro. Análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2012, p. 157-176. Para uma ampla compressão dos fundamentos, propósitos e características de modelos processuais liberal, social, fascista e gerencial, consultar: COSTA, Eduardo José da Fonseca. Uma espectroscopia ideológica do debate entre garantismo e ativismo. In: DIDIER JR., Fredie; NALINI, José Renato; RAMOS, Glauco Gumerato; LEVY, Wilson (Coord.). Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 171-186.
[25] O estupefaciente voto que o Min. Eros Grau proferiu na Rcl 4.335/AC impressionou também por esse aspecto: “estamos aqui não para caminhar segundo os passos da doutrina, mas para produzir o direito e reproduzir o ordenamento. Ela nos acompanhará, a doutrina. Prontamente ou com alguma relutância. Mas sempre nos acompanhará, se nos mantivermos fiéis ao compromisso de que se nutre a nossa legitimidade, o compromisso de guardarmos a Constituição. O discurso da doutrina [=discurso sobre o direito] é caudatário do nosso discurso, o discurso do direito. Ela nos seguirá; não o inverso”. Não se diga que isso espelha a lição kelseniana do intérprete autêntico e do intérprete inautêntico. Quando Kelsen sistematizou o papel do cientista do direito e das autoridades competentes ele apenas deixou claro que a doutrina não é fonte social autorizada – o que, de resto, é uma obviedade! Daí a dizer que a função da doutrina é apenas replicar acriticamente o que faz a jurisprudência vai um salto enorme que não pode ser atribuído ao mestre tchecoslovaco. Metodologicamente, é perfeitamente possível descrever um entendimento jurisprudencial e valorá-lo como equivocado à luz das normas jurídicas em vigor. E, de resto, esse é o papel da doutrina: fornecer critérios à decidibilidade dos conflitos. Se ela quiser ter alguma função social (Tércio Sampaio Ferraz Jr), ela não pode ser reduzida a diário oficial dos tribunais. No mesmo tom do Min. Eros Grau, talvez de modo ainda mais hostil, o notório episódio protagonizado pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, por ocasião do julgamento do AgReg em ERESP 279.889-AL: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que os Srs. ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja”. O curioso é que, algum tempo depois, o Ministro manifestou preocupação com o modo como o STJ vinha decidindo, naquilo que muito espirituosamente chamou de “jurisprudência banana boat”. (Disponivel em: <http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI64574,101048-Gomes+de+Barros+Jurisprudencia+do+STJ+deve+funcionar+como+um+farol>. Acesso em: 02 jan. 2017). Quem sabe, a fragilização da doutrina e o solipsismo radical brandido na primeira fala tenham contribuído para o estado de coisas que, mais adiante, veio a inquietar Sua Excelência...
[26] Lembremos: para cada decisão inusitada em termos de medidas indutivas há um requerimento do mesmo jaez.
[27] Situando o juiz como garante dos direitos fundamentais, conferir: DELFINO, Lúcio; NUNES, Dierle. Juiz deve ser visto como garantidor de direitos fundamentais, nada mais. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-set-03/juiz-visto-garantidor-direitos-fundamentais-nada>.
[28] Que são, nesses círculos, consideradas filigranas que protegem o “mau pagador” e frustram o atingimento da “justiça”, compreendida, grosso modo, no ponto, como pagamento “seja como for”; não por acaso se regozijam com notícias de penhoras extravagantes ou incomuns medidas de indução, impreterivelmente retumbantes sucessos de visualização e compartilhamento nas redes sociais.
[29] Problema que não assola apenas a execução, por óbvio.
[30] No contexto, conferir: DELFINO, Lúcio. Naturalização do indevido processo legal. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-jun-01/lucio-delfino-naturalizacao-indevido-processo-legal>.
[31] Exemplo frisante é a postura do Ministro Luís Roberto Barroso, ora dizendo que os Ministros devem “ouvir as ruas” para decidir (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2018/04/02/barroso-diz-que-juiz-deve-ouvir-sentimento-social-e-que-stf-esta-na-fogueira-das-paixoes-politicas.htm), ora dizendo que não (http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2018-08/em-materia-penal-nao-ha-espaco-para-clamor-das-ruas-diz-barroso).
[32] Não para os nossos otimistas, claro. Eles, gnosticamente, já vislumbraram o fim da história...
