Regulação das Big Techs no território Europeu: Digital Services Act e o Digital Markets Act

16/01/2021

Na economia de plataforma, dominada pelas Big Techs, um dos maiores desafios dos Estados ao redor do mundo é a dificuldade de regulamentar as atividades destas empresas. Em colunas pretéritas, nos dedicamos à esta temática, analisando como as principais Big Techs - Google, Facebook, Apple e Amazon - conseguiram acumular o poder que têm, e como conseguem manter a posição dominante (graças ao monopólio de dados) no setor em que atuam[1].

Semana passada, inclusive, fizemos a retrospectiva do turbulento ano de 2020, e apontamos algumas expectativas para esse ano que acabara de começar[2], e dentre as temáticas que elencamos, encontra-se a provável intensificação na regulamentação das Big Techs para o ano de 2021. Por isso, pode até parecer temática repetida, mas longe disto. A regulamentação das Big Techs é uma medida importante e emergente para controle não só do mercado concorrencial, mas como forma de proteção dos consumidores finais, tanto em relação ao produto/serviço a eles ofertado, quanto a temáticas envolvendo proteção de seus dados.

A União Europeia já demonstra preocupação com essa questão, e não é de hoje. No início dos anos 2000 a UE adotou a Diretiva CE 2000/31[3], conhecida como Diretiva do Comércio Eletrônico, em um cuidado com os desafios trazidos ante a nova realidade inerente à sociedade da informação – as novas tecnologias que transformaram o modo como os cidadãos consomem, conectam-se, se comunicam e realizam negócios. Mas naquela época, ainda que os desafios fossem muitos, não havia como prever o acelerado surgimento de novas tecnologias. Deste modo, a Diretiva se mostrou insuficiente para resolver diversos problemas atuais e que precisam de regulamentação, tal qual o caso das gigantes de tecnologia.

Verifica-se, ano após ano, que a evolução das figuras dos tradicionais provedores de Internet, principalmente o provedor de hospedagem (hosting provider) se deu de forma muito rápida, tornando a Diretiva 31/2000 UE insuficiente para lidar com os problemas sociais de sua época. Inclusive, existe decisão do Tribunal Europeu (com o importante caso da L’Oreal x eBay) que tentou criar soluções para os novos problemas referentes à evolução da figura destes provedores de hospedam.

A fim de tentar encontrar soluções para estas respostas, em 2019 a União Europeia sancionou o Regulamento 1150/2019[4]. Tal normativa, que passou a vigorar em julho de 2020, tem como objetivo contemplar os novos problemas identificados pela UE no comércio eletrônico, especificamente sobre as plataformas de marketplace (shoppings virtuais) que ainda não existiam em 2000, e que mudaram completamente a dinâmica das relações contratuais.

De forma resumida, devido à natureza da atividade desenvolvida por essas plataformas de intermediação, que simultaneamente operam como fornecedoras de um mercado online para empresas independentes e também como varejistas de seus próprios produtos, elas têm acesso a uma grande quantidade de dados, pois possibilitam um ambiente virtual para hospedar fornecedores diversos. E a partir disso, o marketplace consegue coletar todos os dados referentes às atividades desenvolvidas em sua plataforma, sabendo exatamente o que é mais procurado, quais os preços aplicáveis e assim, podendo ofertar determinados produtos ou serviços mais baratos e com destaque na pesquisa, uma vez que é a plataforma quem controla o mecanismo de busca e como os produtos procurados aparecerão aos consumidores.

A estratégia de crescimento a partir do controle e tratamento destes dados coletados pelas plataformas de marketplace pode ser demonstrado por meio de três casos nos últimos anos.

O primeiro é o caso envolvendo o Google Shopping que, em 2015 fora acusado pela Comissão Europeia por concorrência desleal ao conceder vantagem injusta ao seu próprio serviço, pois sempre que alguém pesquisava por produtos em seu mecanismo de busca, a Google Shopping apresentava em primeiro lugar os produtos ofertados por ela.

O segundo caso aconteceu em 2019 e envolveu a empresa Amazon. A Comissão Europeia iniciou uma investigação formal contra o marketplace da Amazon para esclarecer se a coleta de dados realizada pela plataforma estava de acordo com as regras da UE sobre concorrência desleal, tendo em vista que a empresa ora atua como fornecedora de plataforma para terceiros, ora atua como varejista, concorrendo diretamente com estes terceiros que ofertam em sua plataforma.

O terceiro caso envolve denúncias feitas à Comissão Europeia, no início de 2020, contra o marketplace do Facebook, com alegações de que a plataforma realiza concorrência desleal, favorecendo os produtos por ela ofertados. Muito provavelmente, assim como aconteceu com a Amazon, o Facebook será o próximo a ser investigado sobre a utilização dos dados coletados de seus usuários para promover anúncios que favoreçam a própria plataforma.

Como já tratamos anteriormente, o problema vai além das plataformas de marketplaces, sendo este apenas um exemplo de como o uso estratégico de dados pessoais/negociais podem ser utilizados a fim de aniquilar a concorrência e proporcionar práticas anticoncorrenciais (como por exemplo por meio de aquisições de empresas menores, imposição de regras unilaterais etc.). O Regulamento 1150/2019 da UE foi apenas o início da regulamentação de serviços digitais, mas muito precisa ser feito.

