As garantias arquifundamentais contrajurisdicionais: não-criatividade e imparcialidade

19/04/2018

I

No plano pré-constitucional da racionalidade jurídica, pode-se conceituar as três funções primordiais do Estado, em linhas gerais, do seguinte modo: a) legislação [rectius: jurislação] é a criação do direito; b) jurisdição é a aplicação imparcial do direito; c) administração é a aplicação parcial do direito. Como se percebe, trata-se de três conceitos complementares, sem superposição, que, soldados, varrem o horizonte da atividade jurídica do Estado. Daí o deslize metodológico de vários processualistas, cujas definições isoladas de jurisdição se fazem arbitrariamente, sem cotejo lógico com as definições de legislação e administração.

Para o presente estudo, chamam atenção as duas notas distintivas da jurisdição: a não-criatividade e a imparcialidade. Se o juiz cria direito, desvirtua-se num legislador, sem legitimidade democrática; se aplica o direito com deliberada parcialidade, descai num agente administrativo. Logo, há duas garantias primárias ou arquifundamentais contra os desvios e excessos judiciais, que antecedem racionalmente a própria positivação constitucional e que, por isso, a determinam: 1) a GARANTIA ARQUIFUNDAMENTAL DA NÃO-CRIATIVIDADE; 2) a GARANTIA ARQUIFUNDAMENTAL DA IMPARCIALIDADE.

São elas a matriz dual originária-originante da qual se derivam no plano positivo-constitucional parte considerável das garantias secundárias ou fundamentais. Talvez porque profundas demais, têm infelizmente escapado à miopia dos «processualistas» [rectius: procedimentalistas], cuja rasa teorização devota a elas uma olímpica ignorância ou uma compreensão de baixa analiticidade.

II

GARANTIA FUNDAMENTAL DA LEGALIDADE [plano positivo] bem concretiza a arqui-garantia da não-criatividade [plano pré-positivo]. O juiz deve manter-se no reduto tedioso da legalidade. A lei - aprovada por representantes eleitos democraticamente pelo povo - é o limite normativo do seu movimento. As únicas possibilidades funcionais do juiz são as possibilidades semânticas do texto legal. Aplicando conteúdo semântico extralegal, o juiz não aplica criação legislativa, mas criação sua (sob inspiração própria ou alheia). Não interpreta-aplica, mas esquematiza-aplica. Age como legislador. Inventa sem autorização constitucional. Atua imaginativamente à margem de legitimação democrática. No entanto, no Brasil, jamais um cientista do processo se ocupou da legalidade (CF, art. 5º, II) como uma garantia fundamental contrajurisdicional. Aliás, espanta - mesmo entre os constitucionalistas - a penúria literária sobre o tema. Pudera: no país do ativismo judicial agudo, lei é sinal de mau agouro e legicentrismo item no Código Internacional de Doenças.

(A expressão «garantias fundamentais do processo» é equívoca. Afinal, processo regulado em lei passo dopo passo é também garantia fundamental contra eventuais arbítrios do juiz: a GARANTIA FUNDAMENTAL DO PROCESSO ou DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (CF, art. 5º, LIV). Por isso, é melhor que se fale em GARANTIAS FUNDAMENTAIS CONTRAJURISDICIONAIS. São contrajurisdicionais tanto o processo quanto a fundamentação das decisões judiciais, por exemplo. Mas nem todo contrajurisdicional é processual: são garantias individuais contrajurisdicionais pré-processuais as reclamações ao CNJ (CF, art. 103-B, § 4º III e § 5º I) e às ouvidorias de justiça (CF, art. 103-B, § 7º). Quando se diz «garantias fundamentais do processo», diz-se - equivocadamente - que o processo é um instrumento da jurisdição permeado por garantias individuais, que constrangem a manipulação desse instrumento pelo Estado. Ou seja, fala-se, na verdade, em «garantias fundamentais no processo», sem que o processo seja em si uma garantia fundamental. Portanto, a expressão serve à catequese instrumentalista. Todavia, o processo é ele próprio uma garantia individual dos jurisdicionados, que se põe ao lado de outras garantias volvidas à neutralização, à evitação ou à mitigação do arbítrio do juiz.)