[33] Com proveito, conferir: BARBER, Benjamin R. Consumido. Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Rio de Janeiro: Record, 2009, passim.
[34] Vale a advertência de Theodore Dalrymple: “Se existe alguma coisa que causa dependência, essa coisa se chama poder normativo. Uma vez que se o tenha (em qualquer nível, caso a pessoa se incline a isso por temperamento), jamais se ficará satisfeito com a dose. A ausência de qualquer autoridade intermediária entre o indivíduo de um lado e o poder político soberano do outro permite que o último se insinue por entre os mais recônditos lugares da vida diária. Um poder infinito passará a pensar a si mesmo como infinitamente bom, já que se torna infinitamente responsável pelo bem-estar de seus súditos (os quais, obviamente, tornar-se-ão objetos de suas intervenções) (...) A falta de autoridades intermediárias, tais como família, igreja, organizações profissionais, etc., nos acostumou a esperar, e aceitar, o direcionamento centralizado de nossas vidas, mesmo quando resulta em absurdidades como essa. E, dessa forma, a corporificação da sociedade prossegue pari passu com a ampliação do nosso egoísmo desenfreado”. (DALRYMPLE, Theodore. Em defesa do preconceito. A necessidade de se ter ideias preconcebidas. São Paulo: É Realizações, 2015, p. 86-87).
[35] Pense-se na descartabilidade própria da modernidade e tempo líquidos, das quais fala Zygmunt Bauman. Ainda podemos retornar a Alfonso López Quintás, em suas lancinantes considerações sobre a idolatria do novo e do jovem: “Uma ideia, uma atitude, um critério ou uma atividade que não estejam ajustados ao momento atual costumam ser desqualificados com o simples recurso da zombaria, e considerados como “defasados”, “antiquados”, “ultrapassados”, como se estivéssemos falando de roupas fora de moda. “Atual” é considerado o “mutável”, “aquilo que pertence a esse momento”, “aquilo que é válido em virtude da mudança”. Não se pensa que, pela moda, os nossos modos de vestir são submetidos à passagem do tempo, mas que essa vertente da vida humana encontra-se num plano de realidade evidentemente inferior ao plano das ideias, das atitudes, dos critérios e das ações que decidem sobre o sentido da existência. Submeter essa vertente criativa do homem ao império do calendário supõe uma ilegítima redução de nível. Ater-se apenas ao “atual”, ao “vigente”, leva a idolatrar o jovem, entendido como “o novo”, “o recente”, “o originário”. Contudo, o fato é que no plano do tempo decorrente nada perdura: o novo também deslizará inexoravelmente para o passado, perdendo todo o seu encanto. (...) É cômico perceber ao longo da história os contínuos esforços de autoafirmação que foram feitos utilizando “o novo” como emblema” (QUINTÁS, Alfonso Lópes. A tolerância e a manipulação. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 197-198). À frente, arremata: “o ser humano só pode ser criativo no presente, ao projetar-se para o passado, assumindo as possibilidades que as gerações anteriores lhe transmitiram. Em latim, transmissão é traditio, que resultou na palavra “tradição”. O manipulador revolucionário subtrai a energia criadora do povo, fazendo com que este viva do impulso ilusório, proveniente do mero estar à espera de que se cumpram as promessas relacionadas ao futuro. Essa atitude de mera espera tem apenas a aparência de uma vida de esperança. Esperar em alguém significa receber dele, a cada momento, o impulso para viver o sentido da existência. Manter-se à espera significa deixar que o tempo passe, algo que se dá num plano inferior. Não cria relação alguma com uma realidade valiosa. O resultado é o tédio e a desesperança (...)”. (QUINTÁS, Alfonso Lópes. A tolerância e a manipulação. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 200-201).
[36] Pelo visto, essa colonização é um novo/eterno fetiche de parte da processualística pátria – embora sejam importações sempre parciais...
[37] LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.
[38] A partir do dispositivo é possível estabelecer a seguinte proposição: quem deve alimentos pode ser compelido a fazê-lo mediante emprego da prisão civil. O antecedente é ser devedor de alimentos e o consequente é a possibilidade de utilização da prisão civil como meio executivo.