Assim, a UE, entendendo a necessidade de adoção de novas e mais robustas regras para regulamentar esses serviços digitais, em decorrência do impacto que têm na vida de seus cidadãos e ante ao acelerado desenvolvimento dessas empresas e serviços, propôs uma complementação à Diretiva 31/2000, emendando-a, por meio da Comissão Europeia, a partir de duas iniciativas legislativas: o Digital Services Act (DSA) e o Digital Markets Act (DMA)[5] como parte do pacote da Lei de Serviços Digitais. A proposta tem dois importantes e principais objetivos: 1. a criação de um espaço digital mais seguro no qual os direitos fundamentais de todos os usuários de serviços digitais sejam protegidos; e 2. fixar condições concorrenciais que se deem de forma equitativas, visando a promoção da inovação, o crescimento e a competitividade, tanto no Mercado Único Europeu como a nível mundial[6].

A proposta fora realizada no dia 15 de dezembro, e trouxe um conjunto de medidas normativas que, dentre outras coisas, visam combater e conter a atuação das Big Techs. Em linhas gerais, o Digital Services Act busca i. assegurar uma melhor proteção dos consumidores e o respeito dos seus direitos fundamentais nos ambientes online; ii. promover a inovação, o crescimento e a competitividade nas relações comerciais da UE; e iii. instituir um quadro claro e eficaz em matéria de transparência e responsabilidade das plataformas que de serviços online[7]. A preocupação é estabelecer um ambiente competitivo saudável, proporcionando que pequenas empresas tenham as mesmas oportunidades de expansão, além de colocar o cidadão como centro dessas relações, garantindo vantagens para eles, para os prestadores de serviços digitais e também para os utilizadores profissionais de serviços digitais, de modo a resultar em benefício para a sociedade como um todo.

Algumas dessas vantagens presentes na proposta podem ser elencadas. Quanto aos cidadãos, eles passarão a ter maiores possibilidades de escolha e, consequentemente, acesso à preços mais baixos; uma menor exposição à conteúdos ilegais; e uma maior proteção aos seus direitos fundamentais. Os prestadores de serviços, diante da estruturação dessas regras, terão maior segurança jurídica e uma maior facilitação na expansão de seus serviços na UE. Quanto aos utilizadores profissionais, as vantagens serão as de maiores possibilidades de escolha e preços mais baixos; facilidade maior em acessar os mercados da UE por meio das plataformas; e condições concorrenciais que dar-se-ão de forma mais equitativas, excluindo fornecedores de conteúdos ilegais.

Dentre o rol de novas obrigações trazidos pelo Digital Services Act estão: i. a obrigação de transparência; ii. requisitos de que os serviços levem em consideração os direitos fundamentais; iii. cooperação com autoridades nacionais; iv. obrigações de notificação e prestação de contas; v. mecanismo de reclamações e de recurso e resolução extrajudicial de litígios; vi. sinalizadores de confiança; vii. medidas contra as notificações e as contranotificações abusivas; viii. transparência da publicidade online; ix. transparência dos sistemas de recomendação; x. partilha dos dados com as autoridades e os investigadores, dentre outros. As últimas três regras aplicam-se somente às grandes plataformas. Todas essas regras serão aplicadas cumulativamente, e deverão ser cumpridas a depender do tipo de serviço online que a empresa realize. O descumprimento das regras poderá acarretar multas de até 6% da receita anual da empresa somada a outras sanções[8].

No tocante à Digital Markets Act, e como uma forma de garantir que seus dispositivos sejam seguidos, uma das disposições diz respeito a criação da “ferramenta de investigação do mercado”, com o objetivo de detectar comportamentos, sobretudo das Big Techs, que caracterizem concorrência desleal.

Como apontado acima, ainda que a Diretiva EU 31/2000 não seja mais suficiente para lidar com alguns dos desafios atuais, a Proposta tem como base os princípios fundamentais presentes na Diretiva, visando garantir que os serviços digitais aconteçam da melhor forma, ou seja, de modo a contribuir com a segurança online e proteger os direitos fundamentais, estabelecendo uma estrutura de governança robusta e aplicável por muito tempo aos provedores de serviços. Essa maior proteção a direitos fundamentais vem traduzida, também, de um padrão mais elevado de transparência e responsabilidades sobre plataformas, especialmente em relação a moderação de conteúdo, publicidade e funcionamento de seus algoritmos.

O impacto certamente não será restrito à União Europeia, sendo essa iniciativa (mais uma, na verdade) um ótimo exemplo que deve ser seguido por outros Estados. Quanto à aprovação dessa Proposta, ele segue para que o Parlamento Europeu e os Estados-Membros deliberem sobre as disposições apresentadas pela Comissão. Uma vez adotada a Proposta, as regras deverão ser adotadas em toda a União Europeia.

 

Notas e Referências

[1] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/big-techs-e-direito-concorrencial. Acesso em: 13.01.2021.

[2] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/retrospectiva-2020-e-expectativas-2021. Acesso em: 13.01.2021.

[3] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:32000L0031&from=PT. Acesso em: 13.01.2021.

[4] Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/analise-do-regulamento-europeu-sobre-marketplaces. Acesso em: 14.01.2021.

[5] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020PC0825&from=pt. Acesso em: 13.01.2021.

[6] Disponível em: https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/digital-services-act-package. Acesso em: 14.01.2021.

[7] Disponível em: https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/digital-services-act-ensuring-safe-and-accountable-online-environment_pt. Acesso em: 14.01.2021.

[8] Disponível em: https://lexprime.com.br/2021/01/digital-service-act-e-as-novas-regras-da-eu/. Acesso em: 14.01.2021.

 

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