Mas é preciso aqui minuciar a ideia de não-criatividade. A expressão quer significa «proibição da atividade de criar». Criar vem do latim creare, «produzir, erguer», relacionado a crescere, «crescer, aumentar», do indo-europeu ker-, «crescer». Portanto, da garantia primária da não-criatividade se podem derivar garantias secundárias que proíbam o juiz de fazer crescer, erguer, aumentar, acrescentar, ampliar ou extrapolar algo pré-instituído. Esse pré-instituído pode ser extra-processual ou intra-processual. Fora do processo há a lei, que o legislador pré-institui ao juiz; dentro do processo há os pedidos, os fundamentos e os argumentos, que são pré-instituídos ao juiz pelas partes. Nesse sentido, a garantia pré-positiva da não-criatividade pode manifestar-se no plano positivo pelas vinculações do juiz à lei [GARANTIA FUNDAMENTAL DA LEGALIDADE], aos pedidos formulados pelas partes [GARANTIA FUNDAMENTAL DA CONGRUÊNCIA], aos fundamentos invocados pelas partes [GARANTIA FUNDAMENTAL DA ADSTRIÇÃO] e aos argumentos que elas articulam para relacionar os fundamentos invocados aos pedidos formulados [GARANTIA FUNDAMENTAL DO DIÁLOGO]. Daí por que faz antijurisdição o «juiz» que se arvora em liberdades e, escorado nelas, julga apesar da lei, atende a informulações, surpreende com fundamento inédito ou não enfrenta os argumentos que lhe são submetidos.

III

Por sua vez, da garantia arquifundamental da imparcialidade [plano pré-positivo] se derivam várias garantias fundamentais [plano positivo]. Quando se diz que o juiz deve ser imparcial, o termo assume, ao menos, doze sentidos no plano jurídico-positivo:

  1. i) o juiz deve ser im-parcial, não-parte, alheio ou terceiro ao conflito [GARANTIA FUNDAMENTAL DA TERCEIRIDADE];
  2. ii)o juiz não pode ter objetivamente qualquer interesse jurídico, moral ou econômico no desfecho da causa [GARANTIA FUNDAMENTAL DO DESINTERESSE];

iii) o juiz da causa não deve ter conexões fortes de afeição, aversão ou envolvimento profissional com qualquer das partes (ascendente, descendente, cônjuge, companheiro, noivo, namorado, amigo íntimo, inimigo, sócio etc.) [GARANTIA FUNDAMENTAL DO DISTANCIAMENTO];

  1. iv)o juiz deve lutarcontra eventual predisposição, preferência, antipatia ou preconceito que nutra subjetivamente por qualquer das partes - em razão de raça, cor, religião, sexo, orientação sexual, idade, estado civil, ideologia político-social, status socioeconômico, grau de escolaridade etc. -, ainda que na prática seja impossível um grau absoluto de neutralidade ou um nível zero de contaminação psicológica [GARANTIA FUNDAMENTAL DO ESFORÇO PELA NEUTRALIDADE PSICOLÓGICA];
  2. v) o juiz não se deve enviesar cognitivamente pelas heurísticas de confirmação(ex.: o juiz da liminar tende a confirmá-la na sentença; o juiz de garantias na investigação criminal tende a receber a denúncia), representatividade(ex.: o juiz da prova oral tende na sentença a valorar nervosismo como mentira e tranquilidade como verdade), ancoragem (o juiz da prova ilícita excluída tende a perseguir nos autos o mesmo resultado prático da reinclusão; o juiz da sentença terminativa nulificada tende a rejulgar pela improcedência), etc. [GARANTIA FUNDAMENTAL DO NÃO-ENVIESAMENTO COGNITIVO];
  3. vi) o juiz não deve, mediante iniciativas oficiosas, favorecer ou perseguir funcionalmente qualquer das partes, devendo agir somente por provocação [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INÉRCIA FUNCIONAL] (obs.: um dos seus corolários é a GARANTIA DA DISPOSITIVIDADE ou DA AUTORRESPONSABILIDADE PROBATÓRIA DAS PARTES, a qual evita o risco de que o juiz favoreça uma das partes ordenando ex officioprovas que a auxiliem; outra derivação é a GARANTIA DA AÇÃO PROCESSUAL, que atribui à parte a provocação do exercício da função jurisdicional, evitando o risco de que o juiz o faça sponte suacom a intenção de favorecer ou prejudicar alguém);

vii) o juiz não deve sofrer interferências nem pressão interna ou externa, direta ou indireta, de ordem política ou técnica, para beneficiar ou prejudicar qualquer das partes; sofrendo, não deve curvar-se em hipótese alguma [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INDEPENDÊNCIA];

viii) o juiz não deve externar em público predisposição, preferência, antipatia ou preconceito por qualquer das partes, mesmo que essa condição íntima jamais redunde em privilegiamento ou perseguição funcional [GARANTIA FUNDAMENTAL DA APARÊNCIA DE NEUTRALIDADE];