[39] Partindo do conceito de economia da confiança desenvolvido por Scott Shapiro, Bruno Torrano produziu crítica brilhante à pretensão de reponderação. Seu texto foi produzido no contexto da decisão do STF – especialmente do voto do Ministro Luís Roberto Barroso – no bojo dos pedidos cautelares formulados nas ADCs 43 e 44, mas atende perfeitamente a reflexão aqui realizada. Isso, porque aquelas ações têm por objeto a declaração de constitucionalidade do art. 283, CPP, que toca o tema da presunção de inocência, enquanto aqui se fala da prisão civil, ambas, cada uma a seu modo, dirigidas à disciplina concebida/ponderada pelo constituinte originário ao direito fundamental de liberdade. Ora, como o STF – no caso objeto do texto de Bruno – e a doutrina – no tema aqui tratado – sustentam uma segunda ponderação dos interesses individuais e coletivos a respeito do direito fundamental de liberdade, autorizando juízes a afastarem a deliberação do constituinte originário acerca de direito fundamental de primeira geração com status de cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV, CRFB), tem-se evidente a relevância do seu texto in casu. Mesmo que possa haver divergência parcial – p.ex. filio-me aos que, com Dworkin, defendem que toda decisão deve ser proferida com base em argumentos de princípio –, a convergência é plena no ponto que ora interessa: “Aqui, calha trazer a lume um ensinamento do positivismo jurídico que, do ponto de vista teórico, consegue proteger os direitos de cidadãos sem recair na radical afirmação de que toda e qualquer decisão judicial deve ser baseada, somente, em argumentos de princípio. Trata-se do conceito de economia da confiança. Segundo Scott Shapiro, sistemas jurídicos não são apenas instituições planejadoras complexas destinadas a distribuir competência e autoridade. Sistemas jurídicos têm outra característica fundamental: o manejo de confiança dentro da extensa cadeia de oficiais do sistema que lidarão com a norma jurídica criada. Legisladores, ao promulgarem leis, estabelecem implícita ou explicitamente o grau de discricionariedade admitido no momento da interpretação dos textos legais. Em determinadas áreas, é possível que os legisladores entendam ser adequada para o ideal funcionamento das instituições sociais a atribuição de maior confiança no caráter e na competência dos magistrados e de outros oficiais encarregados de dar concretude à norma. Argumentos consequencialistas podem fazer parte do jogo decisório desde que estejam em consonância com a abertura admitida pela norma predecessora: em setores de direito econômico, direito concorrencial, direito empresarial, direito regulatório, direito falimentar, e assim por diante, geralmente fundamentos pragmáticos são legalmente válidos em razão da natureza da matéria tratada e dos efeitos econômicos envolvidos. Em outras áreas, todavia, o legislador opta por conferir menor ou quase nenhuma confiança à criatividade do aplicador do direito, de modo a preservar o aspecto objetivo e conservador da interpretação jurídica. Nessas hipóteses, a escolha legislativa é pelo entrincheiramento de direitos individuais mesmo quando confrontados com clamor público contrário ou mesmo quando sua preservação leve a consequências consideradas como injustas por parcela razoável da população. Note-se bem: a opção legislativa é realizada após o devido juízo de ponderação entre os interesses individuais e sociais conflitantes. Legisladores criam proteções a direitos individuais apenas depois de sopesarem os custos de deixarem à mercê de flutuações oportunistas a garantia de tais direitos com os custos que o entrincheiramento induz na proteção da segurança coletiva. Não é função do magistrado reponderar a solução entendida pelo Parlamento como a mais adequada. Leia-se: sob pena de violação à lógica do planejamento jurídico-constitucional, não cabe ao magistrado reabrir a controvérsia moral que ensejou, em um primeiro momento, a edição da própria norma jurídica garantidora de direitos: ‘a existência e conteúdo de um plano não podem ser determinados por fatos cuja existência o plano objetiva assentar’”. (TORRANO, Bruno. O Ministro Barroso e a execução provisória da pena criminal (Parte 2 – Ativismo judicial como “reponderação”). Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/o-ministro-barroso-e-a-execucao-provisoria-da-pena-criminal-parte-2-ativismo-judicial-como-reponderacao-por-bruno-torrano/>. (Os negritos são do original e os itálicos são nossos). Mais amplamente, conferir: TORRANO, Bruno. Pragmatismo no direito. E a urgência de um “pós-pós-positivismo” no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 131 e ss.
[40] Lucas Catib de Lauretiis elaborou trabalho primoroso sobre o princípio da proporcionalidade, de imenso proveito até mesmo para os seus mais ardorosos críticos. Tratando da sua origem, descrevendo os modelos e propondo a sua reconstrução dogmática, o autor expõe com precisão a devassa que, manejada sem critérios, a proporcionalidade é capaz de gerar. Remontando ao famoso Caso Lüth, julgado pelo Tribunal Constitucional, particularmente à tese da dimensão objetiva dos direitos fundamentais tal como ali encampada, afirma o autor que a proporcionalidade e a ponderação responderam pelo esvaziamento dogmático dos direitos fundamentais (=demarcação do âmbito de proteção de cada direito fundamental), bem como, por consequência, por sua colocação no lugar da interpretação, assumindo, assim, o monopólio operativo do direito. Em suas palavras: “como generalização de direitos quer dizer também abstração de conteúdos, o direito fundamental objetivo pode ser concebido como uma abstração dos elementos dogmáticos que constituem a relação jurídica de defesa. Configura, portanto, uma proteção jurídica que independe do sujeito, do objeto ou do destinatário da norma. Objetiva e universal, a proteção constitucional dos direitos fundamentais passa então a existir e valer, por si mesma. Em decorrência dessa tendência à universalização e à expansão dos conteúdos e efeitos dos direitos fundamentais, a aplicação de tais normas passa a ser um caso de colisão de direitos, que, por sua vez, exige a aplicação da ponderação e, consequentemente, a proporcionalidade. E na medida em que não só os direitos de defesa, mas também os direitos a pretensões estatais, competências e, enfim, valores não explicitamente protegidos pela Constituição configuram razões possíveis para uma colisão, a proporcionalidade deixa de ser uma técnica jurídica entre outras. Sem poder conter as possibilidade de criação, muitas vezes artificiais, de colisões entre direitos fundamentais, a proporcionalidade é transformada em um topos geral e universal. Ela é afastada de sua função original de contenção de abusos e excessos do poder estatal e passa a condensar e concentrar todos os parâmetro e todas as funções do direito. Proporcionalidade não quer mais dizer contenção, mas sim equilíbrio e harmonização. E as exigências para sua aplicação não poderiam ser mais simples. Basta afirmar que o parâmetro constitucional de proteção do direito fundamental expressa um valor, ou princípio, que não identifica todas as suas hipóteses de aplicação, para inferir que a ponderação é a única saída para que se identifique qual direito tem maior importância relativa, ou peso, em uma dada situação. Insuficiência de sentido se torna, então, motivo não para o esforço dogmático de delimitar o campo de proteção do direito fundamental via interpretação, e sim para pressupor a necessidade de aferição, em concreto, dos pesos e valores dos direitos fundamentais. Proporcionalidade e ponderação surgem, portanto, como substitutos, não correlatos, da interpretação jurídica. Universalizadas e generalizadas, elas estão em toda parte”. (LAURENTIIS, Lucas Catib de. Proporcionalidade. A proporcionalidade no direito constitucional: origem, modelos e reconstrução dogmática. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 80-82). Aliás, Joachim Rückert critica exatamente essa onipresença da ponderação, que vem a reboque da proporcionalidade, denunciando o que denomina sua dupla transformação e os riscos que apresenta à segurança jurídica. Veja-se: “Rigidez normativa deve produzir certeza do direito. Certeza do direito sempre foi desejo do cidadão. Queremos saber como devemos nos orientar, quais são as punições e os ganhos. Rigidez normativa deve produzir confiança no direito. Rigidez normativa deve ser geral e tratar todos de maneira igual. Ao fim e ao cabo, trata-se de justiça na terra. Ao contrário do que ocorre com a ponderação: ela ajuda no caso concreto. Ela se aproxima da equidade. Ela fez uma carreira surpreendente: de meio decisório da filosofia, da moral, da ética e da política a auxílio do jurista, de auxílio a solução para todos os problemas, de exceção a bala de prata metodológica da nossa prática jurídica. Essa dupla transformação funcional do não jurídico para o jurídico e, depois, dentro do próprio jurídico merece toda a nossa atenção, tanto atual como histórica, na teoria e na prática do direito”. (RÜCKERT, Joaquim. Ponderação – a carreira jurídica de um conceito estranho ao direito ou: rigidez normativa e ponderação em transformação funcional. Tradução de Thiago Reis. Revista Direito GV, São Paulo, V. 14 N. 1, p. 240-267, Jan.-Abr. 2018, p. 242).