  1. ix) o juiz deve manter a sua imparcialidade absolutamente incorruptível e aparentar em sua conduta pública essa incorruptibilidade [GARANTIA FUNDAMENTAL DA INTEGRIDADE E DA CORREÇÃO];
  2. x)o juiz deve tratar as partes com urbanidade e lhaneza, evitando atritos que o indisponham contra elas e que lhe inquinem, consequentemente, a imparcialidade [GARANTIA FUNDAMENTAL DA URBANIDADE E DA LHANEZA];
  3. xi) o juiz da causa deve integrar órgão cuja competência haja sido definida ex ante facto por critérios impessoais e objetivos estabelecidos em lei, impedindo-se com isso nomeações ad hocque visem deliberadamente favorecer ou prejudicar qualquer das partes [GARANTIAFUNDAMENTAL DO JUIZ NATURAL];

xii) o juiz que não queira, não possa ou não consiga ser imparcial deve ser substituído por iniciativa sua ou a requerimento da parte interessada [GARANTIA FUNDAMENTAL DA SUBSTITUIBILIDADE].

Como se vê, o problema jurídico-positivo da imparcialidade é poliédrico e, por conseguinte, complexo. Refrata-se em doze garantias fundamentais, que não se reduzem simploriamente ao duo categorial da «imparcialidade objetiva» e da «imparcialidade subjetiva». Não se pode olvidar, contudo, que essa multiplicidade é «apenas» a manifestação duodecenária de uma unidade arquifundamental. Por isso, inexiste hierarquia entre essas doze garantias. Nenhuma é mais proeminente que a outra. Todas se reforçam mutuamente, sob um regime funcional de circum-ligamento e inter-influência, para concretizar a imparcialidade em sua pré-positividade.

Isso mostra, dentre outras coisas, que as quebras de imparcialidade não se reduzem a róis taxativos, fragmentários, casuísticos, incompletos, arbitrários, exemplificativos e intuitivos de causas de suspeição e impedimento. Aliás, não raro, as leis procedimentais civil e penal têm róis diferentes entre si, o que pode gerar, por exemplo, um regime injustificado de imparcialidade mais rígido no procedimento civil que no procedimento penal. Ademais, qualquer tentativa de diferenciação ontológica entre suspeição e impedimento é malograda: na sucessão temporal das leis procedimentais, é comum uma causa de suspeição tornar-se de impedimento e uma causa de impedimento tornar-se de suspeição. Na tradição jurídica positiva brasileiro, só as causas de impedimento geram a rescindibilidade do julgado; porém, nelas não há qualquer quid objetivo que as faça mais graves que as causas de suspeição. Logo, o ideal seria uma abrangente e inteiriça exceção de parcialidade, indivisível em «exceção de suspeição» e «exceção de impedimento». Mais: o ideal seria que toda sentença proferida por juiz parcial - em afronta a qualquer das garantias fundamentais acima aludidas - fosse rescindível. Sem exceções. Afinal de contas, prestação de «jurisdição» sem imparcialidade é prestação de antijurisdição; é o mais grave vício cogitável num sistema procedimental.

Ante o exposto, nota-se que o Brasil é o túmulo da imparcialidade. Por ora, ela não passa de um instituto reles aguardando uma refundação dogmática radical. É somente uma amorfia de imagens pálidas, ambíguas e desconexas, dispersas pelos discursos normativo, doutrinário e jurisprudencial.

IV

Além das garantias fundamentais acima referidas, outras podem ainda ser obliquamente usadas como mecanismos coadjuvantes de enforcement da imparcialidade judicial:

  1. a) GARANTIA FUNDAMENTAL DO CONVENCIMENTO MOTIVADO NÃO-LIVRE OU MANIETADO[o juiz deve valorar as provas a partir de uma racionalidade exterior-objetiva construída ante causam; assim, evita-se o risco de que favoreça uma das partes supervalorando as provas a ela favoráveis e desvalorando as provas a ela desfavoráveis];
  2. b) GARANTIA FUNDAMENTAL DO CONTRADITÓRIO[o juiz nunca deve decidir sem antes ouvir; assim, evita-se o risco de que o juiz favoreça uma das partes sem ao menos ouvir as razões da outra];
  3. c) GARANTIA FUNDAMENTAL DA MOTIVAÇÃO[o juiz deve decidir sempre motivando; assim, evita-se o risco de que favoreça uma das partes sem expor os motivos que a servem e os motivos que desservem a parte contrária] (obs.: essa garantia também atende à não-criatividade, pois permite que se verifique se o juiz se ateve aos pedidos, aos fundamentos e aos argumentos trazidos pelas partes);
  4. d) GARANTIA FUNDAMENTAL DO PROCESSO ou DO DEVIDO PROCESSO LEGAL[o juiz deve acatar a rigidez procedimental estabelecida em lei; assim, evita-se o risco de que favoreça uma das partes criando sequência de atos que dificulte ou aniquile o exercício do contraditório e da ampla defesa pela outra] (obs.: da mesma forma, essa garantia atende à não-criatividade, pois impede que o juiz flexibilize inventivamente o procedimento legal);
  5. e) GARANTIA FUNDAMENTAL DA ISONOMIA[o juiz deve sempre tratar as partes de maneira isonômico, sendo irrelevante a desigualdade material entre elas, salvo se a lei definir critérios objetivos racionalmente controláveis de aferição dessa desigualdade; assim, evita-se o risco de que o juiz favoreça uma das partes a pretexto de ser ela hipossuficiente] (obs.: essa garantia atende igualmente à não-criatividade, pois impede que o juiz defina livremente para si quando há desigualdade entre as partes e quais medidas pode tomar para as igualar);
  6. f) GARANTIA FUNDAMENTAL DA «PRESUNÇÃO» [RECTIUS: PRESSUPOSIÇÃO] DE INOCÊNCIA[deve-se pressupor a inocência penal ou civil do réu, não a sua culpabilidade; dessa pressuposição decorrem dois importantes corolários: i) a GARANTIA DA DISTRIBUIÇÃO ESTÁTICA DOS ÔNUS PROBATÓRIOS, por força da qual é ônus do autor destruir a barreira pressupositiva mediante prova do fato constitutivo da ação material objeto do processo e do réu reforçar a barreira mediante prova do fato extintivo, impeditivo ou modificativo da ação material, evitando o risco de que o juiz surpreenda a parte criando-lhe ônus probatório invencível; ii) a GARANTIA DA IMPROCEDÊNCIA POR AUSÊNCIA OU INSUFICIÊNCIA DE PROVAS, que obriga o juiz em dúvida a declarar infundada a existência da ação material, evitando o risco de que escolha o resultado do julgamento em favor de uma das partes].

V

Apenas as garantias da não-criatividade e da imparcialidade são pré-positividades arquifundamentais, pois inexas [in-nexas], isto é, inerentes [in-erentes] à estrutura íntima da jurisdicionalidade. Isso faz com que o desrespeito a elas e às suas derivações desfigure a identidade da própria jurisdição, que se desnatura usurpadoramente em atividade legislativa ou administrativa. No entanto, o leitor familiarizado com o processo bem sabe que os corolários positivos da não-criatividade e da imparcialidade não constituem o todo das garantias fundamentais contrajurisdicionais. Isso porque existem garantias fundamentais anexas [ad-nexas], aderentes [ad-erentes], que não procedem de qualquer das duas fontes arquifundamentais, embora se agreguem aos extratos jurídico-positivos da pirâmide das garantias. Isso significa que o desrespeito a essas garantias, posto que grave, não configura usurpação de função legislativa ou administrativa pelo juiz.

Exemplo crasso de anexação desenraizada do par arquifundamental é a GARANTIA FUNDAMENTAL REPUBLICANA. No Brasil, a nulidade doutrinária sobre a relação entre República e Processo é injustificável. Republicanismo compreende, dentre outras coisas, transparênciaprestação de contas e controlabilidade. A primeira e a segunda são condições de possibilidade da terceira. Sem transparência governamental e prestação de contas não consegue o povo fiscalizar e eventualmente impugnar a atuação das autoridades públicas. No campo específico da jurisdição, a transparência se encarna na PUBLICIDADE [a qual garante que se dê conhecimento dos atos jurisdicionais não só às partes e aos terceiros intervenientes, mas ao público em geral]; a prestação de contas, na MOTIVAÇÃO [a qual garante que o juiz declaradamente «preste contas» - às partes, aos terceiros intervenientes e ao público em geral - de suas razões de decidir]; a controlabilidade, no trinômio formado pelo DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO [que garante a revisibilidade das decisões jurisdicionais por órgão hierárquico superior] e pelas COLEGIALIDADES FORMAL [a qual garante que a revisão se faça por órgão de estrutura colegiada] e MATERIAL [a qual garante que as deliberações do colegiado decorram de interação e discussão entre seus membros, não da mera soma de votos individuais autísticos ou do trabalho solipsista do relator] 

(obs.: as garantias da publicidade, da motivação, do duplo grau de jurisdição e da colegialidade refreiam, outrossim, a criatividade e a parcialidade: a primeira inibe-as; a segunda expõe-nas; a terceira desprotege-as; a quarta constrange-as na intersubjetividade).