[41] “Quando normas constitucionais e direitos fundamentais são convertidos em valores, quando todos os parâmetros constitucionais são nivelados e não há mais ponto de vista dogmático estável e, enfim, quando a proporcionalidade é convertida em um conceito universal e indeterminado, que serve igualmente à proteção do indivíduo e à expansão do poder do Estado, o caminho para a mudança contínua de perspectivas valorativas está sempre aberto. Estabilizar conflitos constitucionais simplesmente com base em conceitos e decisões de autoridades eleitas é, então, considerado um ato de uma visão retrógrada do direito e uma metodologia ultrapassada, ambas realizadas e defendidas por pessoas incapazes de captas as exigências sociais e morais do novo tempo. No limite, trabalhar com conceitos passa a ser considerado um ato antidemocrático e irracional, pois novos valores, ponderações e conflitos sempre podem surgir. Limites conceituais que desconsideram essas possibilidades infinitas de variação e valoração são, nessa perspectiva, inaceitáveis, pois toda razão de argumentação deve ser apresentada no interior da ponderação de princípios e valores. Assim, o modelo da ponderação exige que todos os envolvidos no processo de produção e aplicação do direito ponderem e valorem. Caso contrário, eles mesmos serão valorados como pseudointérpretes, defensores de uma visão formalista e individualista do passado, ou insensíveis às mudanças sociais. Nesse pondo, em que toda a interpretação é também uma valoração e em que o modelo submete todo aquele que dele discorda a um julgamento e a um desvalor, a universalidade da ponderação e a mutação da proporcionalidade se completam. O desígnio e o destino universalista do modelo dos valores se revela aqui na forma mais pura de seu absolutismo e, sem aceitar que o pensamento também possa trabalhar sem se render ao conjunto de oposições e relativismos da ponderação, ameaça todo aquele que ouse interpretar sem valorar: pondera ou te devoro”. (LAURENTIIS, Lucas Catib De. Proporcionalidade. A proporcionalidade no direito constitucional: origem, modelos e reconstrução dogmática. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 129-130).
[42] MÜLLER, Friedrich. Métodos de trabalho de direito constitucional. Trad. Peter Naumann. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 36.
[43] Ocorre que a não criatividade é uma arquigarantia fundamental do processo, como observa: COSTA, Eduardo José da Fonseca. As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/as-garantias-arquifundamentais-contrajurisdicionais-nao-criatividade-e-imparcialidade>. No mesmo sentido, Lucas Catib De Laurentiis sustenta que o ponderacionismo acaba com a diferença qualitativa entre as funções legislativa e jurisdicional e exige que não só os direitos como os poderes constituídos sejam proporcionais: “Em razão de tal mudança da natureza normativa dos parâmetros constitucionais, a relação entre os Poderes constituídos tem de ser alterada. Como a atividade de todos eles é reduzida a uma constante ponderação, não há mais diferença qualitativa entre a atividade legislativa e a judicial, criação e aplicação do Direito. Submetidos ao mesmo critério de avaliação, ambos os atos devem buscar a todo custo realizar as exigências impostas pelos valores constitucionais. Com isso, a proporcionalidade reafirma sua vocação universal: se há uma resposta à diferença, não mais qualitativa, mas de grau, entre as atividades realizadas pelas diferentes funções estatais, essa solução deve vir de sua própria configuração, ou de sua estrutura interna. Proporcionais não são mais só os direitos individuais, mas também os Poderes constituídos”. (LAURENTIIS, Lucas Catib De. Proporcionalidade. A proporcionalidade no direito constitucional: origem, modelos e reconstrução dogmática. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 82-83). Sustentando a inconstitucionalidade do § 2º do art. 489 do CPC: STRECK, Lenio. Comentários ao art. 489. Comentários ao Código de Processo Civil. 2ª ed. Organizadores: Lenio Luiz Streck, Dierle Nunes, Leonardo Cunha. Coordenador executivo: Alexandre Freire. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 711-712. Contra, defendendo a constitucionalidade do dispositivo, inclusive a possibilidade de ponderação de regras, ou melhor, dos princípios que lhes são subjacentes: Revista de Direito Brasileira. São Paulo, V. 16, n. 7, p. 324-345, jan/abr. 2017, p. 326-331, especialmente nota de rodapé n. 20. Apontando os riscos do mesmo dispositivo, conferir: ABBOUD, Georges. ROSSI, Júlio César. Riscos da ponderação à brasileira. Revista dos Tribunais Online, Revista de Processo, vol. 269, p. 109-138, jul./ 2017. Com leitura mais generosa do artigo – e do seu modelo teórico subjacente –, conferir: PEREIRA, Carlos Frederico Bastos. Fundamentação das decisões judiciais. O controle da interpretação dos fatos e do direito no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, versão eletrônica, Capítulo II, item 5.7.
[44] CARREIRA, Guilherme Sarri; ABREU, Vinícius da Gama. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11, p. 259. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC)
[45] CARREIRA, Guilherme Sarri; ABREU, Vinícius da Gama. Dos poderes do juiz na execução por quantia certa: da utilização das medidas inominadas. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11, p. 257-259. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC)
[46] Não por outro motivo se busca estender a prisão civil para além das execuções de alimentos stricto sensu.
[47] A visão inflacionada do contraditório (contraditório em sentido/senso forte, valor-fonte do processo) produziu uma espécie de transformação alquímica quase imperceptível do seu status jurídico: de garantia contrapoder em instrumento de legitimação do poder; de instituição de liberdade para as partes em instituição do (quiçá para o) Poder. Essa inversão se manifesta, basicamente, de duas maneiras: baralhamento funcional (=ausência de critérios para definir, com o rigor possível, quais funções processuais são de titularidade das partes e quais são do Estado-juiz, com o consequente exercício de funções de parte pelo Estado-juiz, mas nunca o contrário) e fragilização da legalidade (tolerância com a possibilidade de inovação jurídica pelo Estado-juiz quando as partes puderam influir argumentativamente na decisão). Mas atenção: o que ora se diz não intenta reduzir a importância do contraditório. Cuida-se precisamente se circunscrever o seu âmbito de incidência para que preserve sua autêntica natureza de garantia contrapoder, ao lado de tantas outras como a legalidade e a imparcialidade (mais diretamente, mas não exclusivamente, no sentido objetivo-funcional = impartialidade). Merece toda a nossa atenção a advertência de Igor Raatz e Natasha Anchieta: “Ninguém duvida que o contraditório seja uma importante garantia para as partes. Porém, ele é somente um dos fatores de legitimidade da atuação jurisdicional. Ele é incapaz de justificar quebras da imparcialidade judicial e a absorção do processo pelo detentor do poder jurisdicional. É necessário, nesse âmbito, ter muito cuidado: muitas vezes, o discurso em favor de uma noção forte do contraditório não passa de uma tentativa de transformá-lo em uma pseudogarantia legitimadora do poder” (ANCHIETA, Natascha. RAATZ, Igor. Contraditório em “sentido forte”: uma forma de compensação das posturas judiciais instrumentalistas? Revista eletrônica Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/31-contraditorio-em-sentido-forte-uma-forma-de-compensacao-das-posturas-judiciais-instrumentalistas).