VI

Outro exemplo de garantia fundamental meramente anexa - que tem recebido ares impróprios de arqui-arqui-fundamentalidade - é a eficiência. A eficiência - que é um atributo da jurisdição, não do processo - tem duplo sentido: i) eficiência jurisdicional como aproveitamento [o juiz deve maximizar a entrega da tutela jurisdicional praticando um mínimo de atos processuais, reputando-se válidos os que, não realizados na forma prescrita em lei, lhe alcançar a finalidade, salvo cominação de nulidade; ii) eficiência jurisdicional como rendimento [o juiz deve realizar a entrega da tutela jurisdicional de modo efetivo e em tempo razoável]. Como se nota, a garantia do aproveitamento se desdobra na GARANTIA DA ECONOMIA PROCESSUAL e na GARANTIA DA INSTRUMENTALIDADE DAS FORMAS; por sua vez, a garantia do rendimento se desdobra na GARANTIA DA EFETIVIDADE e na GARANTIA DA DURAÇÃO RAZOÁVEL DO PROCESSO. São esses os únicos quatro desdobramentos possíveis.

Nenhuma delas é bastante para relativizar qualquer das garantias que derivam da não-criatividade e da imparcialidade. Entendimento contrário implicaria a própria desnaturação da atividade jurisdicional. O Poder Judiciário usurparia com eficiência as funções legislativa ou administrativa, mas sequer desempenharia com eficiência a própria função jurisdicional (dentro dos limites do que se pode entender por jurisdicionalidade). Lembre-se que a eficiência é uma garantia individual dos jurisdicionados, pois combate a indolência do Estado-jurisdição. É um contra-jurisdicional, não um pró-jurisdicional, pois. Esse é o seu correto eixo de compreensão. Logo, não se pode, a pretexto de incrementar a eficiência, enfraquecer garantias como a legalidade, o devido processo legal, o juiz natural e a colegialidade material (decerto as vítimas preferidas do pan-eficienticismo).

Na realidade, a bandeira da eficiência - sempre embebida em heterodoxias semânticas - tem servido como o novo véu dos justiceiros. Hasteiam-na ora para fazer criativos os juízes, permitindo que se arvorem legisladores, ora para fazê-los parciais, permitindo que favoreçam a acusação [punitivismo processual] ou o «hipossuficiente socialmente injustiçado» [socialismo processual]. Todavia, no processo, a eficiência não pode justificar infra- ou extra-legalidades, flexibilizações procedimentais per officium iudicis, pré-exclusão de competência absoluta ou monocracias em instâncias recursais.

VII

Com isso se percebe que o telos da maioria das garantias fundamentais contrajurisdicionais é o resguardo da não-criatividade e da imparcialidade. A partir delas se ergue o portentoso edifício das macro-, meso- e micro-garantias, por meio das quais se refreiam eventuais arbítrios cometidos pelos exercentes da função jurisdicional. São elas a arquidualidade fundante do sistema processual e, portanto, de todos os subsistemas procedimentais existentes (civil, penal comum, penal militar, eleitoral, trabalhista).

Mas é possível ainda elevar-se à não-criatividade e à imparcialidade e encontrar por sobre elas uma garantia arqui-arqui-fundamental. É possível descobrir, enfim, «o» fundamento último das contrajurisdicionalidades em geral e da processualidade em particular. Algo anterior à não-criatividade e à imparcialidade, supranexo, do qual elas derivam e do qual decorre, em consequência, todo o corpus das garantias. Esse algo é a AUTOCONTENÇÃO JUDICIAL [judicial self-restraint]. Ao fim e ao cabo, é contra ela que lutam os justiceiros, cuja imaturidade não tolera decepções com as soluções dadas pela lei. Mas, de certa maneira, é contra eles que existe o processo, que lhes vence impulsos, instintos, automatismos, ancestralidades e irracionalidades. Pois esse é o desiderato maior das garantias: civilizar.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Ópera de Arame // Foto de: Ana_Cotta // Sem alterações

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