[48] Ainda que não se adira ao radicalismo de Jeremy Waldron quanto aos limites do controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, são relevantes as suas advertências sobre os riscos da expansão do Judiciário, que consiste justamente em substituir a produção democrática do direito pelos representantes do povo pelo que os juízes pensam, segundo suas próprias avaliações, que a Constituição e as leis deveriam dizer: “si un tribunal va más allá de esto [de desenvolver o sentido do direito naqueles casos em que o texto constitucional é vago ou ambíguo] y desarrolla nuevos puntos de vista acerca de ló que (según el tribunal) la constitución debería haber prohibido (aunque no lo hizo) y toma decisiones sobre la base de esos puntos – para actualizar la constitución – entonces el documento constitucional deja de ser el fundamento para restringir el poder del tribunal. El tribunal es ahora ilimitado, y en este sentido es un soberano hobbesiano, más allá del alcance del Estado de derecho. El tribunal impone ahora su opinión acerca de cómo debería ser una constitución del siglo XXI, y en este sentido está adoptando el papel de pouvouir constituant. Quienes propugnan la teoría del árbol vivo o de la constitución viva rara vez expresan si están o no satisfechos con lo que implica la supremacía judicial. Se limitam a afirmar que no podemos quedarnos atrapados en las formulaciones congeladas de hace un siglo o más. (...). Debemos dejar que lá Constitución crezca, se afirma. Sería absurdo que hoy nos gobernaran las doctrinas del pasado. Tal vez sea cierto. Sin embargo, me gustaría oír algún reconocimiento de los costos que acarrea este enfoque. Y ló que he venido haciendo en los últimos párrafos es afirmar que debemos entender esos costos no sólo en términos del control judicial activista sino en los términos más problemáticos de la soberanía judicial y la supremacía judicial. Concluiré entonces con algunas advertencias contra quines permiten que su aprobación del control judicial – o al menos su aceptación de que es necesario – se convierta en entusiasmo por la supremacía judicial, que otorga a los jueces poder de gobierno. De forma inversa, una advertência en contra de permitir que la aceptación de los limites a la democracia y a la legislación democrática se convierta en indiferencia general respecto de si la posición de las ramas de poder elegidas por el pueblo está siendo totalmente desplazada, y, como resultado, la constitución está siendo desbalanceada”. (WALDRON, Jeremy. Contra el Gobierno de los Jueces. Vantajas y desvantajas de tomar decisiones por mayoría en el Congresso e em los tribunales. Cuidad Autónoma de Buenos Aires: Siglo XXI Ediciones Argentina, 2018, p. 149-151). O terreno acidentado que se tem revelado a aplicação do art. 139, IV, CPC, é um bom exemplo desses riscos.
[49] “A sanção da execução civil constitui dois deveres: o dever de não causar prejuízos, como dever principal, e o dever de ressarcir os prejuízos licitamente causados, como dever subsidiário que vem tomar o lugar do dever principal violado. O dever de ressarcir os prejuízos não é uma sanção, mas é esse dever subsidiário. A sanção da execução, isto é, a indenização compulsória do prejuízo através do órgão aplicador do direito, apenas surge quando esse dever não é cumprido. Se esta sanção da execução civil se dirige ao patrimônio do indivíduo que causou o prejuízo através de sua conduta e não o indenizou, este indivíduo responde pelo próprio delido, que consiste no não-ressarcimento do prejuízo por ele causado”. (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 139).
[50] O que se passou muito recentemente com o novo CPC, diga-se de passagem.
[51] “Examinemos algo que está fora de moda: o valor da lei e da Constituição. A autoridade da lei. O rule of law. (...) Eventuais deficiências do Legislativo devem ser pensadas e estrategicamente atacadas, mas não autorizam, de nenhuma forma, o deslocamento automático do eixo das escolhas públicas do Parlamento para cúpulas extremamente centralizadas de magistrados não-eleitos, com a preguiçosa aposta em coisas como ativismo judicial, realismo jurídico ou reverência cega a teses gerais fixadas em precedentes”. (STRECK, Lenio. Precedentes judiciais e hermenêutica. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 80). Embora tenha temperado, para o caso brasileiro, sua compreensão da tese da “economia da confiança” em relação aos limites de atuação do Poder Legislativo e do Poder Judiciário, reconhecendo que, em muitos casos, há relações institucionais de desconfiança quanto ao Legislativo, inclusive quando é da vontade deste depositar mais confiança no Judiciário, Bruno Torrano não descamba em permissividade em favor do Judiciário. No seu entendimento, “as decisões pretéritas constitutivas de planos consolidados criam um “filtro de admissibilidade de opções”, isto é, razões estruturantes: razões que se prestam a impor limites ao processo de balanceamento de razões, a fim de verificar a relevância e admissibilidade de cada uma”. Assim, embora a Teoria do Planejamento Social “não negue que o plano precisa passar por correções de adaptações conforme as exigências do caso concreto e a evolução social” (Scott Shapiro) e as perguntas metódicas tenham sempre importância para delimitar o conteúdo do plano, “as perguntas possíveis dentro de um contexto planejador, à luz do objetivo previamente assentado, são limitadas pelo plano, e não o contrário. Se levarmos a sério a institucionalidade do direito e os propósitos pelos quais um sistema institucional é criado, a prevalência, em regra, é da norma jurídica, com o significado extraível do cotejamento de seu texto com as circunstâncias e com o sistema, e não com os fatos subjacentes”. Reafirmando a relevância do texto normativo na compreensão do “planejamento social”, inclusive como limites para as tentativas de adaptações, conclui com Scott Shapiro: “as visões extraídas por meio dessa prática são aquelas que melhor explicam a construção e a adoção dos textos que guiam a prática”. (TORRANO, Bruno. Pragmatismo no direito. E a urgência de um “pós-pós-positivismo” no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 216 e 217; conferir, ainda, p. 218 e ss.). Temos regras legais prescrevendo que determinados bens são impenhoráveis e, no ponto, nada indica que o Legislativo depositou maior confiança no Judiciário para definir essa disciplina. Permitir essa modalidade de ativismo judicial é trair o planejamento social muito recentemente celebrado (leia-se: o CPC/15) e descambar em violação da separação dos Poderes (art. 2º, CRFB).
[52] ROCHA, Bheron; CAMPOS, Bruno; SOUSA, Diego Crevelin de. Medidas indutivas inominadas: o cuidado com o fator shyloquiano do art. 139, IV, CPC. In: TALAMINI, Eduardo; MINAMI, Marcos Youji (Coord.). Medidas executivas atípicas. Salvador: JusPodivm, 2018, v. 11, p. 715. (Coleção Grandes Temas do Novo CPC)
[53] A propósito, conferir: TORRANO, Bruno. As vantagens do pessimismo no direito. Disponível em: <www.emporiododireito.com.br/leitura/as-vantagens-do-pessimismo-no-direito>.
[54] Felizmente, o canto das sereias não seduziu a jurisprudência do TJES. Exemplificativamente: “3. A decisão recorrida indeferiu o bloqueio do passaporte porque a medida (I) não seria necessária e útil para garantir o pagamento da dívida; (II) desbordaria da esfera patrimonial da parte executada; e (III) violaria o direito constitucional de ir e vir. 4. Para avaliar a legalidade da medida executiva atípica, é imprescindível testá-la de acordo com a máxima da proporcionalidade, compreendida em suas três subdivisões: Adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (art. 8º do CPC/2015). 5. Enquanto a adequação pressupõe uma relação de meio-e-fim entre a medida executiva atípica adotada e a finalidade pretendida (satisfação do crédito); a necessidade exige que essa medida seja a menos gravosa possível para o atingimento da finalidade (menor onerosidade do devedor); e, por fim, a proporcionalidade em sentido estrito reclama uma ponderação dos interesses em jogo para averiguar qual se sobrepõe à luz das circunstâncias do caso concreto (efetividade da execução vs. menor onerosidade). 5. O bloqueio do passaporte é medida executiva atípica que esbarra logo na primeira submáxima, a adequação, pois, ao não possuir qualquer nexo de ligação com a esfera patrimonial da parte devedora, não tem a capacidade de compelir o devedor a pagar o débito executivo e funciona apenas como elemento punitivo”. (TJES; AI 0031113-08.2017.8.08.0024; Terceira Câmara Cível; Rel. Des. Samuel Meira Brasil Junior; Julg. 26.06.2018; DJES 13.07.2018). No mesmo sentido: AI 0001390-66.2018.8.08.0069; Rel. Des. Subst. Victor Queiroz Schneider; Julg. 14.08.2018; DJES 27.08.2018; AI 0007574-43.2017.8.08.0014; Rel. Des. Jorge Henrique Valle dos Santos; Julg. 20.03.2018; DJES 27.03.2018; AI 0013185-83.2017.8.08.0011; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Janete Vargas Simões; Julg. 12.12.2017; DJES 18.12.2017).
[55] Aparentemente, ninguém confessará um desconcertante sono de inventividade durante todo esse tempo, daí ser mais crível justificar os novos rompantes como corolários de uma (inexistente) novidade legislativa.
[56] A propósito, conferir: JOUVENEL, Bertrand de. O Poder: história natural de seu crescimento. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Editora Peixoto Neto, 2010, passim. Refletindo sobre a expansão do poder Jurisdicional a partir desse referencial teórico, conferir: DIETRICH, William Galle. O Processo: a história natural do seu sufocamento. Revista eletrônica Empório do Direito. Disponível em: https://bit.ly/2N2bini.
[57] TORRANO, Bruno. As vantagens do pessimismo no direito. Disponível em: <www.emporiododireito.com.br/leitura/as-vantagens-do-pessimismo-no-direito>.